Observatório da Maioria

Porque mente Luís Paixão Martins?* (e a síndrome-de-pato de Marcelo)

Luís Paixão Martins é uma referência incontornável da nossa democracia. Pela inteligência, pela ironia, pelo faro, mas sobretudo pela longa carreira de consultor de imagem, que o levou a aconselhar líderes tão diferentes como Cavaco Silva e António Costa. Talvez por isso, mas sobretudo porque temos uma sondagem a chegar à redação, decidi comprar o último livro que ele escreveu. Li-o de enfiada.

Chama-se “Como mentem as sondagens” e não engana pelo título. Paixão Martins dedica-se, com paixão, a “arrasar” as empresas de sondagens (a palavra é aqui empregue ironia), assim como os órgãos de comunicação social que as publicam. Para tal, aproveita o fardo que as sondagens carregam no espaço político depois do que se passou nas últimas legislativas. O fenómeno não é novo: os políticos não sabem viver com elas, nem sem elas. Os consultores também não.

Porém, se este “Como mentem as sondagens” não engana pelo título, engana pelo conteúdo: entra em contradição, sugestiona, classifica por supostas intenções, reduz todas a uma caricatura. Devo por consciência reconhecer que também acerta: anota como muitos jornalistas simplificam em excesso, como alguns métodos levantam dúvidas e até como algumas empresas parecem construir inquéritos à medida dos seus desejos de resposta.

O erro de Paixão Martins não é, portanto, o de criticar (tem alguns bons motivos para isso). É o de o fazer sem critério, nem ponderação – contribuindo mais para destruir um instrumento que reconhece ser importante nas democracias do que a contribuir para o melhorar.

Então vamos lá a ver: porque mentem as sondagens, Luís?

Diz Paixão Martins que as sondagens erram desde logo pela amostra: “Uma sondagem normal em Portugal tem amostras de 500 ou 600 pessoas. Isso traduz-se em grandes margens de erro e isso é um problema”.

Argumenta também que há um outro “problema” na ponderação das respostas dos inquiridos, tão grave que “parece insolúvel, porque a taxa de resposta é dramaticamente baixa — e cada vez mais baixa”.

E acrescenta ainda Paixão Martins que “perante eleitores que se dizem indecisos, os responsáveis das sondagens tendem a especular sobre as suas intenções de voto. E uma maneira de dar um ar mais ou menos científico a essa especulação é usar o histórico eleitoral — em quem os agora indecisos votaram na eleição anterior”.

Sobre os meios de comunicação, recaem outras críticas. Entre outras, que estes omitem “o quadro das intenções de voto diretas”; que “transformam sempre os inquiridos em portugueses”. Também os acusa de se demitirem da construção dos questionários, ao mesmo tempo que os acusa (como às empresas de sondagem) de os dirigirem de forma a produzirem os resultados que preferem.

Tudo, claro, tem uma intenção. Maléfica, no seu entender: “No mundo mediático contemporâneo, os indicadores de uma sondagem político-eleitoral não pretendem retratar o presente, mas ajudar a retratar o futuro. São apresentadas como se transmitissem a voz do povo”, acrescenta LPM, questionando “se o objetivo de quem a promove é informar ou influenciar a evolução dos votantes até ao dia da eleição”.

Em síntese, anota com certeza LPM (“ia escrever arrogância”, diz ele no livro sobre nós, jornalistas) que se trata de “metodologias cuja falência ficou mais do que provada em janeiro de 2022”. “Os estudos de opinião servem para muita coisa, mas não para prever os resultados de uma eleição”.

Faz o que eu digo…

Tendo em conta que nos aproximamos de um ato eleitoral, é importante fazer auto-crítica para melhorarmos a forma como fazemos, analisamos e apresentamos as sondagens. Foi por isso que comprei o livro de Luís Paixão Martins. Mas como não foi esse propósito que li na obra, e porque o momento é sensível e importante para a democracia, creio ser minha obrigação fazer também pedagogia. Permitam-me então que rebata brevemente algumas críticas, primeiro as que recaem sobre nós, depois as dirigidas às empresas de sondagens:

  • Falo por nós, mas não somos caso único: o Expresso não “omite” os dados das intenções de voto diretas, sem redistribuição dos indecisos. E sim, transpõe os resultados para uma estimativa do que pensam “os portugueses” sobre uma eleição ou um dado tema – é por isso que são sondagens, com regras e método, e não inquéritos de rua, que só medem a temperatura de uma rua;
  • Este jornal não se demite da construção dos questionários e é parte fundamental nela;
  • As nossas sondagens – assim como, p.e., as da Universidade Católica – não têm uma amostra de 500 inquiridos, mas entre 900 e 1200. Mais: não são feitas “às três pancadas, por telefone", são feitas presencialmente e demoram tempo. Têm uma margem de erro, como todas, que é um elemento de transparência na forma como é apresentada aos leitores;
  • A taxa de resposta é baixa, mas é por isso que a amostra é alargada, sendo por isso também que se aplica um método científico para ponderar os resultados e distribuir indecisos. Os métodos não são à prova de bala, mas também não são uma “especulação” para “dar um ar científico”. Desde logo porque há métodos diferentes (o nosso não é o que LMP diz), mas em qualquer caso têm uma margem de sucesso suficientemente alta para que os partidos recorram a eles também – incluindo o PS, para quem LPM trabalhou nos anos mais recentes;


Aliás, perante sondagens que “mentem”, é sintomático verificar que o próprio Luís Paixão Martins encomendou sondagens para o PS, mesmo nos dias que antecederam as legislativas de janeiro de 2022. E, curiosamente, à empresa que faz trabalho de campo para o Expresso e SIC: a Gfk. O quadro de resultados que se vê na página 94 é igualmente revelador: afinal também ela tinha estimativa de resultados eleitorais; e, afinal, também recorria a uma redistribuição dos indecisos.

É certo: olhando para os resultados que a Gfk entregou a LPM e a António Costa, também ela “errou” na projeção de voto: teve um desvio de sete pontos percentuais no que respeita a PS e PSD, menor ainda assim do que o dos jornais publicados nesses dias. Mas é curioso que, um pouco mais à frente no livro, o próprio Paixão Martins tenha explicações bastante plausíveis para a diferença entre estas estimativas e os resultados das eleições: “As campanhas eleitorais são fundamentais para a mobilização dos eleitores, em particular quando os candidatos pretendem atrair indecisos e despertar os fãs”, escreve o autor, depois de já ter dado outra explicação razoável para o facto de as sondagens pedidas pelos partidos serem mais afinadas do que as dos média: “Os estudos de opinião contratados pelas organizações partidárias, porque envolvem outros recursos financeiros, são muito mais robustos”. Talvez se possa dizer, então, que os partidos têm mais dinheiro do que os média.

Se dúvidas tivesse Paixão Martins sobre porque “mentem” as sondagens, o posfácio que pediu ao responsável da Intercampus acabaria por ajudar. Conta António Salvador que, em 2022, “25% do eleitorado só decidiu poucos dias antes da eleição"; “a ideia que estrutura a convicção de os eleitores mudarem pouco de intenção de voto é antiga e vem do tempo em que a adesão partidária era idêntica à do clube de futebol. Ora, tudo isso terminou: a indiferença em relação aos partidos é hoje muito grande e, frequentemente, a opção é mais baseada em pessoas. E, por isso, a volatilidade é enorme.

Assim sendo, porque “mente” Luís Paixão Martins?

É um segredo mal guardado. Logo na introdução da obra, o consultor de imagem de António Costa dos últimos anos mostra o seu espanto com a forma como Marcelo Rebelo de Sousa passou meses, no início do ano, a especular sobre o cenário de dissolução da Assembleia da República, apesar da maioria socialista. Sobretudo, anota a indignação com o facto de o Presidente da República ter chegado a admitir esse cenário com base nas sondagens. Ponderado e, mais até, rejeitado provisoriamente esse cenário com base nelas. E cita:

"A narrativa das sondagens estava a contaminar a generalidade do ambiente político-mediático. Até que… Nas vésperas do Dia de Portugal, o presidente Marcelo escreveu o epílogo deste facto político ao declarar que teve noção de que o povo não queria a dissolução do Parlamento e que, consequentemente, tinha conseguido resistir à pressão dos comentadores para convocar eleições antecipadas.

A declaração completa, feita em Peso da Régua, é: “Eu quero ser muito sincero. Acho que havia muitos comentadores que queriam que eu dissolvesse e eu tinha a noção de que o povo não queria que eu dissolvesse, queria que eu, real-mente, chamasse a atenção do Governo para dizer aquilo que disse: «Olhe que, às vezes, é preciso mudar o que não está bem antes que seja, depois, muito tarde.» Foi isso que eu quis dizer, foi uma prevenção.”


Se nos lembrarmos que o autor escreveu este livro antes desta crise política, enquanto era ainda consultor do primeiro-ministro, e que este ficou consciente que as sondagens ainda poderiam ditar o fim da maioria absoluta, talvez seja mais fácil de perceber o motivo pelo qual Luís Paixão Martins quis tanto, tanto, destruir a credibilidade delas.

É irónico:

  1. A crítica é feita (descobrimos a ler o livro) pelo consultor que mandou fazer uma grande interna para o PS que levou António Costa, em abril deste ano, a criar o IVA zero, as novas políticas de habitação, o aumento extra das pensões e de alguns apoios sociais;
  2. Essas medidas vieram precisamente quando as sondagens (as dos órgãos de comunicação social) mostraram uma brutal quebra de popularidade do Governo;
  3. Este livro chegou tarde para o seu real propósito.


Em qualquer caso, caro Luís, tentarei lembrar-me das suas críticas mais válidas por estes dias, quando apresentarmos a próxima sondagem do Expresso. Como sei que não as dispensa, espero que goste desta também.

P.S. Já agora, não leve a mal o título: meti nele um * para ficar claro que era só uma ironia, uma resposta onde pudesse ver o seu próprio título ao espelho.

O síndrome-de-pato de Marcelo

O Presidente da República convocou esta segunda-feira os jornalistas para lhes explicar que demorou um mês a recolher dados na Presidência sobre o polémico caso das gémeas. Não explicou tudo:

  • Sendo credível que cheguem a Belém centenas, milhares de cartas a pedir ajuda, não é tão fácil de acreditar que todos tenham o privilégio de ter a assessoria do Presidente a contactar diretamente um hospital (e quem no hospital?) para saber pessoalmente do paradeiro do processo.
  • Não parece coerente, de resto, que isso seja feito antes do e-mail ser reencaminhado para o Governo.
  • Já agora, como foi esse e-mail enviado para o chefe de gabinete do primeiro-ministro? Com o alerta assinado pelo filho do Presidente em baixo?
  • E se o e-mail foi encaminhado para o gabinete de António Costa, porque foi enviado também ao Ministério dos Negócios Estrangeiros?
  • Mais ainda: se Marcelo não interferiu e não interfere – como alegou –, por que falou ou se correspondeu com um médico em Santa Maria sobre o caso? E, por fim, se em outubro de 2021 o hospital de Santa Maria dizia que havia outros casos preferenciais à frente do das gémeas, como é que tudo acabou por ser tão rápido?


Não sei mesmo se houve ou não interferências diretas de alguém Estado nisto tudo. Mas, assim de repente, esta história traz à memória aquela resposta de Hugo Mendes, então secretário de Estado das Infraestruturas, à CEO da TAP, quando esta o questionou sobre se devia aceitar um pedido para atrasar um voo onde iria o Presidente:

A minha reação espontânea seria responder que sim.Sinceramente: Percebo que isto possa ser incómodo para si, mas não podemos permitir-nos perder o apoio político do Presidente da República (…) Não estou a exagerar: ele é o nosso maior aliado, mas também se pode tornar no nosso maior pesadelo”

No livro que escreveu há uns meses, “Patos Desalinhados Não Voam”, Hugo Mendes explicaria que o apoio que não queria perder de Marcelo era sobre a TAP, não sobre a maioria. Mas será que esta era, afinal, uma síndrome de todos os ‘patos’ no Governo?

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