Nunca antes foi assim: Cavaco foi eleito por poucos votos, mas tinha a força de quem rompeu com o bloco central e o mote da abertura do país à Europa; Guterres ganhou e levou os ‘estados gerais’ e a bandeira da educação para o Governo; Sócrates tinha uma ambição e desenhou um plano tecnológico; Passos praticava as contas certas e uma ideia de liberalismo; Costa quis virar a página da austeridade e rompeu os muros à esquerda. Face a isto, Luís Montenegro não tem um problema por ter ganho por pouco – tem um problema por não sabermos bem o que é “mudar”, a palavra-chave que carregou nas legislativas.
Não me entenda mal: ao contrário da ideia comum que vai correndo, acho que as legislativas não provaram de todo que a ‘cerca sanitária’ ao Chega falhou. Quando 66% do eleitorado do PSD recusa qualquer aproximação ao partido de Ventura, o mais provável era a AD ter descido bastante caso a estratégia fosse outra. Não: o que faltou na campanha do PSD, da AD ou de Montenegro não foi a estratégia, foi a ausência de sonho. Esse será, agora, o seu principal desafio: construir uma esperança, um mote para o país. Problema: Luís Montenegro não tem tempo, pelo que a ideia de apostar todas as fichas na economia ou na negociação de aumentos salariais para várias carreiras do Estado não tem grande probabilidade de sucesso. Porque é uma manta curta (onde ficaria nela o setor privado?). Mas sobretudo porque nos seis meses que Montenegro tem garantidos mal há dias para negociar esses acordos – muito menos para que façam realmente a diferença nos bolsos ou em votos.
Hoje, neste renomeado Observatório da Minoria, quero (modestamente) falar-lhe de outra estratégia possível para o novo Governo. A única que talvez – apenas talvez – possa simultaneamente deixar uma marca e proteger o país dos perigos que espreitam.
Sem tempo, o pragmatismo
Um Governo que nasce sabendo que pode cair em seis meses não pode perder tempo com problemas acessórios. Pelo que, a meu ver, resta a Luís Montenegro ser pragmático. Desde logo deve manter a orgânica do atual Governo, porque mudar nomes de ministérios implica mexer em dezenas de organismos e desnecessárias burocracias. É melhor que cada um dos novos ministros receba a pasta e deite mãos à obra sem perder tempo. Cada um deve ter um plano de ação a três, seis meses, nove meses – e garantir a sua execução liminar. Para isso – e nas circunstâncias atuais – Montenegro deve rodear-se dos mais leais e experientes dentro do partido, sobretudo os que sabem como funciona o Governo e o Estado, esquecendo por agora os independentes e estreantes. Não porque seja difícil convencer pessoas realmente qualificadas a integrar um Governo a prazo (que é), mas porque não haverá tempo para grandes aprendizagens. Mais vale ser realista e valorizar quem resta nos partidos.
Quando entrar mesmo em funções, será bastante aconselhável a resistir o mais possível às demissões e reversões. Penso, por exemplo, na nova direção executiva do SNS (liderada por Fernando Araújo, que até fez campanha pelo PS), assim como as novas diretrizes para os hospitais públicos e centros de saúde; mas penso também nas medidas que entraram em vigor há pouco tempo no setor da Habitação. Será tentador parar tudo, haverá muita pressão para isso, mas é melhor ideia limitar ao mínimo o que se anula e perceber melhor os efeitos do que está em curso. Recomeçar do zero, em áreas tão sensíveis, adiaria em meses, anos, o tempo em que novas medidas pudessem ter efeito nas nossas vidas. Integrar as pessoas que apoiaram o Governo PS acabará por ter menos custos do que uma limpeza (e não escolho a palavra ao acaso).
Convém ser também pragmático na aplicação do PRR: sei que Montenegro gostava de o dirigir mais para as empresas, mas parar este comboio a meio implicará, sem dúvidas, ficar com muitos cheques travados em Bruxelas. Mais vale deixar seguir, aproveitando para inaugurar obras úteis e criar boa-vontade do lado da Comissão Europeia.
Por cá, vai ser preciso aproveitar a inteligente abertura de Pedro Nuno Santos para cumprir o que foi prometido por todos na campanha: negociar com professores, polícias, médicos, militares. É muito dinheiro, pelo que terá de fechar um acordo a vários anos. Em abono da verdade, ganha-se mal no Estado, como se ganha mal no privado. Que o Governo aproveite assim, com isso, para negociar também com os patrões: em troca das prometidas baixas de impostos, que aumentem os salários também.
Bem sei que isto, que descrevo no parágrafo acima, tem sido apontado como a estratégia definitiva para Luís Montenegro ganhar as sondagens e estar preparado para novas eleições antecipadas no fim no ano. Eu discordo: é só o básico, não terá como criar efeitos suficientes e não lhe deve ocupar muito tempo. O que se segue, sim, é decisivo.
Recriar a confiança na vida pública
Quando sabemos que muitos votos no Chega vieram do PS – e que até nos círculos da emigração houve uma votação fortíssima no partido de André Ventura – podemos concluir que não foi por causa do SNS, da escola pública, pelo crescimento anémico da economia portuguesa que tanta gente escolheu Ventura desta vez. Sim, eu concordo que há muito mais intolerância, egoísmo, até racismo e xenofobia em Portugal do que gostaríamos. Mas isso não explica que milhares tivessem votado no PS há dois anos e votem agora no Chega. Reconheçamos o que os dados já nos dizem há um tempo: muitos portugueses não confiam já nos partidos (tradicionais), no Parlamento e – depois desta maioria – também deixaram de confiar no Governo.
Recuperar essa confiança tem de ser a prioridade absoluta do novo primeiro-ministro. E isso deve começar na formação do Governo, com medidas como as que há uns meses apontei aqui: sujeitar os membros do Governo a uma audição/fiscalização prévia no Parlamento, criar um Código de Ética para cumprir no Governo (até às últimas consequências), com a fiscalização de um novo Provedor de Ética do Estado. E a agenda deve ir para além da posse: criar uma lei do lóbi, garantir a publicação dos documentos do Estado, reforçar (muito) os meios do Tribunal de Contas, Provedoria de Justiça e – sobretudo – dos órgãos que fiscalizam os políticos. Isto não é ser moralista, é ter moral e recuperar a confiança de todos. Só isso permitirá criar as bases para que a etapa seguinte possa ser bem compreendida.
Garantir o futuro
Não vou julgar quem votou no Chega, mas é preciso ir ao fundo da questão: o partido de André Ventura traz na sua agenda política muitos perigos para a Democracia Liberal que tanto nos custou a construir. Daí que, com o PS e com quem mais se quiser juntar, a nova AD tenha de encarar de frente uma tarefa que passou a ser urgente: reforçar as garantias de que o regime, na sua essência – de Democracia e Liberdade – não será posto em causa no futuro. É, simultaneamente, proteger o futuro, confrontar o Chega com as suas promessas de lealdade à Democracia e representar os muitos milhões que ainda vão celebrar Abril (à esquerda e à direita).
Eis um mote para celebrar os 50 anos de Abril, fazendo desta data algo mais do que uma celebração: revisitar a Constituição e outras leis de valor reforçado, para garantir direitos e os equilíbrios do sistema. Isto enquanto é tempo, enquanto o PSD e PS, juntos, ainda mantêm dois terços dos deputados. No que é que isto se traduz? Primeiro, é urgente reforçar os direitos das minorias e garantir a igualdade no nosso país. Assim como é preciso redesenhar bem os contornos constitucionais do Estado Social, para assegurar que ninguém por cá fica sem acesso a ele.
Mas é preciso mais. Desde logo proteger o Parlamento, garantindo-lhe mais poder legislativo – e reforçando o valor de algumas leis para que nenhum governo em minoria possa abusar do seu poder. É preciso garantir que as oposições tenham na mão o poder e instrumentos de fiscalização adequados. É preciso garantir que os organismos que fiscalizam o Estado e os reguladores dos vários mercados não estejam nas mãos dos governos (nem na designação, nem no financiamento). É preciso reforçar os mecanismos que protejam – e deem nova vida – os que asseguram a separação de poderes, como os tribunais e os média.
Muitas destas medidas implicam que qualquer governo – incluindo o que agora toma posse – aceite perder algum poder, arriscando maior dificuldade em governar. É um custo necessário para que ninguém – repito, ninguém – neste país se possa vir a sentir ameaçado no futuro, seja qual for o Governo eleito. Se um dia os portugueses escolherem um nacional-populista para governar, os votos não estarão nunca em causa. Mas as instituições e as garantias de igualdade e liberdade também não poderão estar.
Uma réstia de esperança no sistema
Vai perguntar-me, a este ponto, se Luís Montenegro consegue com isto sobreviver ao seu primeiro orçamento. E digo-lhe, com franqueza, que ninguém sabe – da mesma maneira que ninguém sabe qual é a forma mais eficaz de lidar com os populismos. O que me parece claro, a este ponto, é que Montenegro, precisa de mostrar, simultaneamente, abertura e firmeza, se quiser captar uma réstia de esperança que exista no sistema político, seja entre os que votaram na AD, no PS ou até no Chega.
Depois disso, sim, lá para outubro, Montenegro terá de optar por uma estratégia: pode esticar a corda, esperando para ver se PS e Chega lhe chumbam um orçamento; pode tentar negociar com os socialistas, caso as sondagens em outubro os mostrem em queda; pode até tentar conversar com Ventura, ainda que arriscando perder a confiança daqueles que votaram ao lado do seu cordão sanitário. Serão caminhos diferentes e com custos diferentes. Mas o que Montenegro não pode é chegar a esse dia sem ter marcado bem uma diferença. Como na economia e no Estado não terá tempo para mostrar resultados, que use estes meses para ganhar autoridade e a confiança daqueles que governará. Só depois, aconteça o que acontecer, aconteça quando acontecer, poderá ter condições para lutar por uma maioria.
O Observatório da Maioria desta semana acaba aqui. Se tiver dúvidas, comentários ou mesmo críticas, envie-me um email para ddinis@expresso.impresa.pt