“Aka Charlie Sheen”/ “Também Conhecido como Charlie Sheen" (Netflix) é um produto de audiovisual em duas partes que chegou há pouco e está a ser martelado pela crítica, como provavelmente seria de esperar. Não que seja mau ou bom, mas tem muito poucas novidades e isso não se perdoa num “tell all” (que podemos traduzir livremente como “abrir o jogo”).
O documentário (aqui a palavra deve ser lida com muitas aspas, sublinhados e itálicos) aborda a vida errante do ator Charlie Sheen pelo mundo dos excessos de álcool, drogas e sexo, faltará aqui o jogo, talvez nunca lhe tenha dado para tal. Toda a gente sabia disto, que o ator foi muitas vezes trágico nos devaneios e excessos, pelo que “Aka Charlie Sheen” é então um resumo alargado e detalhado de um percurso de autodestruição que falhou porque Sheen está vivo, apesar da ampla experiência com drogas, entrevistas bizarras e chocantes, numa delas admitiu até ser portador de HIV. Vive agora em modo boa pessoa, desde há sete anos que é abstémio, está confessional, apaziguador de demónios antigos, amigo das ex-mulheres, fazedor de pontes com os filhos que foi fazendo, colaborador de projetos na Netflix.
Nascido em 1965, filho do ator Martin Sheen, irmão de Emilio Estevez, Charlie Sheen explodiu nos anos 80 e brilhou em “Wall Street”, junto de Michael Douglas, e logo depois em “Platoon”, são dois filmes de Oliver Stone de que muitos se lembrarão perfeitamente.
Com paciência, veremos muitos testemunhos de gente que gosta de Sheen, como se percebe pelo tom e linguagem corporal, que corroboram a ideia geral que se trata de um tipo quase imortal que mantém um carisma e uma capacidade de empatia do tamanho dos seus vícios. Mesmo no fim, admitirá que sim, que teve sexo com homens no meio de um torpor geral, como se isso interessasse para alguma coisa, parece ser uma esmola que Sheen deu ao realizador (é este quem lhe coloca a pergunta, conseguimos ouvi-lo).
Será uma esmola? Neste documentário, como noutros deste género, nunca nos é dito se o alvo foi remunerado pelo seu incómodo, mas é razoável supor que Charlie Sheen terá recebido bom dinheiro para estar ali a relatar as incidências de uma vida de pecado, como se falasse de um cão que teve em miúdo.
Mais dia, menos dia, a questão dos motivos pelos quais os figurões aceitam divulgar tudo deverá a começar a ser colocada, porque (gostemos ou não), até os mais treinados confundem documentários com jornalismo e, portanto, com verdade. É de salientar que num produto em que o próprio fala abertamente de assuntos incómodos, a recompensa não é tanto a intenção documental, mas uma tentativa estruturada e oficial de fixar a verdade. Seria bom arranjar maneira de se ser claro, para que os espectadores fiquem a saber se Charlie Sheen e outros receberam dinheiro para contar as suas histórias ou se simplesmente tiveram a generosidade de as partilhar connosco.
Em “Aka Charlie Sheen”, só Deus sabe o que foi verdade e se aqui não virá muito mal ao mundo se estiver a mentir a respeito daquela festa ou daquele factóide. Já noutros casos, sobre temas sérios e graves, a confusão entre o que é narrativo, expositivo e condicionado e pode muito bem ser confundido com a verdade, será um assunto bem mais sério.
As cerca de três horas sobre a vida de Sheen, que cresceu em Malibu, não acabou o liceu e se tornou ator famoso, são tempo bem passado naquela medida em que gostamos de assistir a pequenos filmes em que há gente que tropeça na neve ou é enganado numa partida. Nada parece importar, tal é a sucessão de episódios com excessos de narcóticos, abuso da confiança dos outros e desprezo pelas regras gerais de convivência.
O uso de imagens de filmes em que Sheen (ou o seu pai e irmão) participaram são usadas como formas de ligação entre as histórias e inerentes consequências, numa opção editorial que contribuiu para o entretenimento, ainda que retire crueza e intensidade. O emoldurar descontraído das desgraças é capaz de ter sido de propósito, o que transforma a banalização dos males que Sheen faz a si mesmo e aos familiares numa grande ironia. Ele decidiu lançar (ou, no mínimo, fazer parte de) um especial Netflix e editou um livro autobiográfico, uma terapêutica onde ganhará uns trocados. Como tudo nos é apresentado num registo apalhaçado, nós por cá não ligaremos aos seus exercícios de autodestruição, é garantido.
Sugestão
“The Capture” – Duas temporadas Showtime
Uma história de fake news, de imagens falsas e fabricadas, do potencial operacional de forças de segurança, atropelos ao Estado de Direito e outras tragédias do chamado deepfake que podem muito bem-estar a acontecer nas nossas barbas.
Ao contrário de outras produções que acabam por se apaixonar pelas causas que estão a defender, em “The Capture” a história nunca se perde, nem deriva para mensagens panfletárias, não abusa das reviravoltas, nem improvisa soluções absurdas para resolver problemas de argumento. Melhor ainda, aqui a tecnologia não se apresenta demasiadamente como magia, ou pelo menos conseguimos acreditar nisso. Até os mais céticos acreditarão que que aquilo que vemos, pode não ser aquilo que está a acontecer. “The Capture” é uma série britânica, daquelas muito bem filmada, bem interpretada, com atores convincentes e uma protagonista forte e decisiva. Estão duas temporadas na SkyShowtime, cada uma com seis episódios, com destaque para a primeira.
Até para a semana.