Parece que o Almirante Gouveia e Melo decidiu largar a carreira militar e abraçar uma candidatura presidencial, já a partir de março. Parece que muitos políticos se assustaram com isso e que alguns comentadores ficaram mesmo preocupados com a ascensão de um militar ao Palácio de Belém, cerca de 40 anos depois de Eanes. Percebo o susto de uns e o pânico de outros, mas estou em crer que é excessivo: o risco de Gouveia e Melo na Presidência não é ele ser militar, é outro. E talvez nem seja um perigo, mas um aviso.
Neste Observatório da Minoria, tento explicar-lhe porquê.
É melhor começar por explicar o pânico de alguns, porque há razões históricas que o justificam. Experimente, por razões de conforto e rapidez na pesquisa, perguntar ao ChatGPT, quais são os riscos de um militar na Presidência e terá prontamente à mão uma lista de tópicos. Começo por estes:
- Risco de militarização da política, com maior controlo do Governo pelas Forças Armadas (como tivemos com o Conselho da Revolução, até 1982);
- Polarização e instabilidade social, “especialmente se o militar tiver apoio das Forças Armadas, mas não da maioria da população”;
- Potencial para desrespeito aos direitos humanos, como “perseguições políticas, desaparecimentos forçados, tortura e repressão a grupos opositores”;
- Risco de autoritarismo, como restrição da liberdade de expressão, censura aos media, ou repressão de opositores políticos e enfraquecimento das garantias constitucionais – em nome da “ordem e a estabilidade”;
- Criação de um precedente perigoso, “encorajando outros militares a envolverem-se na política e desestabilizando a ordem constitucional”;
- Desconfiança internacional: a comunidade internacional, especialmente as organizações que defendem os direitos humanos e a democracia, “pode ver essa mudança como um retrocesso e isolar o país politicamente ou impor sanções”.
Lendo isto, salta à vista que uma eleição de Gouveia e Melo é inofensiva para a nossa Democracia. Siga comigo: Portugal tem, há quase 50 anos, uma Constituição sólida, imune a retrocessos ou à militarização do Estado – sem que dois terços dos deputados abram esse espaço numa revisão futura; o papel do Presidente não é Executivo, pelo que as ameaças à liberdade de expressão não partem de Belém; não existe na estrutura militar qualquer tentação de subversão da ordem política; não é conhecida qualquer posição do Almirante contrária ao respeito dos direitos fundamentais; e, mais, sendo a eleição direta e unipessoal, Gouveia e Melo teria sempre o apoio da maioria dos votantes – pelo que o país estaria perfeitamente a salvo de tensões com os seus aliados.
Os manuais de história do século XX explicam que estes eram riscos muito sérios no auge da guerra fria. Mas o que os manuais de Ciência Política de hoje nos explicam é que os regimes autoritários já não se impõem, como antigamente, com tomadas de poder feitas pelas armas. Leia “A ditadura adaptada ao século XXI” e perceberá como “uma nova geração de políticos trocou as fardas militares pelos fatos de marca”, fazendo com que o que aconteceu no Chile e Uruguai em 1973, na Argentina em 1976 ou no Brasil em 1964 estejam hoje fora de causa (como prova a facilidade com que o golpe de Bolsonaro caiu por terra).
Sim, é verdade que a ameaça autoritária persiste e que vivemos tempos de visível regressão democrática. Só que, agora, os ditadores vestem-se de Prada, como dizem os autores daquele livro:
“Em vez de julgamentos que eram autênticos espetáculos ou brutais campos de detenção, estes novos ditadores controlam os cidadãos através da manipulação e de ações aparentemente democráticas, para construir a sua base de apoio.”
É por isto que os críticos de Gouveia e Melo estão a olhar para o lado errado da equação: o que nos deve preocupar não são os riscos da eleição de um militar para Belém, é o contexto em que essa eleição se revela possível em pleno século XXI.
Por outras palavras, a pergunta que nos devemos colocar é esta:
Por que é que Gouveia e Melo aparece como favorito?
A resposta a esta pergunta está na fragilidade das instituições democráticas, ou na crise institucional que enfraqueceu o sistema político. Há vários estudos que a atestam, mas veja por exemplo este, publicado pela OCDE há escassos meses:
- Em Portugal, só 32% confiam (ainda que moderadamente) no Governo central, abaixo dos 37% registados nos restantes países da organização;
- Os partidos políticos (18%) e o Parlamento (31%) são as instituições em que menos se confia em Portugal;
- Apenas 43% dos portugueses estão satisfeitos com os serviços administrativos que utilizaram – um importante fator de confiança na função pública – em comparação com a média da OCDE de 66%. Neste campo, notam-se sobretudo níveis baixos de satisfação relativamente ao SNS, à justiça com são tratados os pedidos de apoio ao Estado e à (in)capacidade de proteger vidas em cenários de emergência;
- Mais problemático ainda, todos os indicadores de confiança desceram nos últimos dois anos, como atesta o gráfico em baixo:
Tudo isto ajuda a explicar as más prestações nas sondagens dos potenciais candidatos vindos dos partidos: todos eles estão, justa ou injustamente, colados à perceção de que os políticos não têm resolvido os problemas quotidianos. Ao que se junta a ideia (muito visível nas comemorações do 25 de novembro esta semana), de que os políticos se entretêm em jogos de palavras, muitas vezes contribuindo ativamente para a má imagem que os cidadãos têm deles – com vergonha de subir os seus salários, quando trocam a disputa por ideias por acusações pessoais, quando falham na ética, na palavra, na proximidade.
O perfil público de Gouveia e Melo parece contrastar: o Almirante resolveu a distribuição das vacinas, no mais difícil dos momentos e contra a maioria das expectativas; e manteve-se visível à frente da Marinha, aproveitando a sua rara visibilidade para passar a mensagem da sua utilidade à frente desse ramo das Forças Armadas. Claro que, de caminho, foi abrindo o caminho para uma candidatura presidencial, conseguindo ótimos resultados nas sondagens.
A candidatura pré-anunciada serve, portanto, de aviso aos políticos e aos principais partidos. Mas será também um perigo?
Para não cair no erro de fazer juízos pré-concebidos, fui reler as várias entrevistas que ele deu à imprensa nos últimos anos. E percebi que o discurso que foi preparando, alinhando, testando, o coloca como um candidato muito forte nas eleições de janeiro de 2026. Repito o que lhe disse ainda há pouco: há um perigo, sim, mas não será aquele que eu próprio identificava como provável.
O que nos foi dizendo Gouveia e Melo, o pré-candidato?
O pressuposto mais frequente sobre o posicionamento do Almirante é de que se trata de um militar com tendências populistas. Mas não é verdade: apesar da tentativa de colagem de André Ventura, Gouveia e Melo não está nem perto do discurso do Chega. Trago-lhe alguns exemplos:
- "Eu não tenho nada contra o poder político, acho que é uma coisa muito nobre” (Correio da Manhã em dezembro de 2021);
- “Os partidos são essenciais para a democracia, que não sobrevive sem partidos. Mais uma vez, esta ideia do ‘são todos corruptos’: se são todos corruptos, então somos todos corruptos, não são só os outros. Há gente muito boa nos partidos, e os partidos são a forma como conseguimos congregar ideias políticas. Demonizar a política é péssimo para a democracia” (Expresso, dezembro 2021);
- “Os negacionistas são gente que vive numa bolha de desinformação, que se autodiminuiu” (Noticias Magazine, dezembro 2021);
- "A maior ameaça está relacionada com as alterações climáticas. Não quero ser apocalíptico, mas quando penso nos meus filhos e netos, não posso deixar de estar preocupado” (Noticias Magazine, dezembro 2021);
- “O nosso país tem muitos problemas que tem de resolver. O que é perigoso é a simplificação de soluções. E haver certas forças políticas que advogam soluções muito simplificadas que podem ser perigosas em termos de execução” (Noticias Magazine, dezembro 2021).
Outra das críticas que lhe têm sido feitas é sobre a ausência de pensamento sobre o país. Quem o diz anota, ao mesmo tempo, que um militar não deve falar de política. Mas Gouveia e Melo, claro, não o evitou grandemente:
- “Vamos imaginar que alguém é condenado ao fim de 10 anos? É Justiça? A Justiça tem de ser célere” (Correio da Manhã, abril de 2024);
- "Tem de haver uma classe média forte para afastar as pessoas dos extremismos” (Correio da Manhã, abril de 2024);
- “Tenho agora um conhecimento superior do SNS, das fragilidades e potencialidades. O SNS mostrou grande capacidade de organização e resiliência na pandemia” (Noticias Magazine, dezembro 2021);
- “O centro deve ser forte e deve encontrar soluções” (DN, maio 2024);
- “Estamos nesta ambição de distribuir a riqueza inexistente, que não produzimos. E um dia vamos acordar sem riqueza para distribuir. Temos de ter a ambição de produzir riqueza para poder distribuir” (Expresso, dezembro 2021);
- “Sou do centro pragmático. Umas coisas mais à esquerda, outras mais à direita. É preciso que as pessoas tenham fé no sistema: se trabalharem e produzirem, a distribuição não fica acumulada e também vem para elas. Temos de criar um sistema minimamente justo, para que isto aconteça” (Expresso, dezembro 2021).
Já sobre o mundo de hoje, o Almirante em nada destoa do mainstream político português:
- “Dois dos pilares da nossa segurança e prosperidade, a NATO e a UE, poderão vir a ser submetidas às maiores provações e testes de stress” (DN, maio 2024);
- “Se a Europa for atacada e a NATO nos exigir, vamos morrer onde tivermos de morrer para a defender” (DN, maio 2024);
- “A guerra na Ucrânia vai fazer repensar muitos dos modelos atuais. A Europa vai ter de se defender” (DN, maio de 2023);
- "Sempre existiu a tentada de criar um pilar europeu dentro da NATO, mas é o mesmo que dizer que temos um clube de futebol e que querem criar mais dois dentro desse clube. Já temos um clube, chama-se NATO, e tem a vantagem de unir as duas partes do atlântico. Começarmos a pensar numa só parte pode fazer como que a outra parte ache que já não vale a pena estar tão unida a nós" (DN, maio de 2023);
- “Quem levou a Finlândia e a Suécia para a NATO foi o sr. Putin” (DN, maio de 2023);
Por fim, a mensagem política – mas não partidária: ambição, com um cheirinho a ‘ordem’, fazendo lembrar o de Cavaco Silva quando apareceu lá nos idos anos 80:
- “A Saúde tem muitas coisas, todos os ministérios têm. Este país levava anos a endireitar” (Nascer do Sol, junho de 2021);
- “Faltam-nos líderes com visão política, para definir objetivos, estratégias e encontrar recursos para os cumprir. Se defino objetivos irrealizáveis, por não ter recursos, o que vou fazer? Passar a vida a escrever papéis e a deixar as coisas a degradarem-se? Porque quero manter-me num pseudo-lugar com um pseudopoder? Isso revolta-me. A população deve ser ambiciosa” (Expresso, dezembro 2021);
- “Acho que devíamos fazer uma revolução cultural e de atitude que nos libertasse dos pesos que há anos nos prendem ao chão” (Noticias Magazine, dezembro 2021);
- “A maioria das pessoas são pessoas do bem. Se calhar, faltava-lhe um bocadinho de ordem” (Noticias Magazine, dezembro 2021);
- “Não estou a ver que Portugal tenha de ser um país pobrezinho, um país de coitadinhos, um país periférico. Todos nós temos de lutar” (Nascer do Sol, agosto 2024).
Isto é um aviso ao PSD e PS
Por tudo isto, não admira que os políticos se assustem. É claro que Gouveia e Melo se posicionou, com tempo e método, como um forte candidato presidencial. Tem gravitas, tem discurso e posiciona-se onde os partidos têm tido mais dificuldades em afirmar-se, na concretização.
Henrique Gouveia e Melo será, por isto tudo, um candidato difícil de bater.
- As sondagens posicionam-no como favorito e a passagem à segunda volta parece bastante à mão;
- Terá uma longa campanha com forte exposição, provavelmente maior do que os adversários – sobretudo se PSD e PS insistirem em manter-se à margem do processo, sem apressar calendário – abdicando de ir à procura dos candidatos mais fortes e de garantir a unidade interna a partir daí;
- Pode ter ao lado vários candidatos, porque as direitas parecem insistir em marcar presença e as esquerdas mais ainda. Aliás, tendo em conta a vontade e os egos de muitos, até nos dois maiores partidos há riscos claros de haver sobreposições;
- Mais importante ainda, Gouveia e Melo tem um discurso tão longe da direita radical que será improvável que o partido que ficar de fora da segunda volta apele ao voto no candidato do adversário direto – seja o ligado ao PSD ou ao PS. Mais ainda quando é provável que, logo a seguir, venham eleições legislativas antecipadas.
O verdadeiro risco de Gouveia e Melo
Não tenho, portanto, ilusões. Gouveia e Melo tem hipóteses reais de chegar ao Palácio de Belém. O seu maior risco, creio, é um outro que ainda não vi referido: o almirante gosta de se apresentar como um “fazedor”, impaciente quando não vê as vontades alinhadas na direção em que quer, preparado para – como o método próprio de um militar capaz – meter as mãos na massa e resolver os problemas pessoalmente.
O azar é que se esteja a candidatar a um cargo onde não poderá fazer nada disso. Na Presidência da República pede-se alguém que conheça os protagonistas, que saiba trabalhar a fina arte da filigrana política, que consiga criar os incentivos para que os partidos se alinhem, na época mais turbulenta e perigosa da política nacional dos últimos 50 anos. Sempre de fora, sem qualquer poder Executivo.
Um Presidente é um influente, se for bem-sucedido. Se não o conseguir, não será nada – arriscando-se a prejudicar tudo.
Exato, é aí que quero chegar: se não tropeçar na campanha, onde terá de ir mais ao concreto em cada tema, Gouveia e Melo será um forte candidato. Mas será ele realmente um bom Presidente?
O Observatório da Minoria desta semana acaba aqui. Se tiver dúvidas, comentários ou mesmo críticas, envie-me um email para ddinis@expresso.impresa.pt