Para perceber o verdadeiro problema do PSD basta olhar para os números das sua últimas eleições internas: há cinco meses Luís Montenegro foi reeleito com os votos de 16.661 militantes. É um terço da lotação do Estádio de Alvalade num jogo do campeonato e um quarto do Estádio da Luz. Acresce que a eleição de Montenegro acontece uma vez em cada dois anos, ao passo que há jogos na Luz ou em Alvalade todas as semanas, quase sempre com os estádios cheios. Eis a imagem da “vitalidade” dos partidos.
Desça, agora, ao nível da concelhia de Lisboa do PSD e adivinhe quantos militantes votaram no líder que, nem por acaso, é primeiro-ministro: 266. É claro que, com este escasso nível de militância ativa, se torna muito fácil controlar o aparelho. E muito difícil que alguém o controle a ele.
Não admira a bola de neve que temos visto crescer: as suspeitas surgem, a desconfiança dos cidadãos cresce, os líderes condescedem – dando espaço a que outras suspeitas apareçam. Luís Montenegro esteve por um fio, agora, para seguir o mesmo caminho. Desta vez, atalhou a tempo, retirando poder aos acusados no Tutti-Frutti. Mas isso não basta – neste Observatório da Maioria, tentarei explicar porquê.
É importante sublinhar isto: o processo Tutti-Frutti reporta a factos muito anteriores à direção de Luís Montenegro. Feito o disclaimer, a verdade é que o atual líder do PSD andou anos a fugir do problema. O exemplo mais claro disso é o do inquérito interno que foi pedido a Carlos Costa Neves (hoje secretário-geral do Governo): quando foi anunciado dizia-se que iria “apurar factos” e admitia “procedimentos disciplinares”. Isto foi em junho de 2023, quando a PGR decidiu acelerar uma investigação que já ia longa e depois da publicação pela TVI de novas suspeitas. O que aconteceu ao inquérito interno? Nada apurou. O que aconteceu aos suspeitos? Continuaram em funções e, nalguns casos, foram até nas listas de Montenegro às legislativas, uns meses depois. Longe iam os dias em que Hugo Soares prometia solenemente que o PSD "não pactuará com qualquer falha ética ou de legalidade".
Sublinho, porque é importante: “ética” ou “legalidade” (e não apenas a legalidade).
Porque a palavra “ética” é mais importante do que nunca na política, mas também porque tinha sobre os ombros o caso de Miguel Albuquerque, Montenegro impôs aos seus candidatos a deputados um “compromisso” escrito, com regras imperativas. A saber: qualquer um deles que fosse condenado em primeira instância não poderia ser candidato – ou teria de suspender o mandato. A regra aplicava-se, também, a quem tivesse sido “pronunciado”, ou a quem fosse sujeito a medidas privativas de liberdade", sempre que estivessem em causa crimes contra o Estado (corrupção, peculato, abuso de autoridade, etc).
Vale a pena traduzir, face ao exemplo concreto do Tutti-Frutti: face a estas regras, nenhum dos agora acusados neste processo teriam de suspender mandatos. Tão pouco seriam afastados das listas de candidatos às autárquicas. Como o Expresso explicou na última sexta-feira, foi essa a primeira reação da direção do partido: Hugo Soares ainda pressionou os que eram deputados a suspender (visto que não eram obrigados a isso), Moedas fez o mesmo com o seu vereador, mas todos continuaram em funções nas Juntas de Freguesia, assim como na distrital e concelhia do PSD, com plenos poderes para escolher as listas de candidatos às próximas autárquicas.
Lá está: com a legalidade, todos cumpriam. Com a ética é que não. Para alguma coisa ainda serve a opinião pública, ou a tão criticada “bolha mediática”: Montenegro reuniu a sua Comissão Política esta terça-feira e decidiu que todos os candidatos a Lisboa serão, afinal, decididos pela direção nacional.
Em abono da verdade, nas últimas legislativas PSD e PS foram mais longe do que os outros partidos na definição de regras éticas. Mas a sua linha vermelha era (e é ainda) difusa, só forçando uma renúncia no momento da pronúncia. Ou seja, um deputado pode ser arguido, pode até ser acusado e só terá de suspender funções (caso do PSD) ou renunciar a ele (PS) se um juiz de instrução confirmar pelo menos parte da acusação. Em tese, faria sentido. Um político pode ser constituído arguido na sequência de uma denúncia por meros indícios (que o Ministério Público tem o dever de investigar). Um político pode também ser acusado, como se viu no caso da Madeira (ou do Influencer) sem que o juiz dê o menor provimento aos argumentos dos magistrados. Na prática, tirar consequências automáticas de uma acusação pode deixar os políticos na mão do Ministério Público.
A regra pode ser de bom-senso, mas é em cima dela que é precisa a ética – para nem dizer a verdadeira liderança. Sobretudo na política, mais ainda nos dias de hoje. Não é preciso recordar os índices de impopularidade dos políticos, nem como essa desconfiança se arrastou às instituições. Bastava Luís Montenegro ir rever o quanto afundou Portugal no Índice de Perceção da Corrupção, publicado esta semana pela Transparência Internacional. Como explicou por meias-palavras Marcelo esta quarta-feira, bastaria ao primeiro-ministro valorizar tanto a “perceção de corrupção” como valoriza a “perceção de insegurança” para ter evitado o embaraço – e explicar aos acusados que era tempo de sair de cena (até mesmo das lideranças da concelhia e distrital do PSD).
Ainda é tempo, para PSD e PS. Mas demora tempo: reconstruir a confiança dos portugueses nos políticos implica ser frio com o aparelho. Mas, acima de tudo, implica tratar da reconstrução dos próprios partidos. Há cinco anos, Leitão Amaro deu um bom contributo, numa moção ao congresso do PSD assinada também por Miguel Poiares Maduro. Propunha a introdução de primárias, substituir o pagamento de quotas por participações em eventos, uma “Academia Política” para formar militantes e ainda a criação de uma Comissão de Ética interna que avaliasse os candidatos a deputados e autarcas. Essa moção, acredite, foi aprovada no congresso de 2020, ainda antes de Montenegro ser eleito líder. Recuperá-la, sim, era um bom princípio.
P.S. Desde a acusação do Tutti-Frutti ao recuo de Montenegro passou uma semana. E, tirando Teresa Leal Coelho e José Eduardo Martins, que foram vítimas das manobras dos agora acusados, quase não se ouviram vozes no partido a pedir o óbvio. Eu sei, muitos dos velhos barões já não estão cá (e alguns envelheceram mal), mas ainda há quem, no partido, mereça ser ouvido – até alguns apoiantes da atual direção. Será que Manuela Ferreira Leite ou Leonor Beleza não tinham nada a dizer sobre isto?
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