“Seria justo e até adequado, fechar tudo, abandonar tudo só porque circunstancialmente fui para Presidente do PSD e agora estou Primeiro-Ministro?”
Este sábado, com todo o Governo na fotografia, Luís Montenegro fez esta pergunta aos portugueses. Já voltarei a ela, por agora permita-me que reformule: aceitará o país que o seu primeiro-ministro receba avenças de grupos económicos, enquanto está em funções? A verdade é que não sabemos, porque isso nunca tinha acontecido. E não sabemos porque só agora o país teve conhecimento que esse é o caso de Luís Montenegro – 10 meses depois das legislativas que o levaram ao cargo.
Não foi uma surpresa agradável. Montenegro queixa-se das “especulações” e “insinuações” que no seu entendimento servem para criar uma “suspeição” sobre ele. Mas nas últimas duas semanas (para não dizer desde que tomou posse) ninguém mais do que ele contribuiu para essa suspeição. E fê-lo com declarações erradas, omissões perigosas e erros políticos difíceis de perceber.
Duas ilusões no eclodir da polémica
Parecem meses, mas passaram apenas duas semanas desde que esta história começou, numa manchete do Correio da Manhã. Tinha um ângulo diferente (a de que a empresa era de gestão imobiliária e que isso o poderia colocar perante um conflito de interesses, face à lei dos solos aprovada pelo Governo). Nesse dia, o primeiro-ministro dava uma resposta definitiva ao jornal:
“Do vasto objeto social dessa empresa, apenas a prestação de consultoria no âmbito da proteção de dados pessoais teve execução”.
Acontece que isso não correspondia à verdade. Seis dias depois, na discussão da moção de censura do Chega, o próprio Montenegro revelaria que a maior faturação da empresa em 2021 e 2022 se justificava (em cerca de “metade do volume de negócios”) por um contrato de “reestruturação de uma empresa familiar de comércio de combustíveis” – serviço que assume ter realizado pessoalmente.
Quando respondeu ao Correio da Manhã que a sua empresa só tinha feito consultoria em proteção de dados, Montenegro queria encerrar a polémica, tentando provar que não havia conflito de interesses relativamente à lei dos solos. Mas a 18 de fevereiro o jornal voltou à carga, afirmando que o chefe de Governo estava a violar o Código de Conduta aprovado pelo seu Governo. Montenegro respondeu assim:
“Sinceramente, não há nenhum conflito de interesses”.
Três dias depois, daria a resposta inversa no debate da censura – quando Pedro Nuno Santos lhe perguntou diretamente se um dos seus clientes era a Solverde. Montenegro confirmou e acrescentou: “É publico que sou amigo pessoal dos acionistas e vou impor-me inibição total em relação a essa empresa em particular. E o mesmo farei com todas as outras com quem tenha estado relacionado.” A isto chama-se, claro, uma incompatibilidade por conflito de interesses.
Demasiadas omissões
No fim do Conselho de Ministros deste sábado – que não tomou sobre isso qualquer decisão formal – o chefe de Governo voltou a este ponto: “Sempre que houver qualquer conflito de interesses por razões pessoais ou profissionais não participarei nos respetivos processos decisórios”. Problema: Luís Montenegro não nos disse ainda que casos serão esses, sendo indeterminado se os declarou aos membros do Governo que tenham de os decidir.
O mistério é maior ainda, porque no comunicado da Spinumviva, emitido na sexta-feira depois da manchete do Expresso, continuam a ser omitidos os clientes dos serviços “ocasionais” prestados pela empresa. Não sabendo os clientes, ninguém poderá fiscalizar os conflitos de interesses potenciais.
A omissão é o pecado original deste caso. Na comunicação ao país, Montenegro afirmou que "ninguém descobriu nada" sobre este caso: “Tudo isto foi declarado por mim, está tudo na minha Declaração de Interesses.” Pequeno problema: ninguém conhece essa Declaração de Interesses – porque o próprio não a tornou pública, e porque a Entidade da Transparência recusa dizer, até, se a recebeu, alegando “dever de sigilo”. Assim como ninguém antes sabia da existência da empresa. Ou tão pouco se percebeu no debate da moção de censura que empresas como a Solverde continuavam, até agora, a pagar-lhe avenças.
O facto é que tudo o que veio a público, e que permite aos eleitores fazer o seu julgamento, só se soube porque outros fizeram perguntas ao primeiro-ministro: o Correio da Manhã, por duas vezes; o Parlamento, aquando da censura; o Expresso, quando revelou os 4500 euros por mês de avença da Solverde. Foi só aí que o mesmo Montenegro que dizia “não poder” divulgar a lista de clientes acabou por o fazer; foi só aí que também decidiu mudar a empresa para as mãos apenas dos filhos, retirando a sua mulher – com quem casou em comunhão de adquiridos – da equação. Isso não aconteceu porque “para alguns, os esclarecimentos nunca serão suficientes” – como dizia o chefe de Governo. Aconteceu porque a revelação a conta-gotas dos contornos da empresa forçou Montenegro a recuar, passo a passo.
Erros políticos
É plausível que Luís Montenegro acredite intimamente que não há qualquer problema na sua relação com esta empresa. Mas é um erro político acreditar que caia bem aos eleitores uma desconfiança que se instale sobre a sua probidade. Ou, pior, que afirme (como fez no sábado) que “temos de confiar nas pessoas e nas instituições e obviamente confiar também na fiscalização institucional e democrática.” É ao contrário: os políticos é que têm de provar, consistentemente, que são merecedores dessa confiança. Para quem tanto valoriza as perceções, é estranho que Montenegro não tenha percebido ainda que vivemos numa era de desconfiança – e que lhe cabe a ele dar o exemplo.
“Não pratiquei nenhum crime nem tive nenhuma falha ética por isso”, disse Montenegro aos portugueses este fim de semana. Se o país acreditar será apenas por fé. Porque ele não permitiu até agora que os portugueses o verificassem. Depois de passar duas semanas a dar respostas erradas e a omitir dados, Montenegro voltou a nem responder a qualquer pergunta dos jornalistas no último sábado, voltando a alimentar o “ciclo vicioso” de que se queixa.
De resto, a permanente atitude de vitimização com que de Luís Montenegro enfrentou o caso levou-o (e ao seu Governo) para o mais perigoso dos lugares.
Paulo Rangel, por exemplo, foi à SICNotícias falar de “vouyeurismo” e “pornografia”. Não são e basta o exemplo da Solverde para o ilustrar. Este sábado, o jornal Público contava que o grupo tem interesse em concorrer a uma licença adicional para gestão do Casino da Póvoa, que não detém neste momento. Mais, acrescentava que um grupo espanhol tinha interesse, desta vez, em concorrer à licença do Casino de Espinho, que o grupo da família Violas detém. O conflito de interesses de Montenegro, de que só soubemos agora (e não por iniciativa dele) terá, num e noutro caso, enorme impacto no concurso que acontecerá no final do ano, pela simples razão de que os concorrentes conhecem o caso e tentarão usá-lo em seu benefício. Se o processo não for absolutamente transparente, o Estado arrisca-se a ir para tribunal por causa disto. E não basta a Montenegro dizer que fica fora do processo decisório: ele é chefe de Governo, não participará no Conselho de Ministros que o vai decidir?
É por isso que, ao contrário do que concluía Luís Montenegro na sua declaração de sábado, não é a oposição que tem de dar respostas ao país, ou ao Governo. É ele que tem de se disponibilizar a, de uma vez por todas, responder a todas as dúvidas que ainda existam sobre este caso.
O epílogo
Voltamos à pergunta de Luís Montenegro na declaração ao país deste sábado: “Seria justo e até adequado, fechar tudo, abandonar tudo só porque circunstancialmente fui para Presidente do PSD e agora estou Primeiro-Ministro?”
A resposta caberia ao próprio, mas no dia em que subiu a primeiro-ministro. Muitos governantes antes o fizeram, porque ser primeiro-ministro é uma opção, foi a sua opção. Montenegro quis as duas e manteve a empresa, que agora decidiu passar aos seus filhos. A Spinunviva continuará com os clientes que ele próprio angariou, alguns dos quais impactados diretamente pelas suas decisões enquanto chefe de Governo.
Vale a pena lembrar: este Governo nasceu em circunstâncias especiais, tão frágil quanto determinante para a saúde do sistema. Com tudo contra ele (e algumas falhas pelo caminho), Luís Montenegro tornou-se num ativo: sem que o PSD conseguisse descolar do PS, sem que o Chegue perdesse força, a sua popularidade foi subindo passo a passo, dando à AD segurança suficiente para continuar.
Hoje, ao fim destas duas semanas muito difíceis, há já notícias de um incómodo (ainda) mais ou menos silencioso no PSD, ouvimos críticas de quem tem peso no PSD (como Miguel Poiares Maduro) e do CDS (como Paulo Portas), sabemos que Marcelo não atendeu o primeiro-ministro (que, de resto, não o terá avisado do que ia dizer ao país).
Se “seria justo e até adequado, fechar tudo", o primeiro-ministro de circunstância terá de perguntar aos portugueses. Pode até ser que estes aceitem, mas a avaliar pelos passos que foi dando, não está a jogar à sorte num casino, está mesmo na roleta russa.