O closed circle mystery (crime cometido dentro de um determinado círculo de gente) foi um tropo narrativo criado por Agatha Christie em “And Then There Were None”, originalmente publicado em 1939. Depois, outros autores não resistiram ao género onde (sumariamente) um grupo de pessoas sortidas se encontra num mesmo sítio (um comboio, uma ilha, um hotel, um navio, etc) onde coisas acontecem e cadáveres aparecem, sem que se perceba quem foi/foram os culpados, a não ser no final.
Em televisão, o género closed circle é menos explorado do que se imagina. E nos casos mais célebres nem há crimes, só romance e aventuras, como em “Love Boat/ O Barco do Amor”, que também é uma das pouquíssimas séries de uma hora a conter gargalhadas enlatadas, tornando imediata (mas talvez não rigorosa) a sua classificação como comédia – em França, onde as gargalhadas enlatadas não se usam, “O Barco do Amor” foi tida como uma série de aventuras, apesar do título ser “La Croisière s'amuse” (qualquer coisa como “O Cruzeiro Divertido”) e das situações convidarem ao divertimento.
Nesta esquiva entre comédia e aventura começa o encanto do closed circle mystery que é “The White Lotus”, as duas temporadas estão disponíveis na Max. Reconhecida como uma excelente série pela crítica e público, na primeira temporada passaremos férias com várias pessoas num resort no Havai, chamado precisamente The White Lotus. No começo do episódio inaugural, estamos num aeroporto e vemos um corpo a ser embarcado num avião, pensaremos no que terá acontecido: como morreu aquela pessoa? Saberemos no fim, porque estamos no tropo certo, mas testemunharemos como Mike White, o autor da série, decidiu fazer pouco da inspiração de Agatha Christie e consegue que a questão do corpo-no-caixão não paire demasiado por cima da nossa atenção.
Em muita da trama, aliás, aquele fica esquecido no quarto, como um par de óculos de escuros deixado na mesa de cabeceira. Na segunda temporada, que decorre na Sicília, o nosso querido cadáver aparecerá a intrometer-se no banho de mar de uma das personagens, numa aparição que dura menos de um minuto até lermos no ecrã o gigante “one week earlier” e passarmos ao que interessa, a vidinha pedestre dos nossos personagens. Mike White pode andar a elaborar sobre a lógica de Agatha Christie, mas o espetador não o sabe, pelo que é inevitável que julguemos que tanto num caso como no outro, o culpado(a) seja algum dos convivas. É melhor não dizer mais nada e convidar a ver a série (seis episódios na primeira temporada e sete na seguinte) para conferir expectativas (ou rever) e apurar papilas gustativas para a nova temporada.
“A Covid teve coisas boas”, talvez tenhamos ouvido dizer. Se teve, uma dessas é esta multipremiada “The White Lotus”, cuja terceira iteração estreia neste domingo (segunda em Portugal) e que só existe por causa da pandemia. Aflitos por verem as suas produções paradas e não terem produto novo para estrear (e assim temerem cancelamentos nas subscrições), os responsáveis da HBO encomendaram literalmente “qualquer coisa” a Mike White, que não se fez rogado, assentou o título num papel e escreveu todos os episódios sozinho. Por causa da condição Covid, situou todos os atuantes num resort Four Seasons sem clientes, no Havai.
O resultado é um tratado aguçado, divertido e nem sempre simpático sobre gente que White retrata vidrada na sua própria concupiscência, decadência moral e demais finuras éticas e filosóficas. O resultado é muito divertido e várias vezes brilhante e surpreendente porque, no fundo, para White, somos todos um bando de tarados, como diria alguém que conheço. Na produção da primeira season, e por causa de hipotéticos contágios, os atores ficaram no resort onde os seus personagens evoluíam perante as câmaras, almoçando juntos, tal como as cenas dos personagens, sem zonas nem staff privados, nada das manias de Hollywood – ali, estrelas de primeira, segunda e terceira grandeza estiveram no mesmo contexto covidiano de reclusão (o que por si só, daria uma outra série, um meta “The White Lotus”, quem sabe).
Na segunda season, filmada em Itália depois da pandemia, há mais latitude, mas no essencial tudo se passa num resort da mesma cadeia (imaginária) The White Lotus. Hoje, a marca é uma das mais fortes da HBO/ Max, sendo virtualmente infinita, porque a cada temporada todo o elenco se renova, praticamente sem exceção. E porque os atores são tão humanos como nós, os melhores fazem fila para poderem embarcar nas próximas vidas da produção, considerada um exemplo quase perfeito da elevada categoria a que a televisão chegou nos últimos anos. Entre a farsa e o ritmo faustoso das melhores telenovelas brasileiras de grande produção, com personagens e maquinações definidas com traço nítido, “The White Lotus” pôde ser mais adulta e ter personagens mais aviltados do que normalmente teria acontecido se não fosse um produto da circunstância Covid.
É verdade que assinala a glorificação do privilégio branco e do dinheiro, expõe (sem chatear demasiado com lição de moral) os microproblemas de primeiro mundo, não foge à assimetria entre empregados e hóspedes, mas diria que talvez a principal qualidade de “The White Lotus” (em especial na primeira fornada) seja a circunstância de ser uma série de hoje para gente crescida, mas à antiga, dir-se- ia, daquelas que uma pessoa se diverte, de tipo “O Barco do Amor”, com histórias carregadas de tensão erótica, recheadas com as mentiras, desilusões e expectativas que circundam os assuntos de cama.
Não se pode dizer que no fim os personagens tenham mudado muito, se tenham transformado, não houve ‘viagem’, muito menos há closure, ensinamento. Todos – ou quase – continuam superficiais, velhacos, egocêntricos, emocionalmente ausentes, como se calhar muitos de nós pareceremos a terceiros que nos espreitam a cinco metros de distância, no pequeno-almoço do hotel. Na segunda temporada tivemos o Aperol, na primeira os colares de flores, é provável que na terceira tenhamos a simpatia insistente dos tailandeses, uns pauzinhos de incenso e uns passeios de elefante. Tudo ótimo, desde que a perversidade geral se mantenha naquele enquadramento geral divertido. Falando por mim, gosto de ficção que faz mais do que tangentes à vida real e não teme essa aproximação.
A sugestão
O excelente “Anatomia de uma Queda” está na Prime, onde aterrou sem se dar por isso. Venceu a Palma de Ouro em Cannes e o óscar para melhor argumento original (entre dezenas de outros prémios e nomeações) e tem a magnífica Sandra Huller como protagonista. É um caso raro de filme independente que (aparentemente) parece um filme corrente.