Observatório da Minoria

Mea culpa na Educação: o que devemos aos leitores e a desconfiança que o ministro gerou

Filipe Amorim/Lusa

Há duas semanas, o Ministério da Educação quis fazer um anúncio público: o número de alunos sem aulas a pelo menos uma disciplina desde o início do ano letivo tinha caído 90% face a 2023. Uma semana depois, o ministro fez mea culpa e admitiu que não há dados fiáveis sobre alunos sem aulas: "Lamento ter indicado aquele dado, hoje não o teria feito". O Expresso tinha feito manchete da primeira e, claro, deu relevo na capa à segunda. Mas pelo meio há uma história que deve ser contada – história essa que me fez renascer a fé no papel do jornalismo numa sociedade desconfiada e, simultaneamente, muito ceticismo sobre o estado a que chegou o Estado português.

Hoje, neste Observatório da Minoria, queria falar-lhe um bocadinho sobre isto.

Discutimos muito as notícias que temos em mãos, aqui no Expresso. E esta, em particular, mereceu muita atenção antes de ter chegado à primeira página da nossa edição semanal. A meio dessa semana – faz já 15 dias – , a nossa editora da secção de Sociedade contou-nos que, nos contactos que mantemos com o Ministério da Educação (assim como fazemos com outros, com a oposição, com outros setores) tínhamos percebido que Fernando Alexandre se preparava para anunciar dados favoráveis sobre a colocação de professores na escola e que se dispôs a falar connosco sobre eles em antecipação.

Logo aí, nesse momento, houve um alerta: lembrámo-nos que o PS (em particular o ex-ministro João Costa) tinha já acusado o seu sucessor de manipular os critérios para apresentar dados mais favoráveis ao Governo. A editora sabia, assentiu, e falou com a jornalista para que ela procurasse garantir que não era o caso.

A missão ficou a cargo da Joana Pereira Bastos, uma jornalista experiente, profissional, muito cuidadosa. Numa conversa durou ao que sei cerca de meia hora, Fernando Alexandre foi questionado sobre os números e também sobre as dúvidas que tinham sido lançadas pelo PS. O ministro garantiu que tinha a certeza sobre os números que nos dava (a tal redução de 90% dos alunos sem professor), assim como sobre o rigor da comparação. E aceitou ser citado em 'on' sobre tudo isto.

Foi assim que o tema chegou à manchete do Expresso, nessa semana. Mas não sem outra discussão feita entre portas, uma que se repete, ano após ano, Governo após Governo: faz sentido dar esse destaque a um anúncio do poder político? Concluímos que sim, lembrando que isso aconteceu também no tempo de António Costa, entre outros. O critério é, só pode ser, o do interesse público – e era inequívoco que aqueles dados eram importantes e marcavam uma mudança positiva nas escolas. O mundo, felizmente, não é só de más notícias.

Só que havia uma má notícia a chegar.

O turbulento dia seguinte (e as dúvidas que nos assaltaram)

Nessa mesma noite, alguns jornalistas do Expresso começaram a receber mensagens que os alertavam para problemas nos números. Ao ponto de termos começado a nossa reunião de todas as manhãs a discutir as dúvidas que começavam a surgir sobre os números que estavam na nossa manchete.

Gostava que acreditassem nisto, porque é a pura verdade: não há nada que um jornalista tema mais do que ter incorrido num erro. Ou de ter sido manipulado.

Infelizmente, temos razões para desconfiar. Também deste Governo:

  • Logo no arranque da legislatura, escrevemos que o Governo ia aplicar uma enorme redução de IRS, coisa que o ministro das Finanças revelaria 24 horas depois não ser assim. Nesse caso, assumimos os nossos erros, mas denunciámos o "embuste" de um Executivo que tinha enganado meio país até em campanha eleitoral;
  • Na Saúde, temos vindo a anotar vários casos de falta à verdade, desde os números errados no Orçamento do Estado sobre os resultados do SNS, aos dados errados sobre doentes oncológicos, passando pelos mapas das escalas das urgências que afinal estavam mal feitos, até ao ‘diz que não disse’ sobre a greve no INEM;
  • Nas Infraestruturas também passámos a desconfiar, quando fizemos manchete sobre as novas casas que o Governo prometia construir, que o PS garantia ser o mesmo (ou até menor) do que o já estava contratualizado. Na melhor das hipóteses, concluímos entretanto, será bem menos do que o dobro prometido;
  • Houve ainda a notícia de que o alargamento de licença parental (em discussão no Parlamento) iria custar €400 milhões – o que podia colocar em causa o défice – mas que afinal era quase metade disso;
  • E, já agora, o caso da ministra da Cultura que desmentiu ao Expresso a demissão da presidente do CCB, acabando por fazer precisamente isso apenas 15 depois.


Por tudo isto, quando a líder parlamentar do PS deu uma conferência de imprensa, na manhã dessa sexta-feira, a acusar o ministro da Educação de mentir sobre número de alunos sem aulas, desconfiámos a dobrar, mesmo que, contactado logo pela manhã, o Ministério mantivesse os dados.

Insistimos. A Joana Pereira Bastos correu até à escola onde Luís Montenegro e Fernando Alexandre iam anunciar e explicar os dados. Ela ouviu tudo e ficou a falar com ele, com os secretários de Estado e com uma responsável da direção-geral. No fim do dia, ela escreveu este texto: Ministro da Educação reitera que cumpriu meta de 90%: "São dados oficiais da Dgeste".

Mas não descansou. Procurou especialistas, exigiu os mapas oficiais ao Ministério, falou com quem, no PS, tinha mais dúvidas. Como jornalista, respeitada pelas pessoas com quem falou, a Joana acabou o dia com uma dúvida ainda maior: não tinha qualquer motivo para desconfiar que, neste caso, alguém estivesse a enganá-la deliberadamente.

O Ministério da Educação, depois da insistência da Joana a pedir os dados em bruto que sustentavam a anunciada redução de 90%, enviou quatro ficheiros Excel ainda na tarde de sexta-feira. A hipótese mais provável, disse-me ela ao fim da tarde, era que houvesse um problema com os dados da Direção-Geral, mas era preciso olhar para eles com atenção e cuidado.

Nesta altura, sabíamos já que o ministro tinha pedido esclarecimento das dúvidas à direção-geral. E ouvimos o ex-ministro João Costa na SIC-Notícias, evitando usar a palavra “mentira” e admitindo algo similar. Sorri com o caso pela primeira vez: falando com um lado e o outro, o Expresso acabava por esfriar os ânimos de uma discussão política cada vez mais polarizada. Mas faltava quase tudo: perceber o que se tinha passado e, afinal, quais eram os números certos.

O mea culpa e o que ele destapa

Os jornalistas ficam inquietos quando se instala a dúvida. Dormem mal, dão voltas à cabeça, insistem no tema enquanto não percebem tudo.

Ao caso, na segunda-feira de manhã nenhum órgão de comunicação social tinha ainda conseguido esclarecer o caso. Na reunião da manhã, os editores decidiram que, mesmo que não tivesse mais respostas do Ministério, a Joana falaria com especialistas e faria um explicador sobre o tema – nem que fosse para assumir aquilo a que não conseguiríamos responder. Devíamos isso a todos os leitores.

Mas nesse dia a Joana Pereira Bastos voltou à carga, já com a ajuda da Isabel Leiria, que tinha estado fora do país e voltou a tempo de ajudar a analisar os quadros Excel que o Ministério enviara. As duas concluíram que os dados tinham várias incoerências – como a repetição de dados por concelho e poucas variações do número de alunos sem aulas ao longo do ano letivo. Insistiram com o Ministério para que os explicassem devidamente.

Decidimos esperar, mas na quarta-feira de manhã mantinha-se o impasse: ainda só tínhamos recebido os referentes a este ano. As jornalistas do Expresso avisaram o Ministério que diriam aos leitores tudo, incluindo o que o Governo não nos entregava.

Foi na quarta-feira ao final da manhã que recebemos a indicação do Ministério de que fariam um mea culpa – e que havia um problema grave com os dados. A Joana e a Isabel receberam um texto, mas falaram de novo com o ministro. E escreveram este texto para a edição semanal, que antecipámos online na quinta-feira: Ministro faz mea culpa e admite que não há dados fiáveis sobre alunos sem aulas: "Lamento ter indicado aquele dado, hoje não o teria feito".

O que tiramos de tudo isto

Chegámos ao final do processo com um misto de sensações. Recompensados por termos insistido até à exaustão com o Ministério, por termos levado o ministro a pedir mais dados, a olhar para eles com redobrado cuidado (e menos imodéstia), acabando por reconhecer um erro grave. E tristes por, sem querer, termos dado voz a números errados, percebendo que temos de ser mais exigentes e cuidadosos até com os que são oficiais.

Misto de sensações também por outro motivo: percebemos que foi melhor chegar a esta conclusão do que termos mais um caso em que Governo e oposição se acusam de mentir, num jogo político que não leva a lado algum; mas percebendo que a não fiabilidade dos dados oficiais é um problema sério, estrutural e grave – para o país e para o nosso trabalho.

Hoje, agora que a Joana Pereira Bastos já consegue dormir mais descansada, estamos confrontados com a impossibilidade de acreditar na informação que nos chega do Ministério da Educação. E se isto é assim na Educação – um ministério grande, sensível, importante – não sabemos bem o que esperar dos outros ministérios e organismos do Estado, nem o que podemos ter como fiável nas notícias que já escrevemos ou que havemos de escrever.

Há, nesta triste conclusão, um problema inescapável no Estado português: como é que um ministro, qualquer que seja, pode escolher as políticas para resolver problemas se não pode confiar nos números que tem na mão? Se a desconfiança nos políticos já é grande, como é que se reconstrói assim? Como e por que razão as equipas das direções-gerais (o coração de cada Ministério) chegaram ao ponto de trabalhar dados que não são fiáveis?

Sim, acredito que Fernando Alexandre não nos mentiu. Mas errou ao não verificar os dados, como lhe competia fazer. E acabou por usar a fragilidade dos dados do seu Ministério como escudo para a sua falha. Agora expôs em público uma fragilidade que lhe competia ter resolvido com a sua equipa.

Veremos o que se segue. Se é assim, se é preciso uma auditoria, que se estenda a outros ministérios e que isso sirva para melhorar toda a informação do Estado no futuro. Já nos basta duvidar da palavra de alguns políticos, não há espaço para duvidarmos de cada decisão que tomam.

Como nos dizia Luís Assunção, um leitor do Expresso que esteve connosco no Junte-se à Conversa, onde já falámos sobre este tema esta quarta-feira,

“a quem interessa que os jornais, TV's e cidadãos passem a discutir números sem qualquer base de rigor?”

Boa pergunta Luís, fiquei a pensar nela. Espero que este Governo a tenha presente também.

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