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“Refém”, a típica série 'brunch' em que não vale a pena pensar muito sobre o que estamos a fazer

Des Willie/Netflix

Em “Hostage/Refém” (Netflix), a primeira-ministra britânica e a Presidente da República Francesa (que está de visita a Downing Street) vão ter de conseguir estabelecer compromissos. Uma quer uma coisa, a outra tem algo a pedir e, quando tudo parece ser possível, não há tempo para apertar a mão porque se dá o rapto do marido da primeira-ministra. Desconhecidos armados, que são especialistas em tecnologia, exigem a demissão da britânica para libertar o homem, que recusa, era o que mais faltava – o espectador ouvirá a explicação de que, se ela saísse, qualquer um poderia ser alvo de uma armadilha assim.

O rapto acontece na Guiana, um território onde os franceses mandam e têm tropa, pelo que o pedido da inglesa à francesa para que entrem em ação é lógico.

A Presidente francesa compreende, mas uma chantagem vinda sabe-se lá de onde, e que aterra no seu telemóvel, impede o auxílio, abrindo outro conflito diplomático. Tudo sucede a um ritmo frenético, numa sucessão em que teremos tempo para ir conhecendo o staff de ambas, bem como a filha da primeira-ministra. Os nossos sensores de espetador apitam, avisando-nos que todos terão papéis a desempenhar durante os episódios que se seguem (são cinco no total, de cerca de três quartos de hora) e nem é necessária demasiada atenção, porque como está tudo formatado em modo binge, perceberemos sempre quem são os bons, os maus e os bons que pareciam maus e os maus que pareciam bons.

A série, recentemente estreada na Netflix, tem-me valido discussões com pessoas que adoraram e me disseram que tinha absolutamente de ir ver. Pela minha parte, e quando lhe peguei, depressa detestei o que estava a ver. Detestei tanto que a vi ao até ao fim, em dois dias, alimentando pelo hate watch, uma atividade bastante universalizada e que consiste em ver um programa de televisão apenas pelo gosto de lhe poder apontar defeitos.

(Exemplos concretos do hate watch em “Hostage” são as birras desajustadas da filha da primeira-ministra, que por sua vez encontra vagar, tempo, paciência e discernimento para ser “boa mãe”, apesar do seu marido estar raptado nos confins do mundo, o seu país estar a viver um drama sério com falta de medicamentos e ela estar a ser ameaçada e à beira de um conflito sério com a França. E o que interessa que os serviços secretos ingleses e franceses sejam uns grandes nabos se isso contribui para que a história se desenrole a bom ritmo?).

Admito, porém, que passados uns dias, fui aceitando melhor as fragilidades da produção, os seus defeitos e superficialidades, porque em troca fui entretido, tive ritmo e encadeamento da ação e derivações, bem como ótimos desempenhos de duas ótimas atrizes que carregam a série ao colo. A francesa Julie Delpy e sobretudo a inglesa Suranne Jones conseguem ser convincentes nos seus papeis unidimensionais, até quando os argumentistas não são capazes de dar conta do recado, o que atesta mais uma vez que a profissão de ator não é para todos.

“Hostage” é outra iteração dessa categoria relativamente recente de minisséries, a que proponho que se chamem séries brunch, onde há tudo, doce e salgado. Grandes intrigas internacionais, revestidas de conflitos familiares, conflitos domésticos, conflitos com terceiros, conflitos interiores, traições, chantagens, redenção, alianças, tensões com adolescente e seniores (os argumentistas também arranjaram um pai doente à primeira-ministra). Sem esquecer pobres e vulneráveis da sociedade e respetivos políticos preocupados com eles; sexo; perigos de extrema-direita; migrantes; um casamento mixed race; um romance entre uma mulher mais velha e um homem mais novo; mortos, feridos, tiros, aqui empacotados em cinco episódios, que passam rápido.

Os brunches, se não pensarmos na dieta, no colesterol, no preço que aquilo custa, se devemos ou não estar a beber tanto álcool àquela hora ou se misturar salmão fumado com sumo de laranja faz sentido, podem ser maravilhosos, quando estivermos para aí virados e em boa companhia. Nesta série, bem vistas as coisas, acontece a mesmíssima coisa.

Sugestão

Rematch (HBO Max)

Arte

Esta é uma minissérie em seis episódios produzida pela francesa Arte sobre esse evento histórico que foram os duelos entre o xadrezista russo Gary Kasparov e o computador Deep Blue (no primeiro duelo, venceu o humano, no segundo, a máquina), em 1996/7.

A dramatização ajuda a perceber como tudo aconteceu. O cientista criador estava sentado em frente a Kasparov e fazia a jogada que um computador a seu lado lhe indicava. Também ficaremos a saber que Kasparov, homem adulto, tem sempre a sua mãe ao lado, para o que der e vier.

Mesmo que tenha guarda-roupa fraco e alguns atores menos bons (o cientista asiático que desenvolveu o Deep Blue, por seu lado, é excelente), escondida e europeia, a produção é consumível até por quem não sabe as regras do xadrez – começa no primeiro round e prolonga-se pela desforra e pelo esforço que a IBM fará para que a máquina derrote o homem. O espectador curioso ganha porque vamos percebendo que na desforra em 1997, onde a Internet já tem o seu papel, Kasparov não ficou completamente convencido com a derrota. Mais tarde, acabará por admitir numa autobiografia que jogou mal e o computador mereceu vencer.

A produção não é à americana, nem tem essa aspiração, mas no mínimo permite compreender um dos marcos do início da tensão entre inteligência artificial e inteligência humana, enquanto é bom entretenimento e dá umas luzes sobre a importância que o match da desforra teve para a empresa IBM, naquele final dos anos 90.

Já o ficcional “Gambito de Dama” (Netflix), que também decorre no mundo do xadrez e incorpora elementos e figuras verdadeiras, é uma melhor série televisiva que teve audiências muito significativas, contribuindo até para um interesse dos mais novos pelo jogo. Se “Rematch” tem a vantagem de nos falar de casos reais, “Gambito” funciona como um thriller para ver de seguida, incluindo um pequeno segmento chamado “Bastidores do Gambito de Dama”, também na Netflix.

Até para a semana.

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