Nos manuais escolares de História vai ensinar-se, no futuro, que numa das fases mais obscuras da Humanidade, quando os piores horrores pareciam ter sido ultrapassados, o mundo assistiu nos seus telemóveis durante demasiado tempo, e fez ‘scroll’, à matança de um povo inteiro em Gaza às mãos de Israel.
Isto sem que os países e as grandes potências mundiais pusessem um corajoso travão a um genocídio. E sem terem a desculpa de que não sabiam. Sabiam.
Um ato simbólico que não altera o horror
Será ensinado também que a dado momento, já tarde, Portugal se juntou a 157 países que reconheceram o Estado da Palestina, mas colocando muitas condições e reticências no processo para não inquietar o país agressor, Israel.
Portugal não quis ficar mal no retrato, e movido pela pressão popular e internacional deu este passo simbólico importante — reconheceu a “catástrofe humanitária que se vive em Gaza”, embora tal represente um ato com pouco significado concreto no caminho de uma Palestina livre.
A maioria destes reconhecimentos ficaram dependentes das eleições livres para que se escolham os representantes dos palestinianos e do reconhecimento desse país.
Ora como será isto possível com uma população refém deste exército inimigo que tudo fará para impedir que tal aconteça?
Ficará para sempre na memória do mundo que apesar de 75% dos países das Nações Unidas terem passado a reconhecer o Estado da Palestina e a autodeterminação do seu povo, a população de Gaza continuou a ser morta à bomba e à bala, e à fome e à sede. Nada mudou.
Quanto vale uma vida em Gaza?
Naqueles territórios, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia ocupada, os Direitos Humanos valem tanto como os escombros dos edifícios. Nada.
O horror permanece em Gaza cada vez mais naturalizado, sem corredor humanitário, sem se preservar a vida e o bem estar dos civis, com Israel a racionar de tal forma os alimentos e a água potável a que a população tem acesso para a deixar à morte ou a pele e osso. A fome a ser usada como arma de guerra. E pior do que isso, como se fosse possível. Mas é.
A armadilha mais sádica do mundo
O exército de Israel há muito que usa o “esquema mortal”, de atirar para matar e ferir os civis que surgem nos locais de distribuição de alimentos controlados pela Fundação Humanitária de Gaza (GHF), apoiada por Israel.
O jornal “The Guardian” já denunciou a armadilha perversa depois de uma demorada investigação.
De acordo com as Nações Unidas, pelo menos 1373 palestinianos foram mortos desde 27 de maio deste ano quando procuravam comida para si e suas famílias, 859 dos quais nas imediações dos locais de distribuição da GHF e 514 nas rotas dos comboios humanitários. E pelo menos 18.531 foram feridos quando procuravam por um pouco de farinha.
Como se justifica tamanha maldade e crueldade?
O horror permanece em Gaza sem permitir a entrada de jornalistas internacionais, com centenas de jornalistas nacionais assassinados, com hospitais e escolas destruídas, e mais de 65 mil vítimas civis, de acordo com os números oficiais, na sua maioria mulheres e crianças (75%).
A relatora da ONU para os territórios palestinianos ocupados, Francesca Albanese, aponta para uma cifra de mortos civis bem maior, vítimas dos ataques de Israel. Maior do que a população inteira de Lisboa.
Israel promete novos colonatos
Tudo isto com o apoio da América de Trump, que segura as costas e a narrativa de Netanyahu que torceu a realidade como quis na recente Assembleia-Geral da ONU, e garantiu que por sua vontade o Estado da Palestina “não vai acontecer” e os ministros da direita radical do governo sionista já prometeram novos colonatos e uma Cisjordânia dividida ao meio para estrangular com um garrote mortal uma hipótese de paz e autodeterminação do povo palestiniano.
Não precisamos de regressar ao futuro para perceber a tragédia a que assistimos no presente.
Com tudo o que aqui já foi escrito poderão surgir agora muitos braços no ar numa sala de aula com jovens que querem saber como deixa o mundo que este inferno continue. Ou fora da sala de aula, na rua, nas manifestações, porque são os jovens que têm engrossado os protestos mundiais contra o genocídio em Gaza.
O rosto que simboliza esta nova geração que não aceita o estado das coisas é Greta Thunberg, acérrima defensora dos Direitos Humanos e de uma Palestina livre, que está novamente a bordo da Flotilha Global Sumud para levar ajuda humanitária à Faixa de Gaza.
Eles são os olhos e a esperança do mundo
Esta Flotilha pacífica composta por cerca de 50 navios com ativistas, políticos, jornalistas e médicos de mais de 40 nacionalidades, é considerada a maior flotilha organizada até ao momento, e pretende chegar a Gaza para levar ajuda humanitária e quebrar o bloqueio naval israelita, após duas tentativas barradas por Israel em junho e julho.
A bordo deste triângulo de embarcações desarmadas seguem três portugueses: a deputada Mariana Mortágua, a atriz Sofia Aparício e o ativista Miguel Duarte, que tiveram agora que mudar de embarcação por uma súbita avaria do motor do barco mãe, o “Family Boat”.
Os ataques não vêm só dos céus, as sabotagens são cada vez mais frequentes nestas missões, porque Israel mostra-se capaz de tudo e quer continuar as suas malfeitorias sem ter como testemunhas os olhos do mundo.
E não tenhamos dúvidas, as centenas de pessoas a bordo desta Flotilha são os nossos olhos, a nossa coragem, a nossa esperança.
“Só a humanidade pode salvar a Humanidade. Se estivermos à espera que os políticos façam alguma coisa por nós, qualquer dia acontece-nos o que está agora a acontecer ao povo palestiniano.”
As palavras são de Sofia Aparício, que me enviou esta curta mensagem por Whatsapp, e relatou o espírito de resistência da Sumud [que significa firmeza, perseverança] a não cederem ao medo e aos cobardes ataques do exército de Israel.
A vida a bordo é dura. Trinta e uma pessoas acomodam-se como podem num barco planeado para 12, mas em nada, nada, nada se compara à realidade desumana que a população em Gaza está a sofrer.
Foi-me relatado que as pessoas da Flotilha dormem curtos períodos, em regime de cama quente, e ficam de vigília durante a madrugada para antecipar os novos ataques de drones.
A carta escrita ao Governo
Esta semana 170 pessoas enviaram uma carta ao Governo português para garantir a proteção da flotilha até Gaza.
O ministro dos Negócios Estrangeiros já fez saber que a sua coragem não vai tão longe e que não enviará nenhum navio para acompanhar a flotilha que ruma a Gaza, como fizeram Itália e Espanha, mas garantiu que os portugueses a bordo poderão recorrer à fragata italiana para protecção consular e humanitária.
Tudo isto até chegarem os barcos de Netanyahu que se preparam para barrar e sequestrar muitos destes ativistas, como aconteceu das outras vezes. O ‘bully’ continua a dominar a sala e os mares daquelas latitudes.
As perguntas que continuam sem resposta
Como explicaremos aos nossos filhos, agora e no futuro, as tantas questões que já não se podem calar. Deixo aqui algumas. Façam o favor de juntar outras. Juntem a vossa voz. E a vossa indignação.
“Os meus silêncios não me protegeram. O vosso silêncio não os vai proteger”, palavras da poeta e feminista negra Audre Lorde que aqui tão bem se aplicam.
Com que justificação Portugal não enviou um barco de apoio à Flotilha, como fizeram outros países?
Por que razão os barcos italianos e espanhóis não irão escoltar até ao fim a Flotilha Humanitária, garantindo-se finalmente uma missão segura e bem sucedida até Gaza? [Ao que consta deixarão de o fazer quando terminarem as águas internacionais e começar o mar palestiniano que levará a embarcação até Gaza].
Se estas embarcações de civis de mais de 40 nacionalidades seguem desarmadas, em àguas internacionais, com o único objetivo de entregar em segurança alimentos e medicação para bebés, crianças e adultos, e furar o cerco ilegal de Israel, por que razão se tem permitido que sejam constantemente atacados por drones de Israel com explosivos e químicos?
E por que razão os países do mundo não deixam de vender armas a Israel, e não criam sanções e embargos económicos em massa?
E, já agora, por que razão tantas autoridades do mundo continuam a bater e a prender pessoas que defendem a vida, o respeito pelos Direitos Humanos do povo palestiniano e a sua autodeterminação?
Por fim: Como justificaremos aos nossos filhos, filhas, netos e netas que o mundo deixou uma população inteira morrer, até a última pessoa palestiniana comer o derradeiro grão de farinha manchado de sangue, em prol da ganância, da vingança, da hedionda ideia da construção de uma riviera em cima de um chão de cadáveres?
Que resposta lhes vamos dar?
Termino com um novo poema palestiniano. Porque, às vezes, é mesmo a poesia que nos salva. Nem que seja da apatia.
A ordem dos acontecimentos
por Lena Khalaf Tuffaha
Chamam-nos agora, antes que larguem as bombas. O telefone toca e alguém que conhece o meu nome chama e diz, em perfeito Árabe, “Daqui é o David”.
E na letargia de estrondos sónicos e de sinfonias de vidros a partir ainda a rebentarem na minha cabeça eu penso, ‘Conheço algum David em Gaza?’ Telefonam-nos agora para dizer ‘Fujam’. Têm 58 segundos a partir do final desta mensagem. A tua casa é a próxima. Pensam que isso é uma espécie de cortesia em tempo de guerra. Não importa que não haja nenhum sítio para onde fugir.
Não interessa que as fronteiras estejam fechadas e que os teus documentos não valham nada e que te condenem apenas à prisão perpétua nesta jaula junto ao mar e que os becos sejam estreitos e que haja mais vidas humanas comprimidas umas contra as outras do que em qualquer outro lugar na Terra. Foge apenas. Não te estamos a tentar matar.
Não importa que não possas chamar-nos de volta para nos dizeres que as pessoas que procuramos não estão em tua casa que não está aí ninguém excepto tu e os teus filhos que estavam a torcer pela Argentina partilhando o último pedaço de pão da semana contando as velas restantes para o caso de a energia falhar.
Não importa que tenhas filhos. Vives no lugar errado e agora é a tua chance de fugir para nenhures. Não importa que 58 segundos não sejam suficientes para encontrares o teu álbum de casamento ou o cobertor favorito do teu filho ou a candidatura à faculdade quase preenchida da tua filha ou os teus sapatos ou para chamar toda a gente da casa. Não importa os planos que tinhas feito. Não importa quem és. Prova que és humano. Prova que te deslocas sobre duas pernas. Foge.
Lena Khalaf Tuffaha é poeta, tradutora e ensaísta e tem origens da Palestina, da Síria e da Jordânia. Fala fluentemente árabe e inglês. Escreveu o livro de poemas “Water & Salt” (Red Hen Press), que venceu o “Washington State Book”, em 2018, “Kaan and her sisters” (Trio House Press, 2023) e “Something about living”, que venceu o “Prémio Akron de poesia”, em 2022. É inspirada pelas fronteiras culturais, geográficas e políticas, viajou por grande parte dos países árabes. A sua experiência como tradutora também lhe trouxe variadíssimos prémios.
CONVERSEI EM PODCAST COM… JOANA MANUEL
É uma prestigiada atriz de teatro e a voz de inúmeras lutas sociais.
Enquanto ativista participou na campanha pela legalização da IVG, deu a cara pela igualdade no casamento, pela despatologização das pessoas trans e integrou o grupo inicial que convocou a manifestação “Que Se Lixe a Troika — Queremos as Nossas Vidas”, de 15 de Setembro de 2012.
Há mais de uma década, uma intervenção de Joana Manuel numa conferência em que falou da desesperança de uma geração, viralizou no Youtube com milhares de visualizações. Este ano, Joana foi a icónica matriarca 'Mortícia' no musical “A Família Adams” e prepara-se para participar numa nova série da Netflix. Apesar das críticas ao atual Governo, e da precariedade da profissão, deixa claro: “O teatro salvou-me a vida!”
A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.
E deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguir o que ando a fazer.
É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Até lá, desejo-lhe uma boa semana, com muito do que gosta!
Um abraço,
Bernardo