Não há, não pode haver surpresa sobre o crescimento do Chega. Não o digo por, há um mês, uma sondagem do Expresso e da SIC ter estimado que podia subir aos 20%. Mas sim porque todos nós, no dia a dia, sentimos esse apoio a crescer ao nosso lado: no trabalho, nos cafés, entre amigos e, sim, também entre familiares.
Não pode haver ainda dúvidas sobre quem vota no Chega, porque a cada eleição que passa temos estudos a explicar-nos como está a crescer e quem o apoia. Logo em 2019, quando André Ventura foi eleito para o Parlamento, dois investigadores explicaram que o partido não atraía “apenas os nostálgicos de Salazar – que também há, de forma significativamente maior do que nos outros partidos , mas um eleitorado mais moderno”. E indicavam também nesse estudo que a “insatisfação política" era já catalisadora desse voto, que estes eleitores não eram apenas os perdedores da globalização, antes os que não se sentiam parte dele: “A ansiedade por uma perda subjetiva prova ser mais determinante do que um efetivo declínio de status social”.
À medida que o Chega crescia, as análises foram acrescentando dados. Em 2021, depois das presidenciais, uma investigação de Alexandre Afonso sublinhava uma correlação entre as votações no partido com os locais de maior presença de ciganos, assim como dos locais com maior percentagem de população dependente de apoios sociais.
Depois das legislativas de 2022, já com 12 deputados eleitos, Luca Manucci voltou a estudar os eleitores do partido e concluiu que existia já uma ligação forte do voto no Chega com aqueles que sentiam que o Estado Social não só não funcionava, como limitava as suas próprias liberdades – uma percepção que o próprio partido alimentava. E avisava que o processo seria imparável daí em diante.
A partir da Universidade de Leiden, Alexandre Afonso acrescentava outro ponto: “O Chega ganhou um nível bastante uniforme de apoio nas zonas urbanas”, acrescentando haver uma dimensão “cultural” neste voto, motivada já por um sentimento anti-imigração. E corroborava que era falsa a ideia de que se tratava de um movimento de apoio entre os menos educados. Não era só isso.
A investigação continuou: há cerca de um ano, Catarina Nunes mantas olhou para os estudos pós-eleitorais com detalhe e, na sua tese de mestrado, concluiu que era da classe média que vinha maior apoio para Ventura, já com um nível médio de educação e que muitos dos seus apoiantes vinham diretamente da abstenção ou mesmo do PSD – o que explica a incapacidade do PSD desde há nove anos em passar a fasquia dos 30% de votos.
Para terminar (embora a literatura académica sobre o tema seja já interminável), vale a pena registar o que concluíram Pedro Magalhães e João Cancela há escassos meses: que o Chega “é particularmente bem sucedido nas zonas rurais, não tanto pelos valores conservadores, também não por privação económica, mas por um sentimento de negligência política” sentido nesses territórios – o que explicará agora o que aconteceu no Algarve ou Alentejo.
Tudo isto para lhe dizer que as explicações simplistas já não bastam para descrever o eleitor do Chega. Depois destas eleições legislativas, sabemos que o partido só ficou abaixo dos 15% em 32 concelhos, sabemos que foi o grande beneficiado da renovada participação eleitoral, e sabemos também que conseguiu isto fazendo com que os blocos da direita (sem Chega) e a esquerda tivessem os seus piores resultados de sempre.
É tempo de assumir que o Chega está entre nós e que se tornou uma ampla coligação. Junta os politicamente anti-PS, os que são antissistema (incluindo PSD), os esquecidos do mundo rural, os atingidos pelas crises, mas também os que se assustam com o mundo de hoje, os muito conservadores, assim como os racistas e xenófobos. E junta todos esses eleitores numa ligação emocional a uma identidade coletiva (que constrói com sucesso) e à ideia de um regresso ao passado que não tem sentido no mundo de hoje, nem tem como ser aplicado (veja-se como Meloni, em Itália, teve zero sucesso no seu ‘combate’ à imigração ilegal).
E sim, o seu sucesso também se deve, em larga medida, à incapacidade dos partidos do regime em construir um sonho de futuro.
É importante interiorizar também que ninguém, cá, na Europa ou no mundo, sabe exatamente como lidar com o fenómeno, porque nem os cordões sanitários aguentaram (excepção feita à Alemanha), nem a integração das suas ideias pelos moderados ou dos populistas no Governo funcionou. Os nacionais-populistas, como outros partidos, têm e terão altos e baixos, nuns casos substituindo partidos moderados, noutros não conseguindo passar essa fasquia. É impossível prever qual dos dois caminhos será o nosso, mas já é evidente que o crescimento do Chega não acabou aqui, como já tinham avisado os que estudam estes partidos.
Porém, dito tudo isto, é fundamental ter presente e não esquecer que a sua integração nos governos tem levado à erosão de direitos civis que tínhamos por adquiridos, como explicou Daniel Ziblatt, ainda que nem sempre tenham restringindo a própria Democracia.
Como explicou, melhor do que ninguém, outro politólogo norte-americano, Yascha Mounk (em The People vs Democracy), é tempo dos partidos que construíram a nossa Democracia se preocuparem em reforçar as regras que protegem as nossas instituições, para que deste caminho não resulte o fim da liberdade de todos.
Chegados aqui, imagino que se pergunte: como lidar com estes 1.108.764 de cidadãos? Não há uma resposta, mas há dois caminhos. Um é construir pontes entre os moderados, que evitem o bloqueio de um regime – ainda que arriscando a incompreensão de muitos, ainda que obrigando a cedências de parte a parte. Quando ouvimos André Ventura, na CNN, dizer que não cede num orçamento sem que acabe o dinheiro para a “ideologia de género”, será preciso que cada um, no Governo e oposição, decidam o que é mais importante.
O outro caminho exige respirar fundo: lembre-se que estes eleitores não são estranhos, embora pensem tão diferente de nós; respeite as diferenças, pratique o ativismo da tolerância, a cada dia tentando demonstrar que os direitos que querem retirar a muitos contrastam com todas as liberdades que têm. Esse caminho é longo, penoso e tão arriscado como o anterior.
Em qualquer caso, mantenha bem presente que foi para isto que construímos as Democracias: elas são a única maneira sã de tantas pessoas, tão diferentes umas das outras, conviverem num país comum – sabendo que a contrapartida é aceitar que haverá alternância, que haverá avanços e recuos, mas que só assim haverá sempre Liberdade.
Como explicou Joe Biden, no discurso que fez há menos de uma semana perante o congresso dos EUA, numa frase dirigida a Donald Trump e aos seus apoiantes, mas que podia bem ter sido dirigida a nós hoje: “Não podemos amar o nosso país apenas quando ganhamos”. Respire fundo outra vez e lembre-se disto: cá, por agora, estes 1.108.764 são 18% dos eleitores. Lá, nos EUA, serão 50%.
Mas porquê, sr Presidente?
Contrariando o que fez em eleições anteriores, quando recebeu o PCP e o PEV separadamente, o Presidente da República decidiu chamar para a audiência pós-eleitoral a AD como um todo. Pior, convocou as reuniões com os partidos quando as eleições estão ainda empatadas em número de deputados e antes de serem contados os votos (em número recorde) dos emigrantes. Bem sei que Pedro Nuno Santos já concedeu a derrota (e talvez prefira mesmo não governar), mas depois da lamentável repetição de votos na emigração de há dois anos, o mínimo era desta vez – quando podem mesmo ser decisivos – respeitar o voto deles. Ou não é ao Presidente que se pede que zele pelo respeito pelas instituições?
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