Os telemóveis começaram a fazer parte das nossas vidas desde há cerca de 30 anos, e, conjuntamente com a internet, revolucionaram completamente as nossas vidas desde então. É quase impensável sair de casa hoje em dia sem as chaves, a carteira e o telemóvel, e este último está a substituir claramente os outros dois, ao ponto de podermos sair só com o telemóvel (que inclui a carteira e as chaves). É assim compreensível que as questões relacionadas com os sistemas de comunicações móveis tenham uma importância tão grande na sociedade, e facilmente atraiam a atenção de muitos setores.
Os sistemas de comunicações móveis têm apresentado ciclos de uma década na sua evolução, ou seja, em cada 10 anos tem surgido uma nova geração de sistemas. Presentemente, estamos no início do ciclo do 5G (5ª Geração destes sistemas), e nunca o início de um ciclo esteve envolvido em tanta polémica como até agora. Muito se tem debatido o leilão de espetro do 5G, nomeadamente a existência de mais um operador para além dos 3 atualmente existentes, mas o debate tem estado focado quase exclusivamente nas questões de concorrência, esquecendo quase por completo os aspetos técnicos (provavelmente por os seus intervenientes não estarem familiarizados com a tecnologia; por exemplo, os engenheiros de telecomunicações têm estado afastados da administração do regulador das telecomunicações desde o início de 2006). Mas a tecnologia importa, e tem implicações enormes nas decisões que já foram ou vierem a ser tomadas relativamente ao 5G, como se mostra a seguir. É que o 5G apresenta tecnologias disruptiva relativamente às gerações anteriores, e muitas das coisas que têm sido ditas tomam como válidos para o 5G os pressupostos das gerações anteriores, o que não é o caso.
Para que um utilizador tenha uma boa qualidade de experiência (a designação técnica para que sintamos que estamos a comunicar com boa qualidade), é necessário que o operador com o qual temos contrato nos forneça duas coisas através das suas estações base (vulgarmente visíveis através das suas antenas): cobertura e capacidade. Cobertura significa que o nosso telemóvel tem que ter umas quantas “barrinhas” no mostrador de sinal (o nível de sinal), e aqui começa a diferença. Enquanto nas primeiras gerações, a qualidade da chamada de voz, ou mesmo do acesso à internet, era quase independente do nível de sinal, no 5G esse nível tem uma grande importância nas comunicações de dados que fazemos, isto é, quanto maior for o nível de sinal maior será a velocidade de dados, pelo que um utilizador deverá ter o nível de sinal mais elevado possível para ter uma boa qualidade de experiência. A capacidade está relacionada não só com o número de utilizadores que podem comunicar numa dada área, mas também a velocidade de dados com que o faz; o 5G irá permitir que a velocidade de dados possa ir até 10 Giga bit por segundo (Gbit/s), mas para isso é necessário ter largura de banda suficiente, e aqui está outra diferença do 5G, pois esta velocidade só é atingida com 100 MHz de largura de banda (no 5G a velocidade de dados é proporcional à largura de banda, o que não é o caso das primeiras gerações). Vejamos então o que tem o número de operadores e o leilão do espetro (frequências) a ver com isto.
As faixas de frequências em leilão não são todas iguais. Existem duas faixas para o 5G, em 700 MHz e 3600 MHz, e devido às leis da natureza (isto é, a atenuação dos sinais aumenta com a frequência) a área de cobertura de uma estação base em 3600 MHz é cerca de 20 mais pequena que em 700 MHz; isto significa que um operador tem que instalar muitas mais estações base para fornecer cobertura em 3600 MHz do que em 700 MHz, o que tem enormes implicações económicas em termos de investimento. Isso é reconhecido de certo modo no preço das faixas de frequência, pois 1 MHz custa 1,92 milhões de euros na faixa de 700 MHz e 0,12 milhões de euros na de 3600 MHz. Não é portanto indiferente um operador ter espetro na faixa de 700 MHz ou na de 3600 MHz, sendo de facto desejável que tenha nas duas.
No entanto, a diferença entre as duas faixas não se resume à área de cobertura, mas inclui um outro aspeto muito importante relativo à largura de banda disponível. Na faixa dos 700 MHz existem 60 MHz de largura de banda, o que significa que esta faixa nunca poderá fornecer a velocidade máxima de 10 Gbit/s (de facto, é usada para fornecer essencialmente a cobertura). Aqui está uma das diferenças em se ter 3 ou 4 operadores: em termos médios, assumindo uma divisão equitativa do espetro, a existência de 3 operadores possibilita que os seus utilizadores possam ter até 2 Gbit/s nesta faixa, enquanto 4 limita esse valor a 1,5 Gbit/s; assim, a existência de 4 operadores vai conduzir a uma menor qualidade de experiência dos utilizadores.
Na faixa de 3600 MHz, existem 300 MHz de largura da banda disponíveis sem restrição. A existência de 3 operadores conduz a que cada um possua a largura da banda máxima possível, disponibilizando aos seus utilizadores o máximo de 10 Gbit/s, enquanto 4 operadores leva a que esse valor máximo possa descer para 7 Gbit/s. Está-se assim a comprometer as expetativas criadas com o 5G, pois a velocidade máxima de dados acabará por poder não estar disponível em Portugal.
O roaming nacional (a possibilidade de usar a rede de um operador com o qual não temos contrato) tem sido apresentada como a solução para os problemas criados com a existência de mais dos 3 operadores atuais. Também aqui se deve perceber que o paradigma do 5G é muito diferente das gerações anteriores. As chamadas de voz são feitas através de 2G e 3G, sendo o 4G e o 5G usados para dados. O 5G cria novas dimensões nos serviços de dados para além da sua velocidade, designadamente na diminuição da latência (atraso na transmissão entre os dois extremos) e no aumento da capacidade de terminais (aumento significativo do seu número, para a utilização de IoT – Internet of Things – por parte das empresas, o que significa que os telemóveis vão passar a ser apenas um dos muitos tipos de terminais ligados às redes). O 5G irá utilizar tecnologias novas na sua rede (virtualização, fatiamento (slicing), nuvem (cloud) e periferia (edge), entre outras) que fazem com que o conceito de roaming conhecido e usado atualmente não faça sentido no 5G.
Os serviços de dados em 5G vão ser muito diferentes dos atuais acesso à internet e visualização de vídeos do YouTube, passando por realidades aumentada/virtual e por muitos outros associados ao IoT que vão conduzir a uma revolução na indústria (o nascimento da Indústria 5.0?). Estes novos serviços implicam a utilização das novas funcionalidades das redes 5G: poderão existir operadores virtuais (num conceito muito mais generalizado do que o atual) com nós de rede próprios, separação entre operadores de infraestrutura e operadores de serviços, e operadores locais (no sentido em que não prestam serviço a nível nacional), entre outras possibilidades. Neste panorama, o conceito de roaming esvai-se completamente.
Como se vê, a existência de 3 ou 4 operadores não é exclusivamente uma questão de concorrência. Se analisarmos os 9 países europeus com população da ordem de grandeza de Portugal (entre 7 e 12 milhões de habitantes), apenas 2 (22%) possuem 4 operadores (todos os outros possuem 3). Adicionalmente, países como Estados Unidos da Américas, Japão e Alemanha, com mais de 80 milhões de habitantes, possuem 3 operadores.
Em conclusão, relativamente ao número de operadores em 5G, “technology matters”.
* Professor de Sistemas de Comunicações Móveis no Instituto Superior Técnico