Observatório da Maioria

Como Marcelo reduziu a sua própria margem de manobra para o que aí vem

Foi Marcelo quem nos alertou, há dois meses, para o perigo de entrarmos em mini-ciclos políticos. Mas receio que tenha sido o mesmo Marcelo a reduzir a sua própria margem de manobra para ajudar a resolver as crises futuras. Fê-lo inadvertidamente, claro: a sua ideia foi desempatar as crises de 2019 e 2021. Mas o resultado não foi o esperado e as suas escolhas (e doutrinas) arriscam-se, agora, a ter o efeito contrário. Explico porquê, em três passos.

1. Os acordos escritos

Quando chegámos às eleições de 2019 e percebeu que o PCP não aceitaria, de novo, manter-se preso a António Costa, o Presidente da República desvalorizou a importância dos acordos escritos, impostos à ‘geringonça’ por Cavaco Silva logo em 2015. O argumento foi este:

“Eu viabilizei um Governo minoritário durante três anos sem haver acordo escrito. E as preocupações que havia no tempo do Presidente Cavaco Silva estão ultrapassadas. A preocupação era saber até que ponto à esquerda havia uma contestação à NATO, à União Europeia ou a políticas fundamentais europeias. Verificou-se que o Governo durou e que vai a caminho do final da legislatura.”

A ideia da altura era permitir a Costa, sem maioria, manter uma ligação às esquerdas (e manter estas presas aos orçamentos). Mas não chegou para garantir estabilidade e o projeto desfez-se em menos de dois anos. A questão é que, doravante, Pedro Nuno Santos (o mais que provável líder do PS) precisará de voltar a negociar à esquerda, se tiver hipótese de governar. E sem acordos escritos parece improvável que uma solução garanta alguma estabilidade ou eficácia. Face a isto, que dirá agora Marcelo?

2. Um orçamento, depois do chumbo

Em outubro de 2021 o Presidente foi surpreendido pela rejeição iminente do Orçamento de Estado. O Bloco já se tinha afastado, era a vez dos comunistas. E percebendo que aquela era uma via sem saída (que podia arrastar a entrada em vigor de um OE durante muitos meses), Marcelo quis acelerar o calendário e apressou a dissolução ao ponto de o Orçamento ser chumbado. Quando anunciou esta doutrina, parecia achar que conseguiria forçar um acordo de última hora. O que se segue é um relato das suas palavras da altura, via Observador:

"Se o Orçamento fosse chumbado, dificilmente o Governo poderia continuar a governar com o OE deste ano dividido por doze e sem fundos europeus. Portanto, muito provavelmente ia para eleições e isso significa 60 dias entre a convocação e a eleição, [atirando eleições antecipadas] para janeiro. Isso significava um Governo em fevereiro e um novo Orçamento em abril”.

Como sabemos agora, a pressão não funcionou e as eleições foram logo a seguir, no final de janeiro. Agora, esta semana mesmo, Marcelo tem um teste com a crise iminente no Governo dos Açores: ou opta pela coerência, depois do chumbo do Orçamento da semana passada pela Assembleia Regional; ou muda a doutrina antecipando que uma segunda tentativa de negociar um orçamento pode, nos próximos dois anos, ajudar a ultrapassar obstáculos de um governo imprevisível.

Se reparar no calendário que se segue, perceberá melhor o que quero dizer. O próximo Governo só tomará posse em abril, na melhor das hipóteses. Mesmo sem contar com um retificativo, terá um teste muito muito difícil no Orçamento para 2025, que se discute daqui a um ano. Nessa altura, o Presidente já terá de volta o poder de convocar eleições (que a Constituição proíbe nos seis meses a seguir às legislativas). Quererá Marcelo precipitar eleições se houver logo um chumbo? Ou deixar o impasse político amadurecer, nem que seja para os eleitores sedimentarem a sua leitura sobre quem teve maior responsabilidade nesse impasse?

O caso será pior ainda em 2025, um ano depois. É que, nessa altura, Marcelo fica impedido de dissolver – pela Constituição – por estar nos seis meses finais do seu mandato. E se um orçamento chumbar a primeira, não haverá mesmo alternativa a permitir uma segunda negociação. Como se vê, os anos que se seguem não vão ser fáceis.

3. Um novo PM, que não foi a eleições?

A terceira limitação que Marcelo introduziu na gestão de crises foi a sua declaração logo na posse da atual maioria absoluta socialista. Desta creio que se recorda: avisou ele que convocaria eleições se António Costa rumasse a Bruxelas, não aceitando portanto que fosse substituído por outra personalidade à frente do Governo. Neste processo de dissolução, há pouco mais de um mês, o Presidente reiterou e detalhou o seu argumento, já depois de ter recusado o nome de Mário Centeno. E fê-lo assim:

“[A dissolução é] o preço das grandes vitórias inevitavelmente pessoais e intencionalmente personalizadas”; “[Evitar] a fraqueza de formação do mesmo governo com outro primeiro-ministro, não legitimado pelo voto popular”; “O risco, já verificado no passado, de essa fraqueza redundar num mero adiamento da dissolução para pior momento.”

Agora deixo-lhe uma hipótese, que ontem discutimos na Comissão Política do Expresso: se, por exemplo, Luís Montenegro perder (por pouco) as eleições, mas não existir uma maioria de esquerda, Marcelo não aceitará um novo líder do PSD que aceite liderar um governo nessas circunstâncias? E faz o quê ao país durante os seis meses em que não tem o poder constitucional de dissolver o Parlamento e convocar eleições?

Sim, eu sei: mesmo este cenário implica que o Chega terá de aprovar esse Governo. E ainda nos resta a dúvida sobre até onde Marcelo aceita que o Chega participe numa maioria parlamentar ou de governo na legislatura que se segue.

São muitas – mesmo muitas – dúvidas. O meu único propósito neste texto era dizer-lhe que não chegámos aqui por acaso e que o Presidente também contribuiu para este beco (quase) sem saída. Fê-lo a pensar no melhor para o país, não duvido, mas também a pensar a jogada seguinte apenas para resolver o curto prazo. O problema é que, afinal, no médio prazo ainda estamos todos vivos.

Este Observatório acaba aqui. Se tiver dúvidas, comentários ou mesmo críticas, envie-me um email para ddinis@expresso.impresa.pt.