Uma pequena mão sapuda surge à espreita num fato largo a segurar um comando. É um comando de televisão. É o comando dos EUA.
Um aparelhómetro poderoso que pode provocar profundos e danosos sismos económicos e sociais não só na América, como em muitas outras latitudes. Como é o caso da Europa, e pior: pode acionar o botão da Terceira Guerra Mundial…
Nesse perigoso comando as teclas dizem coisas como “Power” (Poder); “Mute” (Mudo); “Pause” (Pausar); “Stop” (Parar); “Stifle” (Sufocar); “Silence” (Silenciar); “Shun” (Evitar); “Sack” (Despedir); “Banish” (Banir); “Oust” (Expulsar); “Muzzle” (Mordaça); “Axe” (Machado); “Dismiss” (Demitir); “Torment” (Tortura); “Deport” (Deportar).
O que descrevo é a imagem que ilustra a última capa da revista New Yorker, para a edição de 29 de setembro.
O autor deste cartoon é o genial Barry Blitt que, mais uma vez, foi certeiro, com o lápis bem afiado, a simbolizar os ataques massivos, e sem precedentes, da governação de Trump aos media e programas federais, assim como os constantes abusos do poder deste novo executivo, a inaugurar uma nova era de vingança política e ajuste de contas da força MAGA.
Democracia americana em “Mute”
O botão para implodir a liberdade de expressão, o jornalismo independente e o livre pensamento crítico continua a ser pressionado com cada vez mais vigor pela mão sapuda. A democracia americana entrou agora no modo “Mute” ou “Pause”.
No arranque da semana, Donald Trump anunciou ter colocado uma acção de 15 mil milhões de dólares contra o jornal “The New York Times”, numa clara intenção de o levar à falência e fechar.
O homem da mão sapuda com cabelo de faisão chinês, o todo poderoso que comanda a América, alega que os jornalistas do NYT são “parte de um padrão de décadas de difamação intencional e maliciosa” contra o próprio. A purga começou.
No final desta semana o botão da expulsão voltou a ser accionado. Desta vez, foi a cadeia de televisão americana ABC que suspendeu o programa de Jimmy Kimmel na sequência de comentários que o apresentador fez sobre o assassínio de Charlie Kirk.
Tudo isto porque o apresentador do programa “Jimmy Kimmel Live!” afirmou na passada segunda-feira, durante o habitual monólogo, o seguinte:
“Atingimos novos mínimos no fim de semana com o gangue MAGA [‘Make America Great Again’] a tentar desesperadamente caracterizar este miúdo [Tyler Robinson] que assassinou Charlie Kirk como alguém que não um dos deles e a fazer tudo o que podem para marcar pontos políticos com isto.”
Na América de Trump, a verdade despida de aspas incomoda. E quando servida com sarcasmo e humor, mais irrita a força MAGA que em julho terá feito com que a CBS anunciasse o cancelamento do “The Late Show with Stephen Colbert” no final da temporada atual. Um programa que cutucava as incongruências e decisões do poder, defendia a diversidade, os Direitos Humanos e a empatia.
Curiosamente consta que Charlie Kirk não suportava a palavra “empatia”, por considerá-la “um termo da nova era que causa muitos danos.” O mesmo que era conhecido pelas suas ideias radicais, opiniões inflamatórias e discriminatórias.
RIP Democracia Americana
E como é próprio das ditaduras e autocracias, na América a ‘verdade’ agora é só uma, é a de Trump e mais nenhuma. E quem ousa criticar a força MAGA habilita-se a levar com um processo milionário ou a ficar sem trabalho.
Ao contrário do que alguns escrevem, não se trata do resultado de uma cultura de cancelamento. Porque não resulta de uma esmagadora onda de protestos críticos de uma comunidade de espectadores.
São sim ordens diretas de Trump a querer tirar de cena todos aqueles que o criticam ou lhe fazem frente. A fogueira começa a ficar alta. Mas este é ainda o início da caça às bruxas.
A democracia americana está com os dias contados. Já só respira com meio pulmão. E a cada ordem destas, sufoca mais e mais. Até quando vamos considerar a América um país livre?
Gaza: O jogo sujo (de sangue) é claro
Mudemos agora de canal para a zona do mundo onde se passa a pior tragédia humanitária de que tenho memória desde que existo.
O mesmo homem da mão sapuda já se mostrou interessado em erguer o seu comando e carregar no botão “Banish” (Banir), para limpar do cenário de Gaza a população resistente que se mantém corajosamente viva.
Recordo que em fevereiro passado, Trump tinha-se gabado de ter um projeto lucrativo para o futuro de Gaza: transformar o território devastado numa “Riviera do Médio Oriente”, que prevê colonatos com habitações para 1,2 milhões de judeus, expulsando os dois milhões de habitantes do enclave para países vizinhos, como a Jordânia e o Egito.
E agora o próprio ministro das finanças israelita, Bezalel Smotrich, aliado de Netanyahu ligado à direita radical e que representa os colonos, afirmou publicamente a sua intenção de demolir Gaza e fazer dela uma “mina de ouro imobiliária” com a ajuda dos Estados Unidos. Como dorme esta gente à noite?
O jogo sujo (de sangue) é claro. A estratégia do governo de Netanyahu está à vista de todos, não há cartas na manga.
A ideia é capitalizar milhões à custa da morte e expulsão dos palestinianos da sua própria terra. E pelo andar desta matança sem limites, haverá bem mais corpos para enterrar, e menos habitantes para expulsar.
Há muito que nos faltam as palavras para descrever o genocídio que se passa atualmente em Gaza.
Não é conflito, é matança de um povo inteiro às mãos do governo sionista israelita, com a cumplicidade dos EUA e de outras grandes potências mundiais.
Não é uma resposta de defesa para o ataque do Hamas, nem é para salvar reféns. É para de forma criminosa, cruel e perversa matar à fome, à sede, à bala e à bomba uma população inteira. É puro ódio, massacre e tentativa de extermínio.
Os principais alvos e as maiores vítimas são as crianças. As que sobreviveram aos ataques estão esfomeadas, traumatizadas, algumas amputadas, e muitas só têm água salgada para beber.
Este nível de desumanidade faz-nos regressar aos tempos mais obscuros da História. Sim, ao Holocausto.
Como pode um país e um povo que sofreu o que sofreu no passado, estar a fazer com outros o que fizeram com eles?
Mais mortos do que Lisboa inteira
O número da carnificina indicado há poucos dias numa conferência de imprensa pela relatora da ONU para os territórios palestinianos ocupados, Francesca Albanese, é mais do que chocante: “Devemos começar a pensar em 680 mil mortos em Gaza”.
Estas contas são feitas por alguns académicos e investigadores sobre a verdadeira cifra de mortos em Gaza.
Ou seja, prevê-se que nestes mais de 700 dias de absoluto terror em Gaza, tenha morrido o equivalente à população inteira de Lisboa, e mais 100 mil nos seus arredores. (Já que em 2024 se estimou viverem na capital portuguesa cerca de 571.435 pessoas.)
“Se este número se confirmar, 380 mil serão crianças com menos de 5 anos”, deixou Albanese ecoar na sala.
O número oficial de palestinianos mortos em Gaza anda nos 65 mil, dos quais mais de 75% são mulheres e crianças.
Já é tempo de Portugal se juntar ao grupo de Países que reconhecem o Estado da Palestina. E saltar de cima do muro, da suposta neutralidade, que o deixa cúmplice das agressões e crimes do Estado de Israel.
Que não haja dúvidas: Os cúmplices dos genocidas têm as mãos igualmente manchadas com a cor da morte.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, deixou nas entrelinhas uma crítica às posições sobre esta matéria do ministro dos negócios estrangeiros português, Paulo Rangel, ao parabenizar o Governo de Pedro Sanchéz afirmando que "aprecia de forma muito positiva" a posição desse executivo na "defesa dos interesses do povo palestiniano".
Entretanto a missão da Flotilha Humanitária Global Sumud segue o seu caminho pelo mar em direcção a Gaza, a envolver 50 embarcações e centenas de ativistas, para entregar comida e medicamentos, decidida a furar o cerco ilegal de Israel.
A bordo de um dos barcos está a deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua, a atriz Sofia Aparício e o ativista Miguel Duarte.
Embarcações essas que têm estado a enfrentar ataques de drones incendiários enviados por Israel.
Ao contrário de outros países, o governo português demarcou-se de ajudar a manter a segurança da embarcação que leva os três portugueses e outros civis não armados que transportam ajuda humanitária. Até quando?
Um livro e um poema
Termino com o título de um livro e um poema de outro. Trazem as palavras que me faltam.
O título é de um ensaio, publicado pela editora Tinta da China, que vai beber a um tuite escrito pelo premiado autor egípcio-canadense Omar El Akkad a 25 de Outubro de 2023, quando os bombardeamentos em Gaza se intensificaram.
E se o escrito é grande, não deixa de ser eficaz no desconforto que provoca:
“Um dia, quando for seguro, quando não houver consequências pessoais por chamar as coisas pelos nomes, quando for demasiado tarde para responsabilizar seja quem for, sempre teremos sido todos contra isto.”
Quanto mais tempo passa, mais esta citação ganha eco nas grutas de tantos silêncios.
O poema com que fecharei esta newsletter é da escritora e poeta Shahd Wadi, autora do livro “Chuva de Jasmim”.
Um livro que aconselho a todas as pessoas que gostam da poesia com vísceras.
Li-o na edição especial do“A Beleza das Pequenas Coisas - Ao Vivo”, realizada na passada quarta-feira no Teatro Maria Matos, em Lisboa.
Foi uma noite memorável, tão hilária quanto íntima, genuína e comovente, que teve como convidados os excelsos Marta Bateira e Hugo van Der Ding e uma casa cheia de gente que connosco celebrou estes felizes dez anos de conversas. Como costuma dizer o Hugo, foi “muito awesome.” (muito incrível.)
Nas costas levei uma frase bordada que me veste desde o início: “A Empatia é a Grande Cena!”
Precisamos dela mais do que nunca.
O poema de Shahd que volto a trazer para aqui chama-se “Povo Pássaro”:
“E lá, atrás do muro, há um povo.
Vive nas árvores,
bebe água da chuva,
respira todo o vento.
Um povo só, ensina o mundo a bater asas.
Ainda não sabe voar, mas já canta,
exatamente como os pássaros”
CONVERSEI EM PODCAST COM…ISABELA FIGUEIREDO
Desta vez republico a conversa gravada ao vivo em janeiro deste ano no Festival PodFest com a escritora Isabela Figueiredo.
Por ocasião da celebração dos dez anos de existência deste meu podcast, o mais antigo podcast original do Expresso, recordo este episódio especial com a autora dos livros “Caderno de Memórias Coloniais”; “A Gorda” e “Um Cão no Meio do Caminho” que fala sobre a imigração em Portugal, a vida que agora leva na aldeia e revela os temas do novo romance que anda a preparar: a morte do pai e, mais uma vez, as memórias de África.
“Estou-me nas tintas se sou cancelada. Vou continuar a fazer aquilo que acho que deve ser feito.”
A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.
E deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguir o que ando a fazer.
É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Até lá, desejo-lhe uma boa semana, com muito do que gosta!
Um abraço,
Bernardo