O debate sobre a realização de um referendo, neste caso sobre a eutanásia, voltou à ordem do dia em Portugal. Este é um instrumento de democracia direta, previsto pela nossa constituição, que estatui a sua convocação por proposta da Assembleia da República ou do governo, e por decisão do Presidente da República. Mas qual é a História deste instrumento político? E qual a diferença entre plebiscito e referendo, termos que muitas vezes se confundem?
Os plebiscitos (decretos da plebe) tiveram origem nos comícios tributos, no tempo da república romana (sécs. ). Na maioria dos casos, estes órgãos populares aprovavam leis que se opunham às decretadas pelos patrícios do senado. Com o império, os comícios perderam a capacidade legislativa, e os plebiscitos entraram numa longa hibernação até ao inicio da época contemporânea, quando ressurgiram em moldes diferentes daqueles dos tempos da Roma clássica.
As primeiras tentativas de recuperar este instrumento de democracia direta não foram qualificadas de “plebiscitos”, e, acabariam mal sucedidas. Em 1788, os antifederalistas norte americanos defenderam, sem resultado, a retificação do projeto constitucional desenhado pela convenção de Filadélfia e, em 1793, os franceses aprovaram a constituição jacobina-revolucionária votada pela convenção. Porém, este processo foi realizado em assembleias e sem voto secreto, e a constituição nunca foi aplicada, pois a convenção prolongou os seus poderes ditatoriais.
Napoleão, um admirador das instituições romanas, recuperou definitivamente o ato do plebiscito, e usou-o para reforçar os seus poderes em detrimento dos parlamentares: em 1802, tornou-se cônsul vitalício por aprovação plebiscitária e, em 1804, proclamou-se imperador com recurso ao mesmo instrumento. Durante o século XIX, este sistema direto concorreu, pois, com o representativo. Foi assim em 1851, quando Luís Napoleão, sobrinho de Napoleão, e então presidente da República, submeteu a plebiscito a revogação da norma constitucional que previa um mandato presidencial único de 4 anos, o que lhe permitiria manter-se no cargo. Não contente, Luís Napoleão convocou no ano seguinte um plebiscito que confirmou a restauração do império na sua pessoa (Napoleão III), e a concentração de poder no chefe de estado, com subalternização do parlamento. Poucos anos depois (1861), parte da unificação italiana foi alcançada através de plebiscito, quando os cidadãos da Toscânia, Parma e Modena, votaram pela integração dos seus territórios no reino do Piemonte-Sardenha.
No século XX, o “plebiscito” passou gradualmente o testemunho ao “referendo”. E creio que por duas razões principais: a primeira, é de ordem estética, pois o termo “plebe” tem conotações negativas, e não se aplica facilmente a cidadãos contemporâneos; a segunda, mais substantiva, relaciona-se com a origem da iniciativa, pois, geralmente, os plebiscitos foram convocados por iniciativa singular de entidades ou instituições políticas, enquanto os referendos partem da iniciativa popular.
Porém, e ao contrário do que seria expectável, o referendo não surgiu na Roma clássica, mas sim nos cantões suiços, isto durante o século XVI, quando as leis e normas votadas nas comunas eram remetidas para aprovação das autoridades dos cantões. Aliás, a tradição e a estrutura política peculiar da Suíça, formalmente uma confederação, tornaram frequentes a realização de referendos, situação que se mantém nos dias de hoje.
Até ao fim da II guerra, os plebiscitos ainda foram comuns na europa continental. A constituição portuguesa de 1933 não foi elaborada por uma Assembleia constituinte, mas sim por um Conselho Político Nacional, um órgão restrito e nomeado pelo Presidente da República,
que aprovou o projeto constitucional apresentado por Salazar. Este foi depois plebiscitado, por meio de voto obrigatório, e com a artimanha da abstenção ser considerada como votos a favor.
Na Europa ocidental, e, após a II guerra mundial, os plebiscitos cederam definitivamente lugar aos referendos. Não só por este termo ser mais simpático como, fundamentalmente, por estes instrumentos de democracia direta passarem a ser, maioritariamente, de iniciativa dos cidadãos. A república italiana foi instituída por referendo (1946) e, em 1958, França convocou um referendo para aprovação da V república, com participação de todas as suas colónias, e com a particularidade de estas poderem alcançar a sua independência no caso de chumbarem a pergunta votada. Claro que, para este tempo, ainda se pode questionar qual o grau de controlo e manipulação dos resultados alcançados.
Na década de 1970, ocorreram já referendos de legitimidade inquestionável. Em 1975, os cidadãos do Reino Unido retificaram por esta via a adesão à então CEE, o que abriu o precedente para nova consulta, em 2016, que teve resultado contrário e resultou no “Brexit”. Espanha, por sua vez, aprovou por referendo o projeto de constituição elaborado pelo parlamento. Esta votação incidiu sobre o projeto de constituição e não sobre a constituição o que, a ter acontecido, e em caso de desaprovação, colocaria em causa a legitimidade do poder constituinte das câmaras.
Recentemente, Reino Unido e Espanha voltaram a ser notícia por questões em torno de referendos, em ambos os casos sobre a possibilidade de independência de parte dos seus territórios. Estes casos são, contudo, substancialmente diferentes. A Escócia que, em 2014, votou em referendo a possibilidade da sua independência é, formalmente, um reino constituinte do Reino Unido, entidade formada com base num conjunto complexo de atos parlamentares, enquanto que a Espanha é um estado unitário, e a sua constituição prevê autonomias, mas proíbe expressamente independências. Daí a Escócia ter visto o seu referendo autorizado pelo governo britânico, enquanto a Catalunha o viu negado pelo governo de Madrid.
Em Portugal, ocorreram até agora 3 referendos em democracia, dois sobre o aborto, e um sobre a regionalização. Sobre este meio de participação direta dos cidadãos, as questões a referendar deveriam ser somente aquelas que não foram explicitadas nos programas eleitorais dos partidos que alcançaram representação parlamentar, e que carecem de uma decisão ou retificação urgente. Fora destes casos, são da competência dos órgãos com capacidade legislativa, sendo que, desejavelmente, todos os partidos deveriam dar liberdade de voto em questões de consciência. Isto porque o sistema representativo e o mandato dos deputados são matrizes fundamentais do nosso sistema político e da democracia.