O evento: muito mais do que um excedente
Começa a ser demais, apesar de não ser ainda demasiado. O nível de divergência que se sente ultimamente no seio do Partido Socialista sinaliza semanas difíceis para Pedro Nuno Santos até às eleições europeias de junho. Tanto na governabilidade, onde a cúpula pedronunista já anunciou o chumbo de um Orçamento por apresentar ‒ de um Governo que não existe, chefiado por um primeiro-ministro por empossar ‒, como nas contas públicas, onde a mesma cúpula reprovou um excedente por confirmar ‒conseguido por um ministro do seu partido, calculado por um colega do seu Governo ‒, o PS não tem só opiniões diversas sobre o que os outros fazem. Tem sobre o que o próprio PS fez.
Sábado, à entrada para a reunião da comissão nacional socialista, Carlos César comentou a possibilidade do superávite deixado por Fernando Medina ultrapassar o previsto. “Espero que o excedente não seja um excesso”, disse, sendo o oxímero empregue pelo presidente do PS um retrato das contradições em que vai vivendo o PS de Pedro Nuno Santos.
Tendo sucedido a um líder cuja característica mais definidora foi a previsibilidade ‒ ou o conservadorismo, se preferirmos ‒, Pedro Nuno vai pulando, de defensor das contas certas a contestatário do excedente, de recusar aprovar o que seja do PSD a disponível para viabilizar governos e retificativos da AD, não se sabendo exatamente onde está, como está e porque está, a cada dia e assunto que passa.
As críticas que o pedronunismo deixa aos resultados de Medina são um tanto inusitadas por três ordens de razão.
A primeira: as décimas de um excedente não são decretadas por mão humana; os resultados do exercício orçamental lidam com inúmeras variáveis, despesas (que se controlam) e receitas (que não se adivinham), e geri-lo é contar com essa imprevisibilidade. O excedente previsto apontava para 0,8% e Medina entregou 1,2%. Se tivesse entregado 1%, o que diria Pedro Nuno? E de que lhe adiantaria dizer? A ideia de que o número final do défice se decide a régua e esquadro é, no mínimo, cómica. O lamento de que os problemas na administração pública se resolveriam com “mais dinheiro” é de quem não aprendeu nada com os últimos anos.
A segunda razão tem que ver com o óbvio: o pedronunismo critica o excedente porque está na oposição; se estivesse no Governo, celebraria os resultados do seu rival interno com uma romaria pelas ruas de São João. O seu problema não é “o que poderíamos ter feito com aquele dinheiro” no Governo anterior; é o que Luís Montenegro poderá fazer com ele no Governo que agora tomará posse. Responsabilizar um executivo de que fez parte pelos desafios que enfrentará na oposição expõe alguma intranquilidade entre o pedronunismo. Não será boa conselheira.
A terceira toca na gestão de legado. O legado de António Costa, além de sucessivas vitórias eleitorais, está assente nas ‘contas certas’, na consciencialização do eleitorado de esquerda para essa prioridade nacional e numa herança governativa com a dívida abaixo dos 100% e o excedente acima do 1%. Visivelmente, para Pedro Nuno Santos, essa herança vale pouco. O novo secretário-geral do PS julga ter uma proposta melhor para apresentar aos portugueses apesar de, nas eleições, mesmo com Costa em pronto-socorro na semana final, essa proposta não ter colhido.
Desde 10 de março, em apenas quinze dias, o Partido Socialista deixou assim de representar duas coisas que lhe valeram sucesso nos últimos nove anos: votos e rigor orçamental. Aquilo que está a ocorrer no PS é muito mais do que uma picardia em torno de um excedente; é a vontade de uma liderança ‘matar o pai’ em troca de algo ainda por vislumbrar.
Até às europeias, convém que Pedro Nuno encontre um rumo. Caso contrário, terá de seguir o seu, sozinho.
O protagonista: o silêncio cavaquista
Mais tranquilo e mais calado tem sido Luís Montenegro, não se sabendo a mais pequena coisa sobre a composição ou a dimensão do seu Governo, a ser conhecido no final desta semana e empossado no início da próxima.
Com os nomes para Presidente da Assembleia (José Pedro Aguiar Branco) e para líder parlamentar (Marques Mendes lançou Hugo Soares ontem na SIC) a serem as espreitadelas possíveis para as escolhas de Montenegro, não se contam com os dedos de uma mão o número de pessoas que sabem quem será ministro e de que pastas. A margem para erros diante da atual paisagem política é reduzida e Montenegro parece ter consciência disso. Gestão de informação tão próxima na velocidade informativa do século XXI não é tarefa fácil. O primeiro-ministro indigitado tem-na conseguido.
Um sinal:
Um pormenor passou despercebido no turbilhão pós-eleitoral das últimas semanas, mas não perde relevância política por isso. Ainda em funções, António Costa manifestou o seu apoio ao reconhecimento do Estado da Palestina como caminho para a paz no Médio Oriente. Sendo uma posição há muito reivindicada por partidos como o Bloco de Esquerda e o Livre, o primeiro-ministro cessante pisca o olho ao seu próprio partido e, ao mesmo tempo, aos interlocutores europeus com que conviveu ‒ e poderá vir ainda a conviver.
Uma sugestão:
Brad Mehldau tornou-se célebre pelos seus discos de jazz em trio e pelos álbuns de piano a solo mas, mais recentemente, investiu tempo em reinterpretações de colossos da música clássica. Primeiro com “After Bach”, em 2018, e este maio com “Après Fauré”, com o single do disco a ser lançado esta semana. Pode escutá-lo aqui no Spotify e aqui no Youtube. É magnífico.
Boa semana