Pedro Nuno Santos tem um problema – e não está nos sete, cinco ou três pontos de desvantagem face à AD, relevados pelas últimas sondagens divulgadas. O problema de Pedro Nuno está, antes, no que as mesmas sondagens indicam sobre o que os portugueses pensam sobre ele, enquanto líder político.
Faltando apenas sete semanas para as eleições legislativas, de pouco lhe servirá falar da Spinumviva a cada dia que passa, porque ninguém resolve um problema de imagem denegrindo a do adversário. Nos EUA, a custo, os Democratas começam a perceber isso: independentemente de Trump, lançaram-se a discutir o futuro da América. Estes dois livros deram uma ajuda – e trazem uma lição.
Os dois livros de que vos quero falar foram publicados nas últimas semanas, na pesada ressaca da reeleição de Trump e de um furioso início de mandato. Enquanto os Democratas hesitavam na resposta, Ezra Klein e Derek Thompson lançaram-se na escrita de “Abundance: How We Build a Better Future”, que começa com a descrição de uma América distante no tempo, mas muito mais apetecível. Poucas semanas antes, Marc Dunkelman publicava “Why Nothing Works: Who Killed Progress―and How to Bring It Back”, precisamente com o mesmo objetivo: explicar aos liberais americanos (que por aqui, na Europa, correspondem ao centro-esquerda) que não é possível conviver mais com a ineficácia atual do Estado – e que a esquerda precisa de voltar a construir um projeto de ambição e sonho para apresentar à América. Os pontos de partida são ligeiramente diferentes:
O argumento de Marc J. Dunkelman, em Why Nothing Works, é que a esquerda ganhou uma desconfiança tal aos abusos de poder que transformou o Estado numa "vetocracia", onde múltiplos intervenientes podem bloquear o progresso. E ilustra as consequências dessa aversão com a incapacidade de concretização de grandes projetos de interesse público, como infraestruturas, energia limpa e habitação
Em Abundance, Ezra Klein e Derek Thompson concretizam um pouco mais: dizem que o "fetichismo dos procedimentos" e regulamentações excessivas, mesmo que bem-intencionadas (como revisões ambientais, normas de segurança, preservação histórica, etc), restringiram artificialmente a oferta de bens essenciais como habitação e energia, elevando os custos e dificultando o crescimento e a inovação. E criticam a esquerda por ter centrado o seu discurso na redistribuição e na proteção contra os efeitos negativos do crescimento, perdendo de vista o objetivo de criar mais para distribuir.
Sem surpresa, foi o The New York Times a fazer o título que melhor resume o desafio que as duas obras deixam aos Democratas: “Poderão os Democratas aprender a sonhar em grande novamente?” Ou a voltar a entregar aos cidadãos uma abordagem mais ambiciosa e construtiva?
As pistas que eles deixam são interessantes:
- Enquanto a direita assume o seu tradicional ceticismo sobre a intervenção do Estado, cabe à esquerda reafirmar a capacidade do governo central de exercer o poder para o bem público, superar a atual paralisia, reduzir os "pontos de veto" que permitem que interesses particulares ou grupos minoritários bloqueiem projetos de grande escala. Só assim ela conseguirá, diz Marc J. Dunkelman, redescobrir as suas raízes, quando demonstrava confiança na capacidade do governo de realizar grandes feitos;
- Enquanto a direita reduz a sua solução ao corte de impostos, a esquerda deve criar uma "agenda da abundância", acrescentam Ezra Klein e Derek Thompson, desbloqueando o potencial das tecnologias existentes e futuras através da redução de entraves regulatórios desnecessários e de um maior foco na construção e na inovação em áreas como habitação, energia limpa, inteligência artificial e desenvolvimento de medicamentos. O argumento é que uma política focada na melhoria do progresso material pode mobilizar um amplo espectro político e superar a atual polarização.
As ideias apresentadas por estes livros tiveram pelo menos um mérito que Pedro Nuno Santos não conseguiu criar ainda: geraram um debate interessante e mobilizador dentro da esquerda norte-americana – sobretudo sobre a necessidade de interpretar a frustração dos cidadãos com ineficácia governamental – ou a incapacidade do Estado em concretizar projetos, resolver problemas e elevar a qualidade de vida. Alguns críticos, é certo, alertam para uma potencial excessiva concentração de poder, diminuição das garantias, e para o risco de os projetos serem capturados por interesses particulares.
Certo é que, hoje, nas páginas dos jornais e revistas dos EUA, começa a haver debate para além de Trump. Não que o novo autoritarismo da segunda Administração Trump não mereça crítica, denúncia e luta – é seguro que merece. Mas precisamente porque essa agenda autoritária já era clara e mereceu o voto de muitos americanos, o que mostra à evidência como os americanos preferiram o risco de eleger um autoritário ao risco de manter o status quo na América.
Por muito que custe, por difícil que seja de assimilar, os quatro anos de Joe Biden não demoveram nenhum dos apoiantes de Trump a voltar a votar nele. Não há melhor prova de que a esquerda precisa de mudar de rumo – e apresentar soluções diferentes para mobilizar os cidadãos (assim como centro-direta, mas isso seria um outro texto).
Estes livros oferecem isso mesmo: propostas de uma visão mais otimista e proativa do papel do governo na criação de um futuro melhor, desafiando pressupostos de longa data sobre o poder, a regulamentação e o papel do governo. Ao diagnosticar as causas da atual ineficácia e ao proporem visões alternativas focadas na construção e na abundância, estes livros incentivam os Democratas a sonharem mais alto e a repensarem a sua abordagem política para um futuro onde o governo possa novamente ser um agente eficaz de progresso.
‘Against all odds’
Recebo muitos emails de leitores e, hoje mesmo, uma delas perguntava-me como é possível que, um ano depois das eleições legislativas, pouco tenha mudado na intenção de voto, quer da AD, quer do PS. Boa pergunta. A estabilidade da AD não é difícil de explicar: a economia segue bem, o que ajuda à estabilidade das intenções de voto – sendo que o cansaço de oito anos de Governo PS ajuda a explicar o resto. Quanto ao maior partido da oposição, pense comigo: quando é que, na história da nossa recente democracia, um líder da oposição conseguiu ganhar eleições legislativas contra um primeiro-ministro em exercício? A resposta? Só duas vezes: a primeira contra Santana Lopes, a segunda contra José Sócrates (já depois do pedido de resgate à troika). Se reparar nos pormenores, os que venceram (Sócrates e Passos) disputavam as eleições pela primeira vez.
Serve isto para dizer que Pedro Nuno Santos está a remar contra todas as probabilidades. E se é certo que o caso da Spinumviva deixou até uma parte dos eleitores da AD descontentes, afetando a imagem do primeiro-ministro, também é verdade que a imagem que os portugueses têm de Pedro Nuno não melhorou em nada no último ano. Veja o estudo da Intercampus, por exemplo: Montenegro perdeu terreno na pergunta sobre “honestidade”, encontrando-se agora tecnicamente empatado com o seu adversário. Mas Pedro Nuno Santos está ainda a larga distância quando as perguntas são sobre quem “poderá ser melhor primeiro-ministro” (16 pontos), “melhor a construir um Governo” (16 pontos), maturidade (29 pontos), competência (14 pontos) ou mesmo nas “ideias políticas” (14 pontos). Como é que o líder do PS parte daqui para uma campanha que se vai perdendo em acusações é um salto difícil de perceber.
Não pretendo ser injusto: bem sei que o líder do PS tinha previsto um ano de “Estados Gerais” para discutir tudo isto e que a crise política se meteu pelo caminho. Bem sei que tem andado os últimos dias a fazer os seus mini-estados gerais, conversando com algumas pessoas qualificadas do partido como “retocar” o seu programa eleitoral com novas ideias. Percebo, mas não chega. Pelo que lhe deixo aquela pergunta deste texto, adaptada: “Poderão os socialistas aprender a sonhar em grande novamente?” E poderão voltar a ganhar sem isso?
Uma nota final
Permita-me a publicidade: estes dois livros de que lhe falei, assim como um outro de que já lhe falei por aqui (Failed State, de Sam Freedman) desafiaram-me a fazer um podcast, de sete episódios, procurando as causas que levam a uma certa desilusão coletiva com o Estado. Aí, falarei com ex-governantes (e um par de especialistas) que enfrentaram obstáculos, dificuldades, frustrações várias, enquanto tentavam mudar as coisas por dentro. Começa esta quinta-feira, com Miguel Poiares Maduro e Pedro Adão e Silva, discutindo as consequências deste ciclo mediático ultrarrápido em que hoje vivemos. Pode encontrá-lo por aqui, ou nas habituais plataformas de streaming, procurando por este nome: “Por que falha o Estado?”. Oxalá ajude a pensar.
O Observatório da Minoria desta semana acaba aqui. Se tiver dúvidas, comentários ou mesmo críticas, envie-me um email para ddinis@expresso.impresa.pt. Entretanto, obrigado pela companhia.