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Clarkson’s Farm: um trator Lamborghini, aselhices, erros, precipitações e demais incompetências que fizeram de Jeremy um herói

O desconcertante Jeremy Clarkson em pose
Jeff Spicer

A propósito de figurões televisivos, tem passado ao lado de grande parte do público português a magnífica série “Clarkson’s Farm”, que leva três temporadas na Amazon Prime. Estreada em 2021, trata simplesmente de um citadino – Jeremy Clarkson, o polémico, vocal e odioso ex-apresentador do programa Top Gear, da BBC — a tentar ser agricultor-ele-próprio, na quinta que havia comprado para fugir aos impostos, no countryside inglês. A ideia (e depois série) tinha tudo para ser um catálogo de figuras ridículas de um homem de meia-idade com quase dois metros de altura, admirador de Thatcher, que veste casacos Barbour, circula de Land Rover e tem um trator Lamborghini do tamanho de um brontossauro.

Assim é.

Nos 25 episódios já disponíveis, pouco mais vemos que as suas aselhices, erros, precipitações e demais incompetências em sementeiras, colheitas, e lidas com animais, entre ordenhas, tosquias e pastos. O tipo nem consegue lavrar a terra em linha reta, para desespero enervado do seu ajudante-colaborador-vizinho, Kaleb Cooper, um rural que nunca andou de comboio, avião, barco ou táxi na vida e muito menos venera o Clarkson da televisão.

A espetacularidade em televisão depende muito do dinheiro e a Amazon Prime tem-no em abundância. Além do trator Lamborghini, Clarkson usa escavadoras e máquinas de todo o tipo na quinta, como se este programa fosse um Top Gear de máquinas agrícolas (em certa medida, sim, também é e ainda bem). Só que “Clarkson’s Farm” é mais, muitíssimo mais, do que estas aparências e serve para demonstrar de novo que há personalidades da televisão típicas e há personalidades da televisão excecionais.

Jeremy Clarkson, em muitas ocasiões da sua vida em público a perfeita besta-quadrada, pertence ao pequeno mundo das segundas. A primeira temporada foi filmada em tempo de Covid. Revela bem a tremenda dificuldade que é trabalhar o campo, fazer agricultura, estar à mercê dos elementos, ser refém do trabalho físico, ter de saber o que fazer e fazê-lo no tempo certo. Para nossa surpresa, e mesmo com mau feitio bonacheirão e ritmado de Clarkson, este apresenta-se em situação de vulnerabilidade, humildade genuína e até desesperado.

A sua capacidade infinita de se dar à morte (i.e., não temer o ridículo, nem de fazer figuras tristes) e da ainda maior capacidade que a Reality TV tem de nos seduzir com coisas que talvez seja mesmo assim, talvez sejam encenadas, feitas na linha fina entre a verdade e a caricatura, tornam o conteúdo irresistível. É muito difícil parar de ver os episódios uns a seguir aos outros.

Clarkson nunca esteve tão bem como em “Clarkson’s Farm”, onde é uma mistura de quase comediante com brutamontes impaciente que não se importa de sujar as mãos, os pés e o resto de volta de ovelhas, porcos, vacas ou cabras, num caos de sujidade e dejetos nem sempre confortável de assistir. Mas a reality TV é mais barata de fazer do que a ficção também porque o espetador não se importa (até gosta…) de algumas filmagens mais rudimentares, personagens estrambólicos e assuntos chãos, desde que vá acontecendo qualquer coisa.

Clarkson, o inesperado herói dos agricultores ingleses
Richard Baker

Parece fácil, talvez seja, mas são precisos os pós de perlimpimpim certos e Clarkson e a sua produção têm-nos em abundância. Isso e inteligência emocional e tática: Clarkson é sempre carismático, mas é sobretudo ignorante em temas do campo e assume-o às claras, numa simplicidade desarmante, remetendo-se quase sempre ao tal espaço amplo da previsibilidade do tonto da cidade que (como 99% dos espectadores) não distingue o trigo da cevada. Quem brilha é Kaleb, o side-kick, o (suposto) simplório, que tem 2,7 milhões de seguidores no Instagram e um livro e o seu próprio programa de TV, “The World Acording to Kaleb”.

A série tornou-se depressa um êxito impressionante de público, tema de conversa e influência. Clarkson é hoje uma espécie de porta-voz oficioso dos interesses dos agricultores ingleses (os grandes apoiantes do Brexit, ao contrário de Jeremy), os quais agradecem a atenção, o destaque que a sua atividade e problemas vão tendo e a sensibilização para os seus produtos. Lá, como cá, a apologia dos produtos locais, cultivados com arte e carinho, também é um dos mantras da modernidade do localismo que pretende combater a globalização.

Clarkson joga esse jogo em nome do nosso entretenimento e dos seus interesses, vendendo o que cultiva e cria nas suas terras (além de imanes de frigorifico e t-shirts), mas é impossível não ficarmos convencidos de que o faz porque acredita que a agricultura inglesa tem de ser ajudada porque o apego à terra e ao arcano estão-lhe no sangue. Décadas de declarações e colunas de opinião conservadoras e ultramontanas, dão-lhe esse crédito.

No novo mundo campesino de Clarkson que vamos vendo ser erguido diante de nós, do hambúrguer de carne de veado que ele próprio abateu a tiro, a mel, passando por cogumelos, mostarda, cerveja, sidra, carne de vários tipos, há de tudo. Se o espetador não prova nada, consegue perceber que tudo se extrai com dificuldade da terra, bem como das leis, regras, regulamentos, manias, simpatias e antipatias das autoridades nacionais e locais. A tal ponto estas inconveniências são protagonistas na série que já houve algumas coisas legais que mudaram por causa de Clarkson e do programa. Talvez inesperadamente, nem o apresentador-protagonista, nem a produção propriamente dita, fazem pouco dos agricultores, por norma tidos como pouco sofisticados e até rudes.

Na sua vida pessoal e profissional, tudo parece ser inacreditavelmente complicado, difícil, duro e moroso, a um ponto que damos por nós a torcer para que Clarkson consiga os seus intentos. Fiquei bastante ansioso nos episódios finais da terceira temporada para saber se ele sempre conseguia que as cabras comessem as daninhas que crescem por toda a parte. Com meios e notoriedade para o fazer – e porque estamos na Reality TV, lembro — Clarkson estende a narrativa do back to basics com naturalidade até ao consumidor final, criando uma loja, tentando fazer um restaurante, um pub, acabará por criar uma cerveja e até uma loja de bricabraque física e online.

Caleb, o inefável side-kick, em frente ao simbólico n.º10 de Downing Street
Victoria Jones - PA Images

Para grande irritação da calminha aldeola nos arredores da sua quinta, esta tornou-se numa atração turística. Um dos consensos acerca das pessoas da televisão, é que estas não sabem fazer nada, pouco mais são que vácuos que dizem banalidades. É tão comum dizer, ouvir e ler este tipo de generalizações que, dir-se-ia, é um direito que as pessoas anónimas exercem com a mesma frequência com que passeiam no paredão ou fazem compras num centro comercial.

Neste caso concreto, porém, não são poucos os que afirmam que a série (renovada para mais duas temporadas) foi muito importante no recuperar da dignidade da profissão de agricultor e no transmitir das dificuldades reais pelas quais a classe tem de passar, mesmo em tempos em que a tecnologia e as máquinas tornam a agricultura menos dura. A televisão serve para fazer o Bem? Nem todos os apresentadores de televisão são uns idiotas ignorantes? Pode ser que sim.

A sugestão

A estrela de cinema Ryan Reynolds sem o fato de Deadpool posto
Matthew Ashton - AMA

“Welcome to Wrexham” é uma das melhores e mais enternecedoras séries de entretenimento documental de sempre. Os atores Ryan Reynolds e Rob McElhenney compraram um clube de futebol de enorme importância na comunidade de Wrexham, no País de Gales. Encontraram o clube moribundo, estacionado nas ligas inferiores e cidade mortiça e sem esperança, mas que mesmo assim enchia o estádio. Os dois atores investiram no clube e deram a volta à situação. Para prazer de todos, fizeram uma série com tudo o que se passou, que pouco menos é que um conto de fadas.

As três temporadas estão disponíveis na Disney + e valem muitíssimo a pena, até para quem não aprecia particularmente futebol.

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