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Inexplicavelmente, muita gente passou ao lado de “The Affair”. Não sabem o que perderam

“The Affair” (SkyShowtime)

Boa tarde,

“The Affair” (cinco temporadas na SkyShowtime) é uma das grandes séries-para-adultos dos últimos anos. Produzida originalmente para o canal premium Showtime, onde o pagamento mensal servia de manifestação de interesse, e como num livro que vale a pena, “The Affair” leva o tempo seguro a desenvolver os personagens e linhas de ação – os seus arcos, para usar o termo preciso. Como na vida dos adultos, há coisas que levam tempo, implicam perdas, sofrimento, lutas interiores, desilusões e nenhumas garantias de finais felizes. “The Affair” assume desde o primeiro episódio esse desencanto que toca a todos, não há magias nem inverosimilhanças. Seremos apresentados a um marido a entrar na meia-idade que deixa mulher e filhos (bem como os sogros endinheirados e metediços) porque é acometido de uma paixão retumbante por uma empregada de mesa que conhece quando vai de férias com a família. Os demónios que o levam a abandonar o lar já lá estavam, dir-se-ia, as frustrações tornam-no um homem a caminho do desprezível, o tema é gasto e batido na ficção (e em vidas reais), só que aqui somos seduzidos pelo recurso ao efeito Rashomon, o que nos aproximará mais das coisas-como-elas-são, porque certos incidentes nos são mostrados em versões bem diferentes, dependendo do ponto de vista do personagem que conta a história.

O dispositivo narrativo, que foi buscar o nome ao filme de Akira Kurosawa, de 1950, e que é habitual nos chamados romances polifónicos, é uma parte decisiva em “The Affair” e começa a ser claro para o espectador quando vê duas perspetivas distintas do primeiro encontro entre o marido desavindo e a empregada, que, por sua vez também tem a sua vida interior presa por nós e cadeados. Digamos que o coup de foudre tem uma ignição muito diferente, consoante o ângulo.

A série beneficia francamente de ser prévia ao consolidar do binge-watching (ou seja, ver os episódios de enfiada), é de uma altura em que se via um episódio e se esperava uma semana pelo seguinte, é como se os problemas que os personagens têm de resolver fossem contados ao ritmo da vida verdadeira. Não há, nem houve, muita televisão que tenha ido por essa via do contar vagaroso até aos quintos dos infernos, até porque é muito dependente da categoria de argumentistas e atores e da confiança. Aguentará o espectador a demora e os períodos em que nada parece acontecer? A resposta foi positiva: “The Affair” foi subindo nas audiências pelo passa-palavra. Não terá sido alheia a vantagem de se poderem seguir os personagens (filmados através do seu ponto de vista) e torcer (ou não torcer de todo) pelas suas sortes sem distração. Talvez por coincidir com “Breaking Bad”, “The Sopranos”, “Mad Men” e outras proezas da era dourada da televisão, “The Affair”, aparentemente apenas uma série sobre um casamento que termina, ficou inexplicavelmente escondida nos encómios gerais que o mundo das séries vive(u). Mas, e como dizem as frases inspiradas sobre a vida, nunca esquecer que se vai sempre a tempo, em especial de ver as duas primeiras temporadas.

“Fúria” (HBO Max)

Produção espanhola em oito episódios, começamos por ver uma celebração numa casa luxuosa onde acontecem coisas imprevistas, para nos episódios seguintes termos história e contexto de alguns dos intervenientes para ver como ali chegámos. Com humor negro, toques de exagero, alguma caricatura, são as mulheres que soltam a fúria e fazem-no com classe e distinção. “Fúria” é feminista sem ser panfletária, não se leva solenemente a sério, é muito bem suportada pelas atrizes, com ritmo e engenho na escrita, personagens secundários bem desenhados e uma trama geral que, ainda que por vezes se confunda, merece bem a insistência.

Até para a semana.

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