O evento: os Açores
Na ressaca de uma crise política na Madeira e com a pré-campanha nacional a todo o vapor, a Aliança Democrática de José Manuel Bolieiro conseguiu um resultado mais do que perfeito. Num paradoxo que só a metamorfose do sistema político explica, a maioria quase-absoluta é taticamente mais vantajosa para a coligação liderada pelo PSD do que uma maioria absolutíssima. Bolieiro ficou a três mandatos de a conseguir, o que quer dizer que nem negociando com a IL e com o PAN, cada um com o respetivo deputado, consegue maioria sem o Chega. Mas, contrariamente ao mais óbvio, a encruzilhada não se tornou um problema para os sociais-democratas, mas antes para os socialistas, assim obrigados a escolher entre viabilizar um Governo do PSD sem o Chega ou forçar o PSD a governar com a extrema-direita.
O facto político da noite eleitoral açoriana foi esse: os Açores podem ser a vacina do sistema político contra o Chega ou, pelo menos, uma garantia de maior imunidade do PSD à ameaça populista à sua direita.
Ontem, André Ventura mostrou prontamente o tornozelo a Bolieiro, oferecendo-se para negociar o mais cedo possível ‒ e o mais demoradamente possível, claro ‒ um governo de coligação entre a AD e o Chega. Mas nem do lado do PS nem do lado PSD houve abertura para esse cenário.
Vasco Cordeiro, derrotado nas urnas ao fim de mais de 30 anos de vitórias socialistas no arquipélago, deu sinais de desapego ao cargo e vontade de dar lugar a uma geração mais nova. Não negou, em nenhum momento, a possibilidade de viabilizar um Governo da força política mais votada. O próprio António Costa, no Twitter, felicitou José Bolieiro pela vitória, manifestando disponibilidade para continuar a colaborar institucionalmente com o Governo Regional.
Bolieiro, por seu turno, limitou-se a celebrar o resultado e a afirmar o desejo de cumprir a legislatura. Em nenhum momento exigiu a viabilização ao Partido Socialista. Mas em nenhum momento negou que a preferia.
A ginástica comunicacional dos dois principais partidos diante dos resultados de ontem tem que ver com duas preocupações. A primeira: a campanha nacional. Com o PS apostado em confundir o PSD com a extrema-direita, salvar os sociais-democratas das negociações com o Chega nos Açores é a opção mais responsável ‒ e mais coerente ‒, mas também a mais difícil.
Para o PSD, que fez juras de “não é não” a André Ventura, a situação é mais confortável, mas não necessariamente indolor. Por um lado, pede para governar sem ter maioria na Assembleia regional por ter sido o mais votado, correndo o risco de ver o PS pedir-lhe exatamente o mesmo depois de 10 de março. Por outro, sentar-se-á à mesa com os socialistas para negociar a viabilização, deixando espaço ao Chega, que saiu reforçado nas urnas, para assumir maior protagonismo como oposição ao ‘centrão’.
É por isso que tanto Montenegro como Pedro Nuno, e tanto Bolieiro quanto Cordeiro, preferiram o silêncio sobre o futuro imediato das suas conversas. Não tendo o melhor de dois mundos, opta-se pela mudez, tentando não ter o pior em cada um deles. O PSD, porque sonha com o melhor dos dois mundos, cá e lá. O PS, porque ao fim de meses a centralizar o debate político no Chega, percebeu tarde demais que os dilemas que a emergência populista traz tocam mesmo a todos.
O protagonista: o PS
Perdedor ou vencedor mas com a faca e o queijo na mão, parece ser a sina do Partido Socialista para este ano. Tendo perdido nos Açores, pode salvar o PSD da extrema-direita, e derrubar Bolieiro quando julgar mais conveniente. Ganhando nas legislativas, pode cobrar uma viabilização ao PSD em março e fazer campanha no poder até novas eleições, com a óbvia vantagem que tal lhe conferiria.
São vitórias amargas ou derrotas agridoces, que exigirão uma enorme dose de sangue frio e pragmatismo a Pedro Nuno Santos e ao seu partido. Sem coesão, e sem unidade na mensagem, será mais difícil sobreviver politicamente a cada etapa desse caminho. Neste domingo eleitoral, tal ficou bem claro, com Alexandra Leitão e Francisco César a chutarem o Chega para o colo do PSD/Açores, e Pedro Delgado Alves, Ana Gomes e Francisco Assis a preferirem a solução de viabilização do partido mais votado, não o atirando para os braços de Ventura. Além de militantes do PS, os cinco têm outra coisa em comum: apoiaram Pedro Nuno.
A advertência: Os temas invisíveis
Com uma campanha mais virada para os partidos do que para os eleitores, há temas que inevitavelmente arriscam ficar fora da agenda nacional. A comunicação social, por ser um problema sem soluções ideais, é um deles. O descontentamento nas Forças Armadas, paralelo ao dos polícias mas sem a mesma liberdade de protesto, também. E há, fora da extrema-direita, uma preocupação invisível mas real sobre as matérias de género.
O Presidente da República acabou, propositadamente ou não, por representá-las, aquando do seu veto mais recente, e as reações foram um tanto intempestivas, acusando-o de colocar vidas em causa e de uma suposta aproximação ao Chega, sendo ambas tendências que Marcelo Rebelo de Sousa é insuspeito de favorecer.
Parecendo não haver forma de discutir o tema do género em Portugal ‒ e nas escolas portuguesas ‒ sem cair no irracional, deixo aqui um texto publicado esta semana no New York Times, que merece, pelo menos, ser lido.
A sugestão:
Sem querer exagerar no inusitado, nem tão pouco na ironia, a sugestão desta semana vai para a banda sonora do filme de animação Incríveis, que faz vinte anos em 2024. Assinada por Michael Giacchino em formato big band, é um espanto para ir trabalhar.
Pode ouvir aqui no Spotify e aqui no Youtube.
A vida, mesmo no caos luso, também pode ser incrível.
Até para a semana