Boa tarde,
Não conheço ninguém que beba um whisky mal chegue a casa, servindo-o de um decanter. E, no entanto, num passado de quinze ou vinte anos, estava sempre a acontecer em séries e novelas. A verdade é que os argumentistas têm de colocar os personagens em sítios onde estes possam permanecer no mesmo local durante o tempo suficiente para fazerem coisas, como simplesmente conversar ou atender o telefone fixo. Se eu precisava que o meu personagem fizesse um telefonema comprometedor, era boa ideia levá-lo a realizar uma ação em que não sai do mesmo sítio para que o telefone toque e ele o oiça. A zona da casa onde fica o whisky não seria longe do telefone fixo.
(As cenas de ir servir um whisky à zona onde repousa o decanter diminuíram com a chegada dos telemóveis).
No cinema há mais tempo e dinheiro para vislumbrarmos a vida interior dos personagens, o que permite que estes possam estar calados a não fazer nada durante muito tempo. Em televisão, a economia narrativa é outra. A história avança através do diálogo e o homem (era quase sempre um homem) teria sempre pouco sossego com o seu whisky, porque se não fosse um telefonema, alguém haveria de chegar para começar um assunto. Nós, os espectadores, seguiríamos a conversa útil com atenção, a conversa mole (a existir) seria de duas ou três frases.
Uma diferença completa entre a vida real e a vida real da televisão está precisamente nos diálogos. Na nossa vida própria, interrompemos, não acabamos ideias, não chegamos a lado nenhum, usamos interjeições, palavrões, muitas vezes nem sabemos como argumentar, atropelamo-nos, misturamos assuntos e quase nunca consensualizamos. Na ficção, com textos escritos por profissionais, as frases são consequentes, têm sentido. As conversas servem um propósito (elucidar o espectador sobre as intenções dos personagens) e têm de chegar a algum lado, nem que seja instaurar a dúvida que será dissipada num diálogo posterior. E na televisão, já devem ter reparado, sabem sempre o que dizer. Talvez mais surpreendente quando pensamos nisso, na televisão fala um de cada vez, incluindo nas discussões piores do mundo, numa das artificialidades mais presentes na nossa vida e que ninguém parece dar conta.
(Se os personagens falassem uns com os outros como nós falamos na vida real, o espectador desistiria depressa de acompanhar a trama, por pura fadiga).
Um dos pontos mais fortes da série de comédia “Curb Your Enthusiasm” (várias temporadas na MAX) é ser feita com recurso à técnica de improviso. Isto significa que não houve guiões escritos, os atores têm apenas ideias gerais do que é suposto acontecer na cena. Por exemplo: o ator do personagem A sabe que vai dizer ao ator do personagem B que vão jogar golfe amanhã com o personagem C. Por sua vez, o ator do personagem B sabe que deve mostrar relutância, mas que deverá concordar com a ideia. A partir daí, entabula-se um diálogo improvisado, bem diferente da convenção, mais baralhado, espontâneo e natural porque a ação é concretizada com palavras escolhidas pelos atores e não pelos guionistas.
Quem conhece a série (criada e interpretada pelo mesmo Larry David de “Seinfeld”, e ambas são das melhores comédias em televisão de sempre) identificará depressa os diálogos meio atrapalhados, com supetões, interrupções, por vezes até gritos. Em Portugal foi traduzida como “Calma, Larry!”, que não soa muito bem, mas que merece o nosso respeito: a série é sobre ele e as suas exasperações. Nas primeiras temporadas, Larry é casado e a atriz que faz de sua mulher não fazia a menor ideia da história do episódio. Isto é, ela (a atriz) saberia tanto como a personagem que interpretava. A ideia (conseguida) era que Larry pudesse fazer todo o tipo de trapaças e a sua mulher parecesse perdida no meio daquilo tudo. Já os outros atores sabiam o contexto geral, o que torna as cenas bem diferentes. A contrário do que se possa pensar, em “Curb Your Enthusiasm”, os atores repetiam várias vezes os takes até conseguir um que parecesse suficientemente natural para entrar na versão final do episódio. Isto é, e para que se perceba, as coisas não saíam necessariamente à primeira, eram improvisos e improvisava-se até se atingir um certo nível. A conclusão é óbvia: mesmo a confusão dialogante que esteve na base da qualidade e da popularidade de “Curb Your Enthusiasm” teve de ser encenada para nosso benefício.
Confusos? É porque estamos habituadíssimos à modelação da TV convencional, como estamos habituados a que o bife chegue escoltado com batata frita ou que o empregado nos abra a garrafa de vinho. Um dos desafios que a popularidade das séries de streaming poderia ter agarrado seria a de uma maior proximidade ao real. Como não estão vinculados a audiências e a intervalos para publicidade, a convenção dos diálogos claros e estabelecidos podia ter sido dilacerada e outras linguagens e caminhos poderiam ter sido explorados. Não aconteceu, nem pouco mais ou menos. Mais inventiva, correndo mais riscos, tendo personagens dúcteis servindo histórias menos convencionais, ainda assim, as séries de qualidade seguem a longa tradição de falar um de cada vez, com objetivos definidos e claros. O mesmo é dizer, o streaming é televisão ponto final.
Para uma maneira fácil de ser introduzido no universo “Calma, Larry”, seguir este mapa da mina.
Sugestão
Uma das originalidades da nossa televisão é esta de os departamentos de informação dos três canais cobrirem o território do documentário de média duração. Se retira alguma autonomia ao género documentário, tem a vantagem de estas reportagens serem exibidas em horário nobre, mesmo quando a temática parece não ser a mais forte à partida. Como aconteceu com “Bichos da Nossa Terra”, agora na Opto, uma espantosa reportagem sobre as raças autóctones portugueses, algumas das quais em vias de extinção.
Com cerca de meia-hora de duração, filmagens tremendas do nosso país e da nossa realidade, a reportagem é jornalismo exemplar. Tem a maturidade e inteligência cada vez mais raras de não infantilizar as gentes do campo, antes conferindo-lhes uma identidade sólida e segura. São compatriotas de um tipo a que não estamos habituados a ver nos nossos media retratados como pessoas tão autónomas como outras quaisquer.
Conhecemos um engenheiro informático que cria gado da raça maronesa na sua terra, Ribeiro de Pena. A dignidade austera e calma surpreende e desarma. A reportagem mostrará outros criadores de maronesa, cientes da importância do que fazem, sem queixume, com discurso claro e estruturado, usando tecnologia, tratando os bichos da nossa terra da forma mais benévola que lhes é possível.
O jornalista Carlos Rico nunca aproveita as deixas para carpir a doutrina de um mundo que se perdeu, preferindo deixar que os protagonistas da reportagem expliquem como é a sua vida na terceira década do século XXI. Aprendi que a maronesa é autóctone de Portugal, como são outras. Com a cumplicidade do câmara Carlos Artur Carvalho e um cuidado trabalho de edição de Francisco Carvalho, “Bichos da Nossa Terra” rasga-nos o horizonte: por cá, temos 52 raças autóctones, entre perus, vacas, ovelhas, cabras, burros, galinhas, mais do dobro do que a muito maior Espanha. Uma cientista explicará os motivos possíveis para termos a ovelha merina, a lã, o burro da Graciosa, vaca algarvia e burro do Sorraia, galinhas portuguesas. Do banco português de germoplasma animal vem a sentença simples: a biodiversidade é cuidada e guardada para as futuras gerações. Tudo sem tocar a sineta do coitadinho, da desgraça, do esquecimento.
Tenho para mim que os grupos de comunicação social privados (como aquele em que trabalho) se defendem mal da tendência crescente de os acusarem de estarem ao serviço de interesses, seja os dos governos ou outros quaisquer.
Reportagens que são pequenos documentários como este “Bichos da Nossa Terra” não seriam possíveis sem investimento, concreto, bem com o talento e o cuidado de muita gente da SIC. Atente-se como os grafismos de Patrícia Reis e Ricardo Trancoso elevam a qualidade do discurso e das imagens e a hábil correção de cor de Jorge Carmo e o acabamento sonoro de Octaviano Rodrigues fazem a diferença. Longe, a anos-luz, da pobreza imediatista do discurso raivoso das redes sociais, é uma reportagem de onde saímos mais informados e sensibilizados. Se não for entendível por aqueles que veem conspirações em todo o lado, que peças de ourivesaria televisiva como esta sejam apreciadas e valorizadas pelas futuras gerações.
Até para a semana.