Observatório da Minoria

O fim dos silêncios: sete desafios para Montenegro (e Marcelo), na posse e depois dela

Os ministros cessantes tinham ordem para arrumar os gabinetes até segunda-feira, às 21h00, pelo que o dia antes da posse do novo Governo foi, para quase todos, de passagem de pasta. É uma das tradições mais simbólicas da democracia e, nestes dias do século XXI, serve para medir a sua resiliência. Lembre-se que Donald Trump não fez a tradicional reunião com Joe Biden, nem esteve na posse do seu sucessor, depois da tentativa de insurreição que apoiou no célebre 6 de janeiro.

Por cá, as formalidades que trazem um significado cumprem-se, ainda: Costa tomou um café com Montenegro em Bruxelas, recebendo-o depois em São Bento; os seus ministros fizeram o mesmo, após a Páscoa, deixando trabalho de casa feito e pastas entregues. No Palácio da Ajuda, onde haverá a posse, António Costa e os seus ministros cessantes cumprirão a formalidade de passar o testemunho. André Ventura só esta manhã decidiu que vai – tinha marcado uma conferência de imprensa para minutos depois, na sede do partido que fundou.

A legislatura que entra será a primeira de uma nova fase da democracia parlamentar portuguesa. E, em consequência, a primeira que se inicia na absoluta incerteza sobre quanto tempo durará. Os dois protagonistas do dia 1, o Presidente o novo primeiro-ministro, guardaram um prolongado silêncio sobre o que se segue. Hoje, acabará o período de resguardo. O que se segue são os sete desafios de Luís Montenegro – e de Marcelo – para o período decisivo da legislatura: ao contrário da tradição, os primeiros seis meses.

1) Marcar a agenda

A gestão do silêncio de Luís Montenegro tem sido muito elogiada, mas rapidamente será esquecida. Uma vez mais, 2024 não é 1985 – o guião de Cavaco Silva para um primeiro-ministro de sucesso carece de ser atualizado. Primeiro porque o tempo mediático mudou muito: já não há apenas uma televisão pública, mas várias, incluindo privadas e de notícias, com comentários em permanência; as redes sociais tornaram-se meios de comunicação primordiais – e o PSD não sabe usá-las; e, por fim, o populismo não é o PRD de Eanes e fará marcação ao Governo a cada dia, a cada momento. Nestas circunstâncias, um primeiro-ministro passar semanas em silêncio é um risco altíssimo, porventura ingerível.

O caminho? Apesar de tudo o que sabemos, um primeiro-ministro eleito tem instrumentos únicos que lhe dão vantagem potencial. Se a passagem de pastas tiver sido competente e o Governo souber manter no essencial as estruturas do Estado, poderá tomar decisões rápidas, usando dossiês que António Costa deixou prontos. O aeroporto é um deles, a privatização da TAP também (com mais riscos), a reforma das estruturas da Administração Pública outra – que aliás dará jeito, acelerando os procedimentos e poupando alguns custos. A reversão de leis como a da taxa que sobrepenaliza os Alojamento Local é mais uma hipótese, dando espaço político para que outras partes da reforma da habitação possam seguir caminho e ser apenas afinadas, de modo a acelerar efeitos.

Na Saúde, Montenegro tem o desafio de segurar Fernando Araújo, cuja estrutura de reforma de funcionamento do SNS só há pouco começou a funcionar. Ainda se veem muitos desafios, mas voltar tudo à estaca zero, ou trocar de comando agora, poderia ter custos enormes. A ministra que escolheu Montenegro escolheu pode tornar isso mais difícil, assim como as posições anteriores do PSD sobre parte dessa reforma. Vai ser preciso negociar com o presidente executivo do SNS, ou escolher alguém de dentro da estrutura. Mas coordenando com ele o plano de emergência que Montenegro prometeu entregar em 60 dias, mas que devia ser apresentado antes disso.

Em qualquer caso, não bastará ao novo Governo tentar resolver “os problemas dos portugueses”, como alguns membros do núcleo duro agora vão dizendo. O Chega engordou em tempos de crescimento do Estado Social, pelo que essa não foi a razão principal para a sua afirmação.

Para marcar território a Ventura, o Governo terá de definir a bissetriz em matérias como a imigração: apertar um pouco, sem ceder aos nacionalismos que, além de todos os argumentos humanitários, travariam muitos setores económicos. E terá de definir uma marca de água ética, ao nível da transparência e combate à corrupção, sem a qual ninguém voltará a acreditar nos partidos tradicionais da nossa Democracia.

Para se diferenciar do PS, o caminho é aprofundar e concretizar a agenda de moderação que Montenegro construiu em campanha: acelerar medidas sociais (como a prometida ampliação do Complemento Social para Idosos, por exemplo), evitando agendas conservadoras fraturantes (como a suspensão da morte assistida, que ficou de fora do programa da AD). Aproveitar os 50 anos de abril também é um caminho, porque a revolução não é – ou não devia ser – um caminho da esquerda. Manterá Montenegro as comemorações no Palácio de São Bento que Costa inaugurou?

2) Antecipar problemas

Enquanto Leitão Amaro e Pedro Duarte, os novos ministros da Presidência e dos Assuntos Parlamentares, aceleram a agenda do Governo, caberá a Hugo Soares (líder parlamentar do PSD) preparar a defesa. E tudo vai ter de ser muito sistemático: a cada lei que entrar no Parlamento vai ser preciso fazer contas às maiorias necessárias para as fazer passar. A cada proposta da oposição, fazer contas para perceber como as travar (ou negociar).

Será um trabalho fino, quase impossível, porque as leis são diferentes e obrigam a maiorias diversas: umas só precisam de maiorias simples, outras de absolutas, outras ainda de dois terços. Umas serão decisivas para as esquerdas e outras para as direitas. Manter negociações abertas – e transparentes – será uma defesa decisiva. A comunicação pública e formal, aqui, vale ouro (como se viu no falhanço inicial da eleição de Aguiar Branco).

Outra lição do dia 1: a minoria PSD-CDS não pode contar com facilidades. Por exemplo, é um facto que Chega, PS e esquerdas prometem também dar aumentos às forças policiais. Mas os projetos que entraram exigem financiamentos de montante diverso e exigem uma negociação para não se anularem mutuamente. E Ventura, como se viu na segunda-feira, não hesitará em ligar um falhanço à sua (perigosa) agenda corporativa ligada a uma facção dos agentes de segurança.

Para todos os efeitos, neste ponto, seria aconselhável a Hugo Soares preparar um gabinete com especialistas orçamentais, bons juristas e constitucionalistas também. Na luta ao dia que se segue, todos os números e alçapões serão importantes.

3) Um Tratado de Tordesilhas com o PS

Pedro Nuno Santos estará perante uma tenaz: dentro do PS e à esquerda, pressionado a distanciar-se, afirmando-se como oposição; pela AD e por Marcelo, pressionado a definir consensos. A Montenegro – porque aqui terá de ser o primeiro-ministro a fazê-lo – será preciso seguir o Marcelo dos anos 90 (enquanto líder da oposição) e certeiro: definir com precisão os acordos mínimos que quer com o PS, libertando os socialistas em tudo o resto.

Para os consensos, basta o estrutural: cargos institucionais (que permitem deixar o Chega, por exemplo, de fora da fiscalização das secretas), a agenda europeia e de soberania, um retificativo para cumprir promessas comuns e as reformas que permitem implementar o PRR. No resto, libertar o PS e separar territórios pode ser de mútuo interesse – dado que os dois partidos partilham o objetivo de demonstrar a mais de um milhão de cidadãos que a rotação de poder entre eles é mais saudável para todos do que um reforço do Chega.

Para isso, o Tratado de Tordesilhas entre PSD e PS terá outro desafio: fazer com que o combate político entre os dois polos seja entre adversários de caminhos distintos e não entre inimigos políticos. É só seguir o que escreveu Pedro Duarte, o novo ministro dos Assuntos Parlamentares, num livro que lançou há poucos meses:

"O grande desafio que condicionará a resposta a todos os restantes está na afirmação de ideias, projetos e protagonistas que apostam na moderação, na busca de consensos, na constante descoberta de pontos de equilíbrio e de pontes que nos tornem mais fortes. Uma comunidade fragmentada terá sempre mais dificuldades em encontrar o seu rumo e em prosseguir um propósito.

Esse risco de polarização é hoje muito real. A proliferação de redes sociais e a monetização jornalística abriram um espaço privilegiado para radicais e oportunistas. A vertigem das vidas atuais, a degradação da qualidade de vida das classes trabalhadoras, as desigualdades inaceitáveis, a ganância das "elites", os Estados ineficientes e, tantas vezes, incompetentes, as bolsas de pobreza insuportáveis... Tudo isto contribui para gerar um caldo de cultura propício a populismos, tantas vezes boçais, mas atraentes. Este é o tempo de afirmação de lideranças que resistem ao caminho fácil e que percebem o seu papel histórico de lutar, até à última gota, pelos valores que valem a pena. Em nome de um futuro melhor. Em nome das próximas gerações."

4. Escolher como lidar com Ventura (sem dar pretextos)

Como está explícito no que escreveu Pedro Duarte, como ficou também explícito nas declarações de Hugo Soares depois do caso Aguiar Branco – e no próprio encontro Montenegro/Pedro Nuno que o desempatou, André Ventura é já o maior desafio de PSD e PS. No caso do atual Governo PSD, a opção que outros à direita têm seguido Europa fora não existe: negociar em série com a direita radical seria um suicídio do novo primeiro-ministro.

Há outras hipóteses em aberto, ambas, claro, com custos políticos futuros. Uma delas seria negociar leis pontuais (ou até mesmo um orçamento). A outra seria integrar partes da proposta política de André Ventura. Num caso e no outro, o risco é o de tornar o Chega um jogador normal do sistema político – ou seja, equivaler Ventura, por exemplo, à Iniciativa Liberal – , arriscando afastar os que jogam conforme as regras e normalizando o apoio dos cidadãos ao Chega. É certo que tudo depende das propostas e do grau de cedência – mas a margem política de Montenegro, pelo que disse na campanha, é tão curto como o grau de confiança que poderá ter em Ventura.

O outro caminho possível é o da total separação de águas. Exige enorme firmeza, uma agenda clara e diferenciadora (mesmo que partilhando alguns temas), controlar a narrativa e assumir o risco contrário: o de tudo falhar e o Chega crescer mais. Em qualquer caso, há uma forma de minimizar estragos, tão mais eficaz quando o centro-direita está no poder: convencer o poder económico de que envolver o Chega não vai fazer bem à economia. É que os manifestos dos grandes empresários que se vão acumulando na Alemanha ainda contrastam com a passividade por cá. E sem lutar contra a tolerância aos valores radicais ou contra o financiamento destes movimentos, o seu crescimento potencial será bastante maior.

5) Ir a Bruxelas e agarrar a “Lei Travão”

Marques Mendes disse-o no domingo na SIC: o Governo tem de baixar as expectativas, porque não vai haver dinheiro para tudo. Mendes não foi o primeiro a dizê-lo: Mário Centeno, o governador de quem esta direita não gosta, disse claramente há semana e meia que a margem orçamental “é zero”, se feitas as contas aos compromissos já assumidos e implementados pelo governo cessante.

Seria bom o novo ministro das Finanças chamar Centeno para ouvir os avisos. Mas, na impossibilidade ou na teimosia política, talvez seja bom marcar já uma viagem até Bruxelas, para conhecer com mais precisão as novas regras orçamentais e medir a margem política de negociação que o novo governo possa ter. Convém, claro, levar contas feitas à execução do Orçamento presente e duas ou três medidas simbólicas mais fortes, seja para os primeiros seis meses, ou para o Orçamento decisivo de 2025. Aqui cabe o que Montenegro quiser: medidas para o SNS, uma redução do IRS ou IRC.

A ida a Bruxelas pode render frutos: tal como aconteceu no primeiro orçamento de António Costa no tempo da ‘geringonça’, é perfeitamente possível que a Comissão Europeia aceite dar margem negocial. Face à circunstância política interna, será melhor isso do que um país que se afunde num caos populista.

De resto, é como diz Marques Mendes: baixar expectativas internamente. E, via das dúvidas, seguir o conselho de outro Conselheiro de Estado, António Lobo Xavier: recuperar a famosa Lei Travão, que impede os parlamentos de aprovarem sozinhos projetos de lei que aumentem a despesa sem autorização do Governo. Será a sua melhor garantia de que tudo não se torna rapidamente ingovernável.

6) Arregaçar as mangas na São Caetano

As eleições já lá vão, mas a campanha eleitoral ainda não acabou. O Governo terá de ser sério e rigoroso nas contas públicas, mas não pode poupar na política. E isso passa muito por manter a máquina ligada na São Caetano à Lapa, mobilizando em permanência as estruturas e os militantes.

Começa, claro, preparando profissionalmente as eleições europeias (desde logo com uma cabeça de lista prestigiante). Muitos já o disseram – e é bastante evidente: a melhor forma de a AD garantir que chega a outubro com hipóteses de se manter no governo. Mas passa também por fechar já um contrato permanente com uma empresa de sondagens: vai ser preciso medir tudo passo a passo, incluindo muitas perguntas sobre as opções políticas futuras.

7. Procurar Marcelo

No meio de tudo isto, o Presidente voltará a ser fundamental para este novo primeiro-ministro. Não porque tenha grande influência nos atores políticos (a relação com Pedro Nuno é cordial, mas institucional, e com Ventura é muito difícil, como se viu pela última audiência). Mas porque Marcelo ainda tem na mão a arma decisiva para desempatar o jogo: a da dissolução.

Entre Montenegro e Marcelo há um evidente interesse comum: evitar novas eleições, a menos que elas resolvam o impasse criado a 10 de março. O dilema chegará em outubro: se não houver quem aprove o Orçamento de 2025, será o Presidente quem decide se mantém o governo em funções, a duodécimos ou convoca novas eleições. Manter seria um risco para Marcelo, porque não o fez com António Costa em 2021. Mas não só é possível, como pode ser desejável, até para o PS. Se o será também para Montenegro, só as sondagens o dirão. Para ele, agora primeiro-ministro, resta criar uma relação com quem decide, a ver se garante que a decisão mais importante será de interesse comum.

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