Viva!
Antes do mais, um pedido de desculpas: nos últimos meses andei afastado deste Observatório, por manifesta falta de tempo, por motivos que não se explicam apenas pelas funções habituais aqui no Expresso. Primeiro, foi para fazer um podcast especial a que chamei Porque Falha o Estado?, depois para escrever um livro que senti como urgente – de que lhe darei contas no próximo mês. Desculpas pedidas, sigo em frente: o Observatório estará de novo nas suas mãos semanalmente.
Hoje, queria falar-lhe sobre a democracia nas autarquias. Vamos a isso?
O Jornal de Notícias escrevia ontem, segunda-feira, que o interior do país corre o risco de deixar de receber revistas e jornais. Comecei por ler essa notícia por interesse próprio: como diretor-adjunto no Expresso sei como os grupos que sobram na comunicação social portuguesa andam obstinadamente à procura de soluções para o lado mais escondido da crise dos média: fábricas de impressão de jornais que faliram, empresas de distribuição em enormes dificuldades. Ainda que a situação financeira dos jornais fosse boa – infelizmente não é assim na maioria dos casos – o risco de um dia os jornais (em papel físico) não chegarem às bancas tornou-se francamente mais real.
A notícia do JN explicava isso mesmo: que os responsáveis dos sete principais grupos de media com publicações impressas tinham pedido uma “audiência urgente” ao ministro da Presidência (que tutela a comunicação social), alertando-o para a “gravidade da situação”. E dava uma imagem: já há quatro concelhos do interior do país em que não se podem comprar jornais ou revistas: Vimioso, Freixo de Espada à Cinta, Marvão e Alcoutim.
À primeira vista, esta pode parecer-lhe uma informação corporativa. Mas na realidade contém um alerta bem mais vasto, sobre um risco sério que corremos em muitos pontos do país – e pode degenerar num problema nacional: imagine que o seu jornal, o Expresso ou outro, deixa de ser distribuído em papel; lembre-se que as edições impressas ainda são parte importante das receitas dos mais importantes jornais; e equacione que jornalismo seria possível fazer ainda com menos receitas e, portanto, com menos jornalistas. Sim, isso significa menos escrutínio do poder político, do que dizem, do que fazem e não fazem, dos contratos que assinam, dos negócios que fazem, dos acordos públicos e dos escondidos, das ilusões, mentiras e dissimulações. É esse o papel dos media e, acredite, sentiremos muito a falta no dia em que não existirem.
Como lhe explicava acima, este Observatório não é sobre a imprensa, é sobre as próximas eleições autárquicas e o ciclo político que se vai seguir. Porque o cenário de que lhe falei aqui em cima já é uma realidade em muitas zonas do país.
Um estudo da Universidade da Beira Interior realizado em 2022 indicava já que mais de metade dos concelhos em Portugal tinha pouca ou nenhuma cobertura noticiosa, 166 em 308. Entre estes, 78 não tinham qualquer meio de comunicação com sede no concelho (jornais ou rádios) e 157 não tinham qualquer meio de comunicação social digital. A isto chama-se “deserto noticioso”, um fenómeno que se espalha sobretudo pelo Interior e nos concelhos com menor poder de compra.
Estes números, porém, são de 2022. O que significa duas coisas: que a situação hoje pode ser ainda pior; e que muitos dos atuais autarcas passaram todo este mandato sem qualquer escrutínio da comunicação social. O caso é pior ainda, porque muitos dos órgãos que subsistem ou são financiados pelas próprias câmaras, ou têm tanta fragilidade financeira que acabam muito limitados na capacidade de pôr em causa os poderes locais.
Não quero generalizar, muito menos ser injusto (porque há excelentes autarcas pelo país e, sim, também muita gente séria entre os eleitos). Mas convém termos em conta que essa ausência de escrutínio serve de incentivo a muitos políticos para contornarem a lei – e talvez não seja por acaso que, entre os mais de 200 políticos investigados por corrupção desde 2017, a maioria sejam autarcas.
Como estamos a pouco mais de duas semanas das próximas eleições autárquicas, este Observatório serve de alerta. A cada um de nós, como cidadãos, para que escolhamos criteriosamente em quem votar a 12 de outubro e valorizemos os media locais como meio privilegiado de fazer democracia.
Mas este é também um alerta aos partidos: sei que, por motivos sinceros, PS e PSD têm a ideia de mudar a lei eleitoral autárquica, retirando os eleitos da oposição dos executivos camarários. Percebo que a ideia seja dar mais capacidade de atuação às autarquias e não nego que, nesta era de populismos e autoritarismos, o poder local pode vir a ser o último reduto de desenvolvimento do país (tema para outro Observatório). Mas, atenção: se um autarca já não tem o escrutínio de um jornalista e também não tiver nas reuniões da câmara os olhos da oposição, quem vai saber o que lá se passa e denunciar o que estiver mal?
Hoje fico-me por aqui. Deixo-lhe um abraço e desejos de uma boa semana. Até já!