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Black Mirror: a rainha das séries distópicas ressuscitou com um saco de dinheiro, chips, luzinhas e portais do tempo

Apresentando "Black Mirror", da esquerda para a direita: Susie Liggat (produtora), Charlie Brooker (autor), Emma Corrin (atriz), Jessica Rhodes (atriz) e Haolu Wang (realizadora=)
Dave Benett

Numa história que se venha a fazer do meio televisão, estas primeiras décadas do século XXI serão assinaladas como marcos de qualidade acrescida. Por causa da evolução da tecnologia aplicada aos meios de produção, as séries puderam ir ganhando uma textura, uma luz, uma edição e uma atmosfera sonora mais próximas das do cinema.

Uma forma de o comprovar de forma expedita é ver um episódio qualquer da primeira temporada de “Os Sopranos” (MAX), ainda em 4x3 e com luz de frigorifico, com um episódio das séries finais, já a dominar a luz (em especial a ausência desta) e num mais confortável 16x9.

O criador e showrunner é o mesmo, os atores e as tramas idem, as câmaras e microfones, os computadores onde se edita aquilo tudo e os mecanismos de pós-produção é que são outros, bem diferentes.

Em “The White Lotus” (MAX), cuja terceira temporada terminou recentemente, como em “Adolescence” (Netflix), para falar de outro título muito visto e referido, uma parte importante da proeza artística deve-se à tecnologia.

Neste “The White Lotus” tudo é mais escuro, a série tem uma cinematografia muito distinta das duas primeiras, mais abafada e onírica — temos planos que quase parecem ter tomado cogumelos alucinogénios. As outras são mais telenovelescas, esta é mais RTP-2, talvez seja esse um dos motivos por que alguma crítica e muitos espetadores se fartaram, quem sabe.


Em “Black Mirror”, cuja sétima temporada acaba de estrear na Netflix, é precisamente a ciência, no sentido de tecnologia capaz de mudar a nossa vida, que é outra vez o grande protagonista. Não a ciência que nos trouxe o corta-unhas e as janelas basculantes, mas a ciência com luzinhas, botões e microchips.

Sendo eu da geração que assistiu na RTP a “The Twilight Zone”, “Hitchcock Apresenta” e “Contos do Imprevisto” e viveu ainda dentro da era dourada da ficção científica, é difícil ser verdadeiramente surpreendido por aquilo que hoje em dia se chamam séries distópicas.

“Black Mirror” é a rainha dessas séries e se até há poucos anos era apreciadíssima pela crítica, nos últimos anos acusa um certo desgaste que parece inevitável, ainda que certas opções criativas tenham sido menos felizes.

Começou por ser uma produção do inglês Channel 4 e estreou em 2011. Demorou anos a ser descoberta, ia sendo cancelada por ser muito cara (sendo antológica, todos os episódios são como filmes autónomos, donde cenários, roupas, atores são diferentes, o que torna tudo muitíssimo mais caro) mas conseguiu impor-se como a produção de referência da geração atual daquele universo temático das “tecnologias mazinhas que nos vão tramar, temos de ter cuidado, o mundo está perigoso”. “Black Mirror” conseguiu salvar-se porque a Netflix abriu a gaveta e tirou de lá uma saca de dinheiro.

Em boa hora o fez.

Como seria de esperar, com mais uma trintena de episódios, há muitos francamente bons e originais e outros mais plastificados. O que é inegável, parece-me, é a imensa atração que a televisão tem por estes temas. Nesta temporada ainda só vi dois episódios, de que gostei bastante.

Há um back to basics – as histórias são outra vez mais domésticas, comezinhas, o sumo é extraído de um desenvolvimento tecnológico que nos fará ficar fixado ao ecrã. Era essa a promessa original que parece estar de volta. Num dos episódios, um homem de meia-idade revisita um amor antigo através de fotografias.

A novidade?

No mundo “Black Mirror” existe um software que permite que ele entre de novo naquele mundo, como um portal que lhe permite viajar no tempo. Pessoalmente não tenho o menor desejo de voltar ao passado, mas fiquei com vontade de ver os outros episódios desta sétima temporada.


Sugestão

Escondidíssima na plataforma Showtime está a magnífica “Fight Night – The Million Dollar Heist”. Adoraria saber quantas pessoas em Portugal terão visto todos os episódios. Talvez pudéssemos marcar um jantar, uma mesa pequena deve bastar.

Inspirada por acontecimentos reais sucedidos aquando do regresso à competição do campeão de boxe Muhammad Ali, em 1970, em Atlanta, a série parte de um podcast que conta uma versão da história oral da festa a seguir ao combate e do que lá aconteceu: um assalto daqueles que se dirá serem “do século”.

Kevin Hart, Don Cheedle, Samuel L. Jackson, Terrence Howard são alguns dos atores de topo, numa produção com figurinos e cenários (e automóveis de época) incríveis, texto magnífico. A série é cómica sem nunca deixar cair o seu propósito dramático.

Seguimos para perceber se os poderosos gangsters assaltados vão conseguir apanhar os ladrões de vão de escada que os roubaram, passeando os olhos pela história de Atlanta e da América daquele tempo.

Quem gosta da estética dos anos 70 (é o meu caso) tem ali um festim. Aconselho vivamente que se leia isto, caso os detalhes históricos e os temas raciais daquele tempo se apresentem intrigantes a partir do visionamento desta série, que tem momentos de comédia, momentos Tarantino e ritmo suficiente para que queiramos ver como termina.

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