Observatório da Maioria

Cuidado com o que desejas: sobre a importância dos (verdadeiros) partidos na Democracia

Em França, Emmanuel Macron criou o En Marche, um partido à sua medida, que comanda o país há oito anos. Neste momento, com o partido abaixo dos 20% nas intenções de voto, Macron nomeou Gabriel Attal, de 34 anos, uma última tentativa de (com um substituto exatamente à sua imagem) recuperar terreno face a Marine Le Pen, cujo partido lidera sondagens com 10 pontos de vantagem – a apenas dois anos das presidenciais. Os tradicionais partidos do centro? Mantêm-se abaixo dos 10%.
O cenário político em França está assim.

Em Itália o centro-direita quase desapareceu há muito: a Força Itália, fundada por Berlusconi, afundou nos 10%; o centro-esquerda resiste mal e longe do poder, nos 20%. E a Liga Norte de Salvini ou, agora, os Irmãos de Itália de Meloni, dominam as intenções de voto desde 2018 (com quase 30%), sempre assentes no culto da(o) líder. Eis, em Roma, o caminho que as coisas levam.

Na Alemanha os três partidos do Governo já estão todos abaixo da AfD. Exatamente: o partido irmão do Chega atingiu 22% (em média) nas sondagens, apenas abaixo da CDU que segue com 29% e poucos parceiros potenciais de Governo visíveis no radar. O SPD, central na edificação da democracia alemã, encolheu para 14%. O novo e também populista BFW (mas mais à esquerda), fundado agora por Sahra Wagenknecht com o seu próprio nome, lançou-se com cerca de 10% – prometendo fragmentar ainda mais um cenário político inimaginável há poucos meses.

Podia dar-vos outros exemplos, como o da Áustria, onde a direita moderada ainda está à frente do Governo (numa coligação com os Verdes), mas onde a direita radical da FPO lidera as sondagens há mais de um ano; podia falar-vos dos Países Baixos, onde o novo parlamento tem 17 partidos – e quem ganhou mais votos foi partido unipessoal do nacional-populista Geert Wilders (cujas intenções de voto dispararam logo após as legislativas).

Este artigo não é, porém, sobre a ascensão dos populismos, nem sequer sobre a fragilidade dos partidos moderados. É sobre a erosão rápida de uma das instituições mais centrais das democracias liberais construídas a partir do pós-guerra na Europa: os partidos políticos.

Não se trata apenas de estruturas que nos representam. Os partidos dão uma infraestrutura essencial à democracia, porque ajudam os cidadãos a associarem-se uns aos outros, facilitam a conversa, criam propostas de mudança estáveis e ponderadas. A representação é, assim, o final desse processo de construção.

Mesmo com uma fragmentação crescente, o nosso sistema político partidário tem resistido a estes ventos. Mas olhando para a última sondagem publicada por cá, esta terça-feira pela Intercampus, esses tempos também podem estar a acabar: o PS e o PSD somam, ali, apenas 46% das intenções de voto. Mesmo com redistribuição de indecisos, é fácil adivinhar que deixarão, juntos, de poder mudar leis fundacionais da nossa democracia, como a Constituição ou as leis de valor reforçado (as que determinam, na prática, a forma como o país funciona). Não surpreende: uma outra sondagem que publicámos em novembro demonstrava que os partidos só mereciam a confiança de 17% dos portugueses, o nível mais baixo registado por todas as instituições – e que o Chega é quem mais capitaliza com a má imagem dos partidos ‘tradicionais’.

Dada a desilusão, mudar para estes novos partidos parece uma solução fácil. E certamente eles têm atraído muitos cidadãos de vários países europeus, mesmo para partidos que estão longe de ser populistas, como o En Marche de Macron. Porém, estes novos partidos podem esconder perigos para a própria democracia que muitas vezes fogem a um primeiro olhar. O prestigiado filósofo político Jan-Werner Muller explicou-os assim, este fim de semana, no Financial Times:

"Os movimentos fundados por líderes carismáticos podem transformar-se em cultos de personalidade, sem as vantagens que os verdadeiros partidos oferecem a uma democracia. Os partidos oferecem programas de longo prazo, que tornam suportável a ideia de perder uma eleição – porque é sempre possível tentar persuadir os eleitores nas sondagens ou na eleição seguinte. Estes movimentos acabam muitas vezes controlados pelo seu fundador, sem uma orientação ideológica definida e presas pelo narcisismo do seu líder.


Muller dá-nos exemplos válidos, para mostrar que não está a apontar apenas aos populistas, mas a alertar para os riscos de os próprios partidos do sistema se renderem a lideranças vistas como ‘fortes’: nos EUA, com o partido republicano rendido a Donald Trump há 10 anos,“nenhum republicano conseguiu pará-lo em 2020, como nenhum conseguirá agora”; na Áustria “ninguém consegue fiscalizar ou pedir contas a Sebastian Kurz” depois de este ter subordinado um antigo partido a si próprio; assim como França parece “à mercê dos caprichos de Macron”.

Trago-lhe este alerta hoje porque estamos naquela semana em que se fala muito de listas de candidatos a deputados, férteis como sabe em tensões internas, em escolhas duvidosas ou mesmo em trocas de partidos. E venho pedir-lhe que compare o que se passa, por exemplo, no PSD ou no PS, até mesmo na recente IL, com o que vemos no Chega. À primeira vista, parece que o partido de André Ventura leva vantagem, conseguindo pescar nomes no PSD e na IL. À primeira vista parece que PSD e PS se perdem em disputas inúteis, muitas vezes em guerras internas que visam apenas o poder.

Não é, porém, tão simples assim. No PS, por exemplo, as tensões seguem-se a uma intensa disputa interna, onde os socialistas puderam livremente escolher dois caminhos bem diferentes: uma aproximação à esquerda ou o caminho mais ao centro. Agora, legitimamente, ambas as partes desta contenda tentam conseguir voz e influência no Parlamento que se segue.

E é a este passo que pergunto: tem olhado bem para o currículo, experiência e personalidade dos candidatos que André Ventura tem escolhido para o Parlamento? Alguma vez viu uma verdadeira eleição no Chega? Alguma vez viu dois caminhos a serem discutidos lá dentro? E alguma vez viu uma voz dissonante no Chega que não tenha sido liminarmente empurrada para fora?

Pegando no que escreveu Jan-Werner Muller: quem escrutina um líder carismático num partido assim? Quem garante que há verdadeiro debate e participação dentro desse partido? Quem garante, se um líder assim cometer erros (ou até um crime), que o partido mude de liderança? E que política se seguirá, se é este líder “carismático” que a define, tantas vezes em contradição consigo próprio?

Não, claro que não devemos minimizar os erros cometidos pelos políticos dos partidos tradicionais (moderados ou não). Temos visto – e tenho apontado aqui no Observatório – muitas falhas éticas, muitas políticas sem resultados, visível degradação nos quadros internos. E é bem correto o diagnóstico que o próprio Jan-Werner Muller faz no seu último livro, Democracy Rules: eles têm muito trabalho a fazer para se tornaram mais acessíveis a todos, mais transparentes, mais autónomos e responsabilizáveis. Só assim conseguirão recuperar alguma da (imprescindível) confiança dos cidadãos que querem representar.

Acontece que, sendo tudo isso verdade, também é um facto que todos eles têm, em comum, mecanismos internos que lhes permitem corrigir o rumo, aprender com os erros, melhorar com eles. Não é o que acontece nos partidos de líderes “carismáticos” ou totalmente dependentes deles.

Foi por isso que achei ser o tempo de fazer este alerta: cuidado com o que deseja. Talvez o “carisma”, tão valorizado nestes anos, não tenha todo o valor facial que lhe atribuímos. E talvez esta frase de José Tolentino Mendonça mereça um pouco mais da nossa atenção: "Olha-se para a política de uma forma que não lhe faz justiça”.

O Observatório da Maioria desta semana acaba aqui. Se tiver dúvidas, comentários ou mesmo críticas, envie-me um email para ddinis@expresso.impresa.pt