Observatório da Maioria

A nossa última oportunidade antes da deriva radical (e 10 sugestões para recuperar a confiança dos cidadãos)

António Costa perdeu o filtro, Augusto Santos Silva fala de criminalização de atos de governação, Ferro Rodrigues (com legítimas razões de queixa no passado) já acusa a justiça de ter derrubado a maioria. Aos que, no PS ou fora dele, encontram razões para apontar o dedo à Justiça, é preciso ainda lembrar que o que aconteceu não nasceu do nada.

Antes de 7 de novembro já contávamos seis casos em que a Justiça entrou pelo Governo adentro. Lembramo-nos todos da displicência com que António Costa reagiu a qualquer um deles. Depois, no final de 2022, o primeiro-ministro nomeou João Galamba para o lugar de Pedro Nuno Santos sabendo, como todos nós sabíamos, que o Ministério Público estava a investigar pelo menos um dos casos que levou a este processo. Não havia arguidos, é certo, mas havia suspeitas públicas. Também o Tribunal de Contas indicava ter em curso uma auditoria aos apoios do Estado aos investimentos no lítio.

António Costa assumiu o risco, mas o Presidente da República também. Depois de ter deixado cair a pressão para uma reforma da justiça (a que o PS não deu sequência), Marcelo reagiu à nomeação de Galamba sacudindo responsabilidades: "O critério é fazer com a prata da casa para não mexer muito naquilo que existe. Se isso funcionar é uma boa ideia, se não funcionar retiraremos daí as conclusões. Isso recairá sobre o primeiro-ministro", disse ele, durante anos incapaz de levar o Governo para um caminho de maior lisura ou transparência.

O laisser faire de Costa e Marcelo sobre o mais grave problema que pende sobre os políticos teve um preço. Avolumaram-se as suspeitas sobre o modo como se agia dentro do Governo, primeiro no Ministério Público, agora na opinião pública. Não há corrupção, mas das escutas conhecidas sobra por exemplo, isto:

  • João Galamba a pressionar um autarca a “autorizar a construção de parques em zonas onde não é possível” (nas palavras do presidente da Câmara de Sines);
  • O chefe de gabinete do primeiro-ministro a garantir a um lobista (com credenciais de “melhor amigo do PM”) que um organismo público daria luz verde a um negócio, depois de ter pressionado o presidente da APA a fazê-lo;
  • O presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) a convencer o chefe do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) de que tinha de dar seguimento ao processo ("Já está resolvido esse tema, percebes?"), sem atender às espécies e habitats protegidos naquela zona;
  • O mesmo João Galamba a pressionar um colega de Governo a violar a lei, dando indicação direta a um organismo para desse ordem ao ICNF para que desviasse “50 ou 70 metros” uma zona protegida (ao que Brilhante Dias responderia, com decência, só isto: “Eu lamento, mas o que eles estão a fazer é chantagem política com o Governo”).

Deixemos de fora, portanto, a corrupção: tudo o que li indica que João Galamba (deixo de fora Escária, por 78 mil razões) não ganhou nada com o negócio. Mas o que acima citei não parece ser um governo a “tentar compatibilizar interesses” para conseguir um investimento. Parecem ser membros de um Governo a atropelar as leis e as regras para obter um ganho político e económico para o país.

Tudo isto já seria difícil, mas agora a suspeita recai também sobre a Justiça. Sabemos já que os responsáveis pela investigação cometeram erros (pelo menos um potencialmente grave) neste processo. Sabemos também que até dentro do Ministério Público se começa a discutir (e bem) os limites da autonomia dos magistrados. Não sabemos se o Ministério Público conseguirá provar isto devidamente, tão pouco o que tem em mãos no caso do lítio e do hidrogénio. Não sabemos, por fim, se o processo de António Costa que está no Supremo tem alguma coisa de substancial ou se será encerrado sem mais.

Acontece que nada disso invalida as suspeitas graves que existem sobre membros do Governo que António Costa nomeou e protegeu. Seja Galamba, que manteve no Governo depois do que sabemos. Seja Vítor Escária, que Costa levava para o Conselho Europeu já depois de ter saído de São Bento. Seja Lacerda Machado que se apresentava e fez negócio com um cartão de apresentação irrecusável para qualquer interesse privado. Sobre (quase) tudo isto, nem Marcelo pode apresentar-se de cara lavada. A única coisa que o levou ao limite foi a cena de violência no Ministério das Infraestruturas, talvez porque fosse pública.

Diagóstico: muito muito reservado

Deixemos para trás as críticas e mágoas passadas que agora vêm ao de cima. O facto é que a falta de cuidado com a transparência e a falta de atenção aos perigos de corrupção (no sentido lato do termo) atiraram o país para uma enorme crise política, senão de regime. E deram mais razões de desconfiança a um país já muito suscetível ao tema. Vale a pena olhar para os dados:

Imaginem o que será depois disto.

Agora, o que se exige aos partidos e candidatos é que nos digam o que pretendem fazer para que os portugueses voltem acreditar neles, os políticos. Portugal precisa mesmo de um plano de ataque à corrupção. E precisa de um plano que seja o mais consensual possível, muito visível, determinado e, em alguns casos, difícil ou impopular. O que se segue é a minha modesta contribuição para esse debate.

Dez ideias para recuperar a confiança dos cidadãos

  1. O Ministério Público precisa de transparência, comunicação, direção e, sobretudo, avaliação e responsabilização. Deveria ser sempre assim em democracia. Mas hoje, nas circunstâncias que temos, isso já é condição sine qua non para a sua própria afirmação aos olhos dos portugueses;
  2. Os membros do Governo deviam ser sujeitos a fiscalização prévia. Se não pelos serviços de informação, seguramente a audição no Parlamento – como existe p.e. nos EUA;
  3. Se o Código de Ética criado por Costa foi só para inglês ver, o próximo Governo da República precisa de um Provedor de Ética, como o que existe no Reino Unido. Como vimos nas investigações dirigidas no tempo de Boris Johnson, esse cargo também não é condição suficiente para a lisura de comportamentos, mas ajuda a denunciá-los;
  4. O TC e a Entidade das Contas precisam de meios reais (não os fictícios que lhes deram até agora) para realmente fiscalizar as contas dos partidos e as declarações de interesses dos políticos – e magistrados, já agora. É absurdo pensar que continuam a prescrever multas ou que as declarações são entregues e ficam numa gaveta. Já agora, é absurdo também que os meios de comunicação só possam aceder a elas dias (ou semanas) depois das pedir e que só as consigam fiscalizar presencialmente e durante um tempo limitado;
  5. A lei de acesso aos documentos administrativos deve ser revista: o Estado português (sobretudo o Governo) continua a não disponibilizar dezenas e dezenas de documentos que não têm qualquer justificação para estar sob sigilo;
  6. É urgente criar uma lei que regulamente a atividade de lóbi, incluindo a obrigatoriedade de ficarem registados os contactos que os membros do Governo (incluindo chefes de gabinete) têm com entidades que procuram, legitimamente, atingir os seus interesses;
  7. Os reguladores, mas também as várias agências burocráticas que zelam pelos interesses públicos definidos em legislação, devem ter garantias reforçadas de independência na sua ação. Isso deve começar por rever o método da sua escolha, eleição/nomeação e transparência dos seus atos;
  8. Às empresas públicas têm de ser exigidas as mesmas regras que a qualquer ministério – ao mesmo tempo que garantidas as devidas recompensas por boa gestão. Não faz qualquer sentido termos empresas do Estado sem contas publicadas, sem contrato de gestão assinado, sem responsabilização.
  9. Tudo isto acima é importante, mas tenho plena consciência de que aceitar um cargo público, nos dias que correm, é um ato de enorme risco. Exige uma disponibilidade total, a predisposição para um escrutínio permanente, a sujeição da própria família a sacrifícios quase impensáveis. É preciso, por isso, simultaneamente, criar incentivos positivos para que alguns dos melhores considerem a hipótese. Admito outras hipóteses, mas salvo melhor ideia diria que é preciso aumentar os salários dos políticos. Se achar que isto não é possível, lembre-se que quem sai de um Governo não pode ir para o setor privado (na área de governação) nos três anos seguintes a estar nesse cargo. A regra faz sentido, por deveres de isenção e transparência, mas tem um preço. E lembre-se que o único corte salarial da troika que ainda está de pé é o que se aplica aos políticos.


Claro que nada disto será solução sem que os próprios políticos se comportem à altura dos cargos e das circunstâncias. Como escreve Yascha Monk, um notável especialista na crise das democracias liberais que vivemos, “a sobrevivência das democracias sempre dependeu da vontade das principais figuras políticas de jogar de acordo com as regras do jogo” (The People vs Democracy, 2018). Uma lição que, infelizmente, muitos parecem não ter interiorizado nos últimos tempos.

Mas nem tudo depende deles, também depende de nós, os meios de comunicação social: vai ser impossível reconstruir a confiança no sistema democrático fazendo o debate público com comentadores totalmente radicalizados, entre os que acusam um partido de ser todo corrupto e os que acusam a justiça de estar ao serviço de uma operação ‘mãos limpas’. Assim como será impossível reconstruir a confiança no sistema democrático tratando qualquer pequena suspeita ou polémica como se simbolizasse o fim do regime. Infelizmente, tudo isso só mimetiza o discurso do partido mais radical do nosso sistema, alimentando-o. Não parar para pensar nisto só terá uma consequência a prazo: ficarmos todos definitivamente limitados (ou impossibilitados) de escrutinar os poderes quando esse partido acabar eleito para formar governo.

Esta é possivelmente a última oportunidade. Mas essa responsabilidade é mesmo coletiva.

O Observatório da Maioria desta semana acaba aqui. Se tiver dúvidas, comentários ou mesmo críticas, envie-me um email para ddinis@expresso.impresa.pt