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Opinião

A vingança come-se fria

Uma crónica sobre o mundo tal como o desconhecemos, dos grandes temas da atualidade às questões insignificantes do quotidiano. Todas as quintas-feiras nos Exclusivos do Expresso

De vez em quando chegava-nos ao conhecimento, regra geral num raivoso lamento masculino que nos informava do estado lamentável em que os rivais tinham ficado e se dispensava de explicar as feridas, hematomas e escoriações ostentadas pelo próprio, notícias de confrontos entre um ou mais elementos do nosso grupo e um coletivo cuja característica distintiva era a de nenhum dos seus membros pertencer ao nosso grupo, uma desvantagem assinalável pois embora não valorizássemos as justificações de igual forma todas tinham o valor suficiente para, numa noite de sexta, sábado ou, quando as circunstâncias assim o exigiam, a meio da semana, nos arrastar para aquilo a que as páginas do crime chamam “ajustes de contas.”

Não quero dar a ideia, obviamente errada, de que estes episódios eram meras excursões juvenis e recreativas que serviam para uma libertação lúdica e socialmente aceite dos nossos elevados níveis de testosterona. A verdade é que a coisa podia ficar, e normalmente ficava, feia. E se o leitor nunca sofreu o azar de ter um pulmão perfurado por navalha ponta e mola ou nunca teve o desprazer de ver a sua cabeça desfeita à martelada por um sujeito de maus modos e força escandinava a quem chamavam, com muita propriedade, “o Touro”, pode convencer-se facilmente de que tudo isto não passava de arrufos, quiproquós, zaragatas fugazes, rixas inconsequentes. É, repito, uma ideia errada.

Certa noite, num daqueles sábados estranhamente sossegados e monótonos em que, com o passar das horas, a excitação acumulada se diluía numa imobilidade pantanosa e desesperada, um dos nossos amigos cuja identidade irei reservar apareceu no café onde habitualmente nos juntávamos trazendo informações muito fidedignas acerca do paradeiro de um tipo, o Jacó, para ser exato, (digo-o por nenhum dever de fidelidade e reserva me ligar a tal personagem que, além disso, jamais poderá ler esta crónica, a não ser que algum médium mais dado às letras lha faça chegar) que lhe tinha causado determinados danos em virtude de uns boatos sobre o nosso amigo que espalhara com um entusiasmo velhaco.

Nas palavras do nosso amigo, era tudo nebuloso, e ainda bem que assim era porque, desmotivados pelo excesso de pormenores, forçados a avaliar os méritos da indignação e revolta do nosso companheiro, talvez não nos déssemos ao trabalho de levantar os rabos das desconfortáveis cadeiras de pé alto, as únicas que serviam a clientela da cervejaria, e não organizássemos uma expedição justiceira ao território inimigo da Cidade Sol, de onde era oriundo o acima mencionado Jacó. Seja como for, com mais ou menos explicações, sendo mais ou menos legítimo o desejo de vingança do nosso amigo, do qual, por simpatia, já começávamos a partilhar, a vontade de romper a monotonia noturna a tudo se sobrepôs e lá partimos em duas viaturas ao encontro do arguido.

Antes disso, mandava a prudência que nos certificássemos que, uma vez lá chegados, não nos veríamos na situação ingrata de inferioridade numérica, condição que nos foi garantida, hoje sabemos que apressadamente, pelo nosso amigo ávido de apertar o gasganete psitacídeo do Jacó. O nosso amigo agravado levou quatro capangas no carro dele. Eu e outros três centuriões fomos no carro do Diamantino, a quem isento desde já de responsabilidades por aquilo que aconteceu. O carro, um Renault 19 que ele comprara por oitenta contos a um cigano, não era o pior nem o mais sujo do mundo, mas se tal competição existisse conquistaria com todo o mérito um lugar honroso.

A esta altura devo dizer que a espinha dorsal de todas as organizações – todas – é formada por um conjunto de funcionários mais ou menos obscuros e mais ou menos diligentes, entre os quais, se procurarmos com atenção, encontraremos exemplos raros de decência e hombridade e outros menos raros exemplos de canalhice e cobardia, Eichmanns e gente de semelhante estirpe. De entre os primeiros, mesmo que não lhes sejam reconhecidas capacidades de liderança ou rasgos muito luminosos de inteligência, destacam-se certos homens verticais, de confiança e com uma outra qualidade menos louvada do que merecia, o conhecimento e a aceitação pacífica das suas limitações, virtudes que, sublinhe-se, quase sempre exibem desde tenra idade, o que me leva a crer que falamos de dons inatos e não de comportamentos adquiridos, em especial na catequese.

O Diamantino era um destes aguadeiros virtuosos e respeitáveis que desempenhava as funções adjuntas com um orgulho de artesão, de membro de uma guilda ou confraria de que só ele fazia parte. Além disso, era de boa índole, capaz, como dizia a minha avó, de ficar sem camisa para a dar a um amigo, e até aí, eu só o vira chateado, mas chateado a sério, com uma fúria de Aquiles a decapitar troianos, quando certa vez alguém deixou cair a cinza do cigarro no banco de trás do carro dele. Lembro que o carro, como já sugeri, era um festival inverosímil de imundície, mas, não será necessário recordar, era o carro dele e tinha todo o direito de exigir que não o conspurcássemos mais do que o próprio dono era capaz de o conspurcar.

Sobre o Diamantino acresce dizer que, embora se mostrasse relutante em participar nestes congressos de pancadaria, assim que o árbitro apitava para o início, não ficava atrás de ninguém no empenho e na força com que desferia punhadas em cabeças inimigas. Lá fomos nós, então, seguindo atrás do carro do nosso amigo que servia de batedor e alertados uma última vez pelo Diamantino para que não fumássemos dentro do carro ou, se o fizéssemos, usássemos de extrema cautela, regra que, por direito de propriedade, não se aplicava a ele.

Quem nunca fumou não pode imaginar a vontade que temos de fumar num sítio em que é proibido ou altamente desaconselhável fazê-lo. E eu, na minha impaciência e não demovido pelo olhar de censura e vigilância que o Diamantino me lançou pelo retrovisor, lá acendi um cigarro, rodeado de pacotes vazios de batatas fritas e de Cheeto’s, latas de cerveja, um baralho de cartas e vários lenços de papel amarrotados que ainda hoje rezo para que fossem vestígios das sucessivas constipações que afligiam o Diamantino. O trajeto até ao local onde presumivelmente estaria o Jacó era curto, mas tivemos de o interromper subitamente quando o Fred, que ia comigo no banco de trás, proferiu estas palavras que até hoje oiço com uma clareza paralisante: “não vos está a cheirar a queimado?”

Ah, bom Diamantino, nunca te poderei pagar o esforço desumano que fizeste para não me partir o focinho. Mas é a mim que o Jacó tem de agradecer por não termos consumado o nosso ato de vingança. É que os nossos amigos que seguiam no outro carro chegaram ao destino mas depararam com um exército bem mais numeroso do que o antecipado. E sem o nosso concurso, sobretudo o do antebraço fenomenal que o Diamantino usava como uma marreta mortífera, viram-se obrigados a cancelar as festividades e o nosso amigo a quem o Jacó supostamente ofendera teve de engolir o orgulho e comer duplamente frio o prato da vingança que queria servir. O que, acreditem em mim, não era das piores lições de vida que podíamos receber lá no bairro.