Observatório da Maioria

Ceder, em Democracia, não é vergonha: é progresso (uma carta aberta a Pedro Nuno e Montenegro)

Atente bem nas palavras de Nuno Melo à TVI, há pouco mais de duas semanas:

“Se o PS vencer as eleições, quem vence deve governar. É isso que é suposto. Aplico aos outros aquilo que reclamo para nós. Se a AD vencer as eleições, deve governar; o que reclamo para a coligação deve ser aplicável a todos os outros. Falo por mim enquanto presidente do CDS. Tento ler a política dentro da normalidade possível e a normalidade possível diz-me que quem vence deve governar. Outros entendem que não é assim. Logo se verá.”

Estas foram as palavras mais razoáveis que ouvi um responsável político dizer nesta pré-campanha. Mas o que se seguiu provou como André Ventura já conseguiu a mais importante das suas conquistas: fazer com que a negociação, o compromisso e a cedência – palavras fundamentais nas Democracias Liberais nascidas das revoluções francesa, mas sobretudo britânica e americana –, já sejam encaradas como motivo de vergonha, de censura, de pecado.

Sim, foi exatamente o que aconteceu quando Nuno Melo disse aquelas palavras: o líder do Chega atirou-se sem demoras a Montenegro, desafiando-o a “responder se prefere dar a mão ao PS ou à direita; os comentadores elogiaram a destreza do líder do Chega, o PSD envergonhou-se e remeteu-se ao silêncio; o presidente do CDS remeteu-se à triste figura de dar o dito por não dito. A direita moderada, que andou os últimos meses a jurar a pés juntos que ”não é não", encolheu-se com o ataque e não conseguiu afirmar o mais básico dos princípios: sim, se os portugueses derem a vitória ao PS, ainda que exista uma (alegada) maioria de direita, o PSD prefere que sejam os socialistas a governar do que levar o Chega ao poder.

Bastava dizer isto e acrescentar o óbvio: não só os portugueses teriam eleito o PS e não o Chega para governar; como o Chega não é um partido “de direita” – é um partido radical que banaliza o ódio e a desordemsempre que isso lhe é conveniente (como se vê pela infiltração no protesto dos agricultores e pela presença nos movimentos anti-imigração). Se não fosse suficiente, acrescentaria isto: pela sua natureza e pelo seu líder e acólitos, é um partido incapaz de dar qualquer estabilidade a qualquer Governo, como se provou pelos Açores.

Quando o PSD, apesar de tudo isto, não consegue dizer que prefere o PS ao Chega mostra como o centro-direita, em Portugal, se tornou igual ao do Brasil – que foi incapaz de dizer que não a Bolsonaro. E sabemos como alguns, por cá, nem o quiseram dizer de longe.

Mas esta semana percebemos que o próprio PS padece do mesmo mal: nos Açores, face a uma vitória da AD e à ausência de uma maioria de esquerda, o novo secretário-geral socialista não seguiu os mesmos princípios que exige ao centro-direita, que exigiriam dizer só isto: mesmo não concordando com o essencial das políticas do PSD, o PS preferia que a AD governasse os Açores em minoria do que com o apoio do Chega.

Tenho ouvido muitos argumentos em defesa da tese de Pedro Nuno Santos. Falam de “ceder ao programa da direita”, de “fazer uma coligação”, de ser impossível garantir já orçamentos. O que respondo que se trata apenas disto:

  • Viabilizar um Programa de Governo acabado de sair de eleições;
  • Permitir que a AD forme governo (sem maioria, mas com instrumentos mesmo fora da Assembleia Regional para tomar decisões e ser avaliado por elas);
  • Evitar mais de seis meses na região com um governo em gestão e sem orçamento em vigor;
  • E, sobretudo, de não dar incentivos ao centro-direita para, por vingança ou cedência aos que lá dentro criticam o cordão sanitário, entregar o Chega ao espaço do poder.


O último ponto é o que mais me preocupa, porque esse risco é evidente se o centro-esquerda fizer desta a sua estratégia eleitoral nos próximos ciclos eleitorais – nos Açores ou na República.

Os eleitores de direita moderada que restarem, percebendo que o PS considera o PSD e o Chega igualmente reprováveis, perdem o argumento moral que os faz resistir ao canto de Ventura. E vendo anulado o sistema de incentivos da Democracia (perdemos agora, podemos ganhar depois), reagirão à impossibilidade de verem o seu quadrante aceder ao poder juntando-se aos radicais. Se a intenção do PS for essa – a de fazer a direita moderada desaparecer de vez – este é o caminho certo.

É justo reconhecer que não é essa a intenção de Pedro Nuno Santos. Lendo o livro acabado de editar, escrito pela minha colega do Público Ana Sá Lopes ("Na cabeça de Pedro Nuno"), estamos perante um líder que cresceu na política já polarizada. A troika acabou, aliás, por reforçar as suas convicções de que a esquerda tinha cedido demais ao capitalismo, arriscando perder de vez os trabalhadores. Eu diria que a maioria absoluta de Costa prova o contrário, mas este é Pedro Nuno: um produto (não consciente) da guerra cultural em curso, que acredita que a política se faz por uma disputa de princípios não negociáveis da esquerda contra os da direita. Nesse ponto, não é muito diferente do Bloco, ou do próprio Chega.

Gostava de conversar com o novo líder socialista sobre como seria uma democracia realmente se funcionasse assim, sem cedências: a esquerda tomava o poder a anular as decisões da direita, a direita entrava no poder a reverter as medidas da esquerda. A minha opinião é que não sairíamos nunca do mesmo sítio, sem espaço para políticas de médio ou longo prazo, sem permitir uma evolução e acerto das políticas, sem espaço para entendimentos fora dos respetivos blocos.

Será justo, também, reconhecer que há um argumento racional usado por Pedro Nuno que nos obriga a pensar: o PS deve deixar ao Chega, sozinho, o espaço de oposição? E isso não fará crescer mais ainda o Chega?

Olhando para o que tem acontecido na Europa, não foi isso que aconteceu quando os partidos socialistas fizeram, com o centro-direita, um cordão sanitário à direita radical populista. O PS francês, por exemplo, quase desapareceu sim, mas não depois de ter apelado ao voto em Chirac contra o pai Le Pen (foi apenas bem depois, face ao desastre da governação do Presidente Hollande e quando Macron saiu dele para formar o seu próprio partido). Na Alemanha, o único país onde o cordão sanitário (ainda) é partilhado com os moderados de direita, o SPD ganhou eleições há dois anos, imagine-se, depois de ter integrado um ‘bloco central’. É certo que está agora em queda, mas tudo indica que mais por incapacidade do que pela firmeza que tem mostrado sobre os perigos do radicalismo.

Sejamos honestos: ninguém tem uma fórmula para lidar com estes partidos. Mas sabemos já que eles sempre acabam por aceder ao poder quando o dito cordão sanitário não é partilhado entre os centros (direita e esquerda). E sabemos também o que aconteceu em alguns países onde se serviu do poder: políticas discriminatórias, empoderamento do aparelho judicial e policial, nacionalização dos média, controlo absoluto das estruturas do Estado, em benefício único dos seus aparelhos. Foi assim na Polónia, a tal ponto que o novo governo eleito há três meses se vê impossibilitado de tomar as decisões para que foi eleito, às mãos dos juízes e Presidente populistas. A Democracias já sabem como eles chegam lá, mas não como os afastar quando se instalam. Se quiser uma diferença face à alternância PS/PSD que tantas vezes criticamos, esta da Polónia é bem pior. Na Hungria, de onde Órban ainda não foi rejeitado pelos eleitores, é melhor nem falar.

Por cá, o Chega cresce ao ponto de todos nós ouvirmos pelas ruas, pelos cafés, conversas abertamente xenófobas, quando não racistas, sempre ditas em apoio à mensagem que André Ventura propaga. Para ele, para estes portugueses, já é banal assumir que Portugal é só para “as pessoas de bem” e que as “outras” devem “ir para a sua terra”. Pelo que é fácil perceber como governará o Chega, quando chegar a sua vez: para as “pessoas de bem”, as únicas que ele diz representar.

É isto que ainda distingue partidos como o PS e PSD, IL e Bloco ou PCP: a tolerância para com a diferença. A noção de que os partidos servem para nos representar, sim, mas admitindo como legítimas as posições dos outros. A noção de que os “outros” são tão humanos como nós. A aceitação dos restantes partidos como adversários e não inimigos. A certeza de que só a negociação entre diferentes levará ao progresso, ainda que imperfeito, ainda que lento, ainda que com recuos.

É isso que me preocupa na forma como André Ventura já conseguiu contaminar todo o debate público, transformando qualquer negociação (que não seja com ele) numa vergonha e acabar com a fórmula decisiva de uma Democracia sã: ouvir o outro, persuadir o outro, ceder ao outro. A Democracia é uma troca permanente, uma conversa incessante, na certeza de que as regras estabelecem que há sempre uma oportunidade à frente para chegar ao poder.

Por cá, estamos cada vez mais longe desse modelo. Como acontece em vários outros países do Ocidente, a política tribalizou-se ao ponto de perder a bússola dos princípios, a boa-vontade da conversa. Nunca desde a Segunda Guerra Mundial vimos na Europa alguma coisa assim. Em Portugal, nunca desde a ditadura.


P.S. Agora que os Açores confrontaram Pedro Nuno com o dilema, deixo um lembrete e uma pergunta para o líder socialista. O lembrete é o discurso de António Costa em 2015, quando ele disse que estaria disposto a deixar Passos e Portas a governar se não houvesse acordos à esquerda. A pergunta é só esta: se no boletim de voto só estivessem Montenegro e Ventura, seria assim tão difícil escolher?

O Observatório da Maioria desta semana acaba aqui. Se tiver dúvidas, comentários ou mesmo críticas, envie-me um email para ddinis@expresso.impresa.pt