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West Wing: vista de 2025, com Trump e as suas doidices, o idealismo, o fundo moral e a bondade fazem desta série o “Duarte & Companhia”

Aaron Sorkin, a mente que idealizou o sucesso
Axelle/Bauer-Griffin

Uma das artes que mais merece ser aprimorada é da revisita às séries. Em inglês soa melhor – diz-se rewtach – e é uma indulgência praticada com algum secretismo e até uma pequena dose de vergonha.

Que é como quem diz, alguém está tão cansado, desmotivado e desatento que só anda a ver a série Xis outra vez, porque não tem força, motivação, conhecimento ou atenção para mais, muito menos para as novidades. Isto resultou numa das grandes surpresas na era do streaming, com as novas gerações a descobrirem séries dos seus pais ou pelo menos dos seus tios.

“Friends” (Max) é caso mais claro, mas “Suits” (Netflix), a série de advogados em que Meghan Markle ficou conhecida, é outro exemplo dos últimos anos. Concebidas para serem doseadas em episódios semanais, tornaram-se sucessos de binging.

Não, isto não é sobre "Friends", embora também seja sobre "Friends"
Kevin Mazur

Assim, o que na indústria se chamam de séries de library (ou seja, de biblioteca, de arquivo), e que se vendiam quase ao desbarato a canais afiliados e do resto do mundo, são uma parte importante da oferta dos streamers, pelo menos de alguns.

É preciso ter vários tipos de novidades, mas também é indispensável ter um lote apreciável de produções mais ou menos clássicas e antigas. Recordando sempre o que venho aqui dizendo: o objetivo número um de streamer é que o utilizador não suspenda ou termine a sua subscrição, portanto quantos mais episódios houver em “Friends”, melhor para a Max.

É certo que se lembra deles, mas não, isto também não é sobre "Lost"
Marco Garcia

Recentemente, “Lost” (Netflix) é uma descoberta que está a ser feita pela nova geração e “Anatomia de Grey” (Disney), “A Teoria do Big Bang” (Disney), “How I Met Your Mother” (Disney), bem como as animações para adultos do tipo “Family Guy” (Disney), são outros pratos a serem devorados por novos espetadores ou por espetadores antigos que passeiam pela familiaridade de outro tempo. A imprensa da especialidade americana chama-lhes séries de conforto.

E tem razão.

Pessoalmente, não tenho muito paciência para revisitar séries demasiado antigas, porque temo que se quebre qualquer coisa. Há uns seis meses distraí-me e fui ver de novo “The West Wing” (Max) e uma parte de mim morreu de vez.

Sim, é sobre "West Wing", com o grande Michael Sheen
Michael Caulfield Archive

A série, do celebrado Aaron Sorkin, estreou no outono de 1999 e é sobre um grupo do staff do presidente americano na Casa Branca. Típica série de jornalistas e de intelectuais e críticos (venceu 27 Emmy), daquelas que se lança nos jantares quando o assunto é “qual foi a série de que gostaram mais”, “The West Wing” aparece num mundo pré-11 de Setembro, em que a hegemonia dos Estados Unidos era de tal forma aceite de forma pacífica, que os próprios argumentistas acabam por ter dificuldade em arranjar enredos consistentes.

Vista do agora, do 2025 com Trump e as suas doidices, o idealismo, o fundo moral, a bondade, que nem a proximidade ao poder supremo consegue afetar em“The West Wing” fazem da série uma espécie de “Duarte e Companhia”. Mesmo na forma, envelhece muito mal.

A iluminação tem um glow típico dos telediscos com modelos de pernas longas, a resolução do vídeo é diferente para pior, é tudo mais poroso, os planos, a realização, a edição estão ultrapassados, tornando-se referências para se mostrar numa aula qualquer de evolução da linguagem televisiva. Penteados, roupas, cabelos, comportamentos, computadores avantajados e telefones fixos prejudicam a nossa relação e afetam a ligação que conseguiremos vir a ter com aqueles personagens mais bondosos que Cristo alguma vez foi, que evoluem no mundo sério e a sério e que tanto se apreciou então.

O elenco e a produção da multipremiada série
Gregg DeGuire

Em especial as primeiras temporadas são de uma candura típica da televisão generalista americana de valores liberais (ou seja, de esquerda, na versão americana) daquela era em que pensar que veríamos séries cínicas e negras pela internet no que chamaríamos de plataformas era uma congeminação tão desapropriada como carros sem condutor.

Por algum motivo, as séries assentes numa certa parvoíce (“Friends”), cómicas (“Seinfeld”) ou exageradas e lamechas (como “A Anatomia de Grey”) são mais simples e agradáveis de ver anos depois. Porque talvez a televisão, pelo menos a de antigamente, não seja bem para levar a sério.

“The West Wing” vale pela memória, corre na nossa mente como uma banda sonora com bonecos de um tempo que o telefone fazia trrrrimmmm, ninguém comunicava por redes sociais, os russos tinham perdido a guerra e as causas das coisas eram luxos ingénuos — como o presidente americano ter um miúdo negro órfão de mãe como assistente pessoal a partir do terceiro episódio da primeira temporada, depois de haver queixas porque o elenco era todo caucasiano.

Ter adorado “The West Wing”, cuja realização trepidante hoje parece uma opção errada (os atores parecem mensagem de WhatsApp com pernas, estão sempre a ir de um lado para o outro, apressados, atarefados, urgentes) tem mais a ver connosco, com a imagem que gostamos de projetar, com aquilo que valemos e com o tempo que vivemos do que com a sua qualidade intrínseca.

As crianças veem filmes da Disney, os mais humildes têm as suas telenovelas, os que esforçam por se convencer que são humildes têm os monólogos dos personagens de bom fundo moral de Aaron Sorkin para lhes dar esperança num mundo melhor. Virtus et Scientia?

Digam de vossa justiça.

Sugestão 1

O excelente Gary Oldman, em "Slow Horses"
Mike Marsland

Há muita fortuna escondida em algumas revisitas de séries de streamers. Em “Slow Horses” (quatro temporadas na Apple +, desde 2022), há mesmo muito para se ganhar revendo os episódios.

Da primeira vez ficamos com uma ideia geral dos personagens e das histórias, na segunda podemos ter mais concentração no magistral trabalho dos atores e numa terceira conseguiremos verificar a qualidade do texto.

A ótima ideia de base do escritor Mick Herron, de criar uma unidade de agentes fracassados dos serviços secretos ingleses com rabos de palha, telhados de vidro e pulgas na asa, tudo ao mesmo tempo, é muito bem aproveitada pela televisão.

O magnífico Gary Oldman faz o obnóxio Jackson Lamb e lidera um elenco forte e compacto. Como um daqueles magníficos tapetes de Portalegre, as tramas vão-se construindo perante os nossos olhos até chegarmos (em cada temporada) a um final lógico, recompensador e elaborado para quem teve a inteligência de estar a ver a série e que deixa janelas abertas para as seguintes.

Sugestão 2

Keira Knightley, a protagonista de "Black Doves"
Samir Hussein

Em contrário, “Black Doves” (Netflix) é um bom entretém, mas sem essência. Oca como um búzio, onde “Slow Horses” é substância, “Black Doves” é estilo. Buracos no argumento, atores mais fracos, implausibilidades de cinco em cinco minutos fazem rir, mas ajudam-nos a escapar do stress e dos problemas.

Se está aqui sugerida é para que se veja ora um episódio de “Slow Horses”, ora um de “Black Doves”. Há quem coma Lays de pacote com bife do lombo e não queira outra coisa.

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