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Zero Day: nem o grande Robert de Niro salva esta salada de verão monótona, daquelas de alface, tomate e ripas de cenoura

John Nacion

Por causa do incremento insano da tecnologia nas nossas vidas (de primeiro mundo) e do medo e vulnerabilidade que implicam, tem sido usual que a disrupção social e política através da interrupção das cadeias de abastecimento e da interferência nos processos da Democracia sejam um fim em si mesmo.

Uma história cultural

Os vilões nas ficções mais contemporâneas, são pessoas que querem dar cabo do mundo tal como o conhecemos, mas desta vez têm poderes para o conseguirem na prática.

É o que se suspeita vá acontecer em “Zero Day”, uma minissérie de seis episódios com Robert DeNiro, que estreou há pouco na Netflix. Em “Zero Day”, o mundo está em perigo e teme-se que os inimigos sejam os russos.

Às cavalitas De Niro, que interpreta um ex-presidente americano, saberemos que houve um evento que cortou a energia, os telefones e as comunicações e fez com que uns quantos milhares morressem. Quem cortou a energia à América? Quando será a próxima vez? Como se evita? Os serviços Secretos, CIA e o FBI nem sonham e teme-se que novas sabotagens suscitem revoltas civis, motins, causem mortes e aflições planetárias.

Jesse Plemons e Robert de Niro numa cena de "Zero Day"
MEGA

Só há ficção de grande público com potencial de interesse se o antagonista for credível para o espetador. Pode ser sobrenatural, metafórico, podem ser demónios interiores, mas há limites para a credulidade, que nem tudo na vida é estreito como “O Principezinho”. Não podemos ter a América com medo da Roménia, porque para que o nosso herói se nos apresente como uma representação do “Bem”, a ideação do “Mal” tem de fazer sentido e ser plausível naquele momento.

Até Putin ter invadido a Ucrânia, os russos não eram o mais popular dos inimigos, mas as coisas mudam, como explicam diariamente inúmeros comentadores. As coisas mudam mesmo. Daqui por dois ou três séculos, os historiadores conseguirão traçar uma história da América percorrendo os inimigos na ficção de grande consumo.

Primeiro foram os peles-vermelhas, depois os gângsteres tipo Al Capone, vieram os nazis e logo a seguir os soviéticos. No final do século XX, começamos a ter presença dos gangues de latinos nas cidades e dos regimes ditatoriais e dos traficantes de droga de repúblicas imaginárias da América Latina, seguido de agentes perdidos da antiga cortina de ferro.

Mais tarde, usaram-se abundantes mercenários saídos das guerras na antiga Jugoslávia, o Islão de Saddam primeiro e o de Bin Laden depois, bem como o Daesh, nunca esquecendo em várias fases os doidos megalómanos da tecnologia, os tecnoczares de tipo Elon Musk e os mafiosos de raiz italiana instalados sobretudo em Nova Iorque e arredores.

Pelo meio, mas com menos frequência do que talvez pudéssemos imaginar, o inimigo oriental, fosse chinês, japonês (as tríades) e norte-coreano, ainda que ultimamente os chineses sejam menos visados porque (dizem os passarinhos) há muito capital chinês investido em plataformas e estúdios de Hollywood e seria insensato chamar-lhes inimigo.

Pior, só escrito pela IA

O elenco recheadinho de estrelas desta série não a salva de uma escrita indigente
Dia Dipasupil

Posto isto, e porque só alguns têm o poder para apagões, é provável que em “Zero Day” o causador da disrupção seja alguém ou alguma identidade que não nos surpreenderá completamente. A série é suficientemente competente para se arquivar na prateleira do “vê-se bem num fim de semana”, mas também é uma ilustração da lógica Deus dá nozes a quem não tem nem dentes, nem sequer gosta de nozes.

A história é-nos contada como prevemos, guiando-nos pela floresta de aparências, as tampas vão sendo colocadas nas caixas, este personagem tem o que merece, aquele ali também, há dois ou três que continuam ambíguos, mas felizmente temos um De Niro entre o carrancudo e o decidido a mexer as engrenagens.

Com dois ou três telefonemas, tem mais gente a trabalhar com ele que a Sonae em hipermercados. Em dois ou três dias, já se fez mais que muitos governos em oito anos. Tudo e todos são seguidos e vigiadíssimos - exceto as incursões de alguns personagens por zonas mais cinzentas da legalidade, que miraculosamente escapam sempre a câmaras e drones.

Todas as leis são cumpridas, exceto a que não dão jeito. Todos os personagens prometem, mas não temos tempo e muitas morrem ou desistem de ter interesse ao fim de (literalmente) cinco minutos. Nem todas as séries têm de ser incomparáveis e inesquecíveis, o entretenimento não é arte. Mas aqui os problemas são novos.

Robert de Niro e a realizadora Lesli Linka Glatter durante as gravações
Jose Perez/Bauer-Griffin

Aposta fortíssima da Netflix, “Zero Day” tem, por exemplo, excesso de recursos. Desde logo, conta com demasiados atores secundários de qualidade superior cujo talento não salva a falta de mão na escrita. É pensoso ver Jessie Plemons (“Fargo”, “Breaking Bad” e inúmeros filmes), Connie Britton (“The White Lotus”), o extraordinário Bill Camp (“The Night Of”), Dan Stevens (“Downton Abbey”), além de Lizzy Caplan, Angela Bassett e Matthew Modine, entre outros, sem papéis com o mínimo interesse, no meio de um argumento que faz uso desgovernado de todos os lugares-comuns sobre poderosos, políticos frágeis e às aranhas e populações manipuladas e enraivecidas.

“Zero Day” é uma salada de verão monótona, daquelas de alface, tomate e ripas de cenoura, ligada por um molho qualquer que alguém que não percebe nada de palatos. Tudo o que podia ser bom, ficou mau. Uma série escrita por IA dificilmente seria pior.

O chefe de gabinete com vida dupla. O ricalhaço misterioso que bebe whisky com 500 anos devagarinho e ri como todos os vilões que planearam matar James Bond. A ativista tecnológica no espectro, que sabe tudo, tem meios para tudo e usa bonés dentro de casa. O videocaster redneck, que faz vídeos inflamados a partir de uma cave, onde se usa um ator muito diferente da imagem de Joe Rogan, não vá haver algum processo em tribunal inesperado. O homem da CIA com peso a mais que nunca diz o que pensa. A chefe de gabinete que teve um affair com o presidente e a mulher do presidente que sabe tudo, não esquece, mas perdoa. A presidente dos Estados Unidos em versão mulher, de meia-idade, negra e decidida.

O grande Bill Camp também faz parte desta trama
Bruce Glikas

Como se fosse de propósito, nenhum destes personagens tem interesse, fazendo com que a série possa muito bem vir a ser usada numa faculdade com cadeiras exigentes de escrita de argumento, como exemplo de talento e dinheiro desperdiçado. O personagem De Niro até teve um filho que morreu, cujo fantasma o assola, sem que os argumentistas sejam capazes de nos justificar. No fim, o espetador saberá mais acerca do que interrompeu o ‘sistema’ e quem o fez. Mas não saberá tudo, porque a vida é mesmo assim, pode ser que exista uma sequela.

O que é extremamente duvidoso é que exista uma memória passadas algumas horas depois de se ter terminado o sexto e último episódio de “Zero Day”.


A sugestão

O ator Hugh Bonneville, que conhecemos sobretudo de "Downtown Abbey"
Miikka Skaffari

Não conheço muita gente que tenha visto “Douglas Foi Cancelado” (SkyShowtime), mas os que viram, gostaram imenso. Série inglesa, curta, trata de um apresentador de TV da velha guarda que é cancelado por uma piada sexista. Alguém a ouviu, fez um tweet e a carreira do jornalista vai pelo cano porque a sua ambiciosa colega de canal parece fazer questão que assim seja.

Parecia ser só uma comédia, mas engrossa depressa e, como muito poucas, consegue andar pelos caminhos do que (agora) chamamos de questões Woke, sem se chamuscar ou ir pela via mais fácil. Cómica a tratar de assuntos sérios, mantém suspense até ao fim (que raio foi afinal a piada sexista que o tipo contou, haveremos de nos questionar durante bastante tempo) e tem Hugh Bonneville (o de Downton Abbey) a liderar um elenco muito competente. Quatro episódios que se veem com muito interesse.

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