A Beleza das Pequenas Coisas

Não há beleza em matar fascistas

Não há beleza em matar fascistas.

Porque quem dispara a bala que atravessa a garganta de criaturas hediondas, as tais que usam o microfone para mentir, manipular, ferir ou tirar de cena quem não representa os ideais ultra conservadores (e fictícios) , torna-se noutro monstro. Um assassino. Mais ainda se for num regime democrático.

E passaremos a ser governados pela lei da selva, da bala, do olho por olho, e dente por dente.

Qual é o lugar da violência?

Nenhuma morte é justificada para combater politicamente alguém. Nenhuma vida deve ser tirada para calar o mais absurdo, perverso, cínico e vil discurso, num país livre. As regras da democracia são outras.

Há lugar para a violência na luta por um mundo melhor? Podemos violar as regras da democracia para melhor a defender?

Estas são as questões principais da peça teatral de Tiago Rodrigues, “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas.”

Um brilhante espetáculo estreado há cinco anos, sempre com salas esgotadas, de volta aos palcos portugueses em 2026. E que resultou num livro homónimo, editado pela Tinta da China.

E onde é que começou? Na opiniãozinha. A maldita opiniãozinha que ninguém teve a coragem de matar à nascença.

O terrorismo, a violência, a repressão e a perseguição política devem ser sempre condenados numa democracia saudável. De resto, são já muitas as vozes de todos os espectros políticos a condenar este ato.

O crime que está a chocar a América é grave e vai criar muitos sismos políticos e sociais.

Por mais raiva que cresça entre os dentes de quem assiste ao esplendor da aliança MAGA na América, quando se mata a tiro alguém que fala para uma multidão de jovens, perde-se toda a razão e o sentido. Com esse disparo tomba também a democracia e a liberdade. É o triunfo do mal.

América mais rachada

Foi o que aconteceu com a bala que matou o ativista conservador Charlie Kirk, numa universidade do Utah.

A América ficou ainda mais rachada, e é certo que nada de bom vem daí. Ultrapassou-se mais uma linha vermelha, o que adensa a paranóia, e o ódio que se radicaliza nas trincheiras.

Já se prevê que Kirk seja transformado num mártir perfeito, a legitimar todos os atropelos aos direitos humanos que aí vêm a caminho e sedes de vingança num país com livre acesso às armas.

Recordo como a bala que rasgou a orelha de Trump na campanha para as últimas eleições lhe permitiu galgar uma narrativa de santo salvador, e resultou num empurrão extra para o seu regresso à Casa Branca.

A violência não é caminho. O único combate e a arma política eficaz para todas as tiranias que medram e sobem ao poder em vários lugares do mundo é através do debate público.

Importa muscular e aperfeiçoar a retórica nas discussões, desmontar-se os discursos enviesados, com dados, factos, bons argumentos, e uma linguagem adaptada aos novos palcos digitais que chegam aos mais jovens. Isto e a luta por mais acesso à educação, à cultura e à informação credível.

É esta a resistência ao mundo das trevas que se anuncia. É tempo de combater a lógica das trincheiras.

Trump fez saber que o FBI já tem nas mãos o suspeito do homicídio. Mas, mesmo que tal seja verdade, a coisa não vai ficar por aqui.

“Fascista, toma!”

Num dos invólucros das balas que ficaram por disparar podia ler-se “fascista, toma!” E outras provocações como “oh bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao”. De acordo com o que a Reuters apurou, a música Bella Ciao faz parte de uma lista do Spotify de um movimento de extrema-direita crítico de Kirk…

Espera-se um feroz contra ataque numa América armada, violenta e cada vez mais extremada e alucinada.

Kirk, o fanático

Dito tudo isto, Kirk não era uma voz da liberdade, nem flor que se cheire.

Era um influenciador evangélico com a mira apontada às multidões juvenis, autor do podcast “The Charlie Kirk Show”, e presença assídua nas universidades onde fazia uma lavagem cerebral aos estudantes, tirando partido da perdição e desânimo dos jovens, particularmente rapazes, apostando toda a sua oratória nas questões da suposta guerra cultural e, claro, com a lenga-lenga do ódio de consumo rápido a culpar as pessoas imigrantes, as pessoas LGBTQIA+, em particular as trans, e os grandes meios de comunicação social por todos os problemas da América de Trump.

Com este discurso, servido de forma carismática, Kirk era uma figura pop, o rosto jovem da América MAGA, e um fanático que promovia teorias conspirativas racistas da ‘Grande Substituição’.

O mesmo que afirmou que a Lei dos Direitos Civis foi uma falha, que defendeu o armamento da população, que as crianças deviam assistir a execuções públicas (!) e que considerou ser um ‘erro’ ser-se gay”. Ou seja, era racista, machista, homofóbico e com uma noção muito própria de como educar as crianças… Mas não merecia morrer por isso.

Merecia sim ser criticado, denunciado, confrontado com fortes oponentes democratas, capazes de desmontar os absurdos que Kirk espalhava para as massas e de esclarecer os jovens e a restante população sobre a agenda perversa e maligna que pessoas como Kirk trazem consigo.

A máquina de fazer extremistas

Claro que esta onda de ódio não inunda só a América. Por cá, a direita radical segue a linha de Kirk e está dedicada a seduzir massivamente os mais novos nas redes sociais, nas escolas secundárias e universidades. Ventura e Rita Matias seguem essa cartilha. O que é grave e perigoso.

Os alvos preferenciais são os jovens eleitores, ou aqueles que passarão a votar nos próximos anos. O jornalista Miguel Carvalho dá conta disso no livro “Confidencial — Por Dentro do Chega”, onde r​​evela o modo de funcionamento do partido liderado por André Ventura que, de forma insidiosa, é uma máquina de lavar cérebros e de criar novos extremistas.

Ódio na porta do WC

Termino com o relato de uma amiga que, a meio de uma formação sobre saúde e diversidade na universidade onde está a fazer um doutoramento, foi à casa de banho.

E, já sentada na sanita, numa WC com cheiro a limpo e a lavado, olhou para cima, para a zona onde se escrevem devaneios sexuais e números de telefone, e deu de caras com várias frases mais sujas do que trampa, junto de símbolos nazis.

“Açores anti-pretos”, “preta de merda”, “Luta pela Revolta Branca!”, “Imigrante Porco”.

Perturbador. Que futuro nos espera? Saberão os seus pais e mães disto? Aprenderam isto em casa, nas redes? Deve a escola tomar posição sobre isto? Responsabilizar-se?

Estas miúdas e miúdos provavelmente já votam. Poderão alguns chegar a cargos de poder e a lugares políticos. Merecem uma bala na testa ou na garganta? Não. Os seus discursos fascistas é que devem tombar.

CONVERSEI EM PODCAST COM…RICARDO PAIS

Ricardo Pais fotografado para o podcast "A Beleza das Pequenas Coisas"
Nuno Fox

Ricardo Pais acaba de cumprir 80 anos e garante nunca ter ambicionado ser um homem do seu tempo, embora considere que “antigamente o futuro era habitado com mais esperança.”

Bastidor da gravação do podcast "A Beleza das Pequenas Coisas" com Ricardo Pais
Nuno Fox

O seu percurso é marcado pela direção de grandes instituições teatrais, com uma fugaz passagem pelo Teatro Nacional D. Maria II e uma forte presença no Teatro Nacional São João, do Porto.

Isto além dos seus múltiplos papéis artísticos, enquanto encenador, ator e professor. Ricardo afirma que, agora que vive mais fora de cena, está a tratar da sua cabeça e a dedicar-se ao novo tempo, depois das sobras, sem grandes saudosismos ou pretensões.

Ouçam-no aqui.

DEZ ANOS E TANTAS CONVERSAS…

E sem me dar conta passaram dez anos.

“A Beleza das Pequenas Coisas” é o podcast mais antigo dos jornais portugueses. Estreou em 2015, no Expresso, e celebra este outono o seu 10º aniversário.

Nada disto teria sido possível sem vocês que me escutam, e sem as centenas de ilustres pessoas que tão generosamente têm partilhado semanalmente comigo, convosco, as suas vidas, reflexões e inquietações. Com as glórias e seus avessos e fracassos. Grato.

Para assinalar a data, lancei um livro homónimo que está nas bancas, com 50 conversas marcantes, farei um espetáculo ao vivo, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, onde vou conversar com a dupla de convidados, Beatriz Gosta e Hugo van der Ding, a realizar-se no próximo dia 17 de setembro (já esgotado). E, em breve, sairá uma nova trilha sonora.

O livro está disponível nas livrarias e sites habituais, e o podcast pode ser ouvido em expresso.pt ou na sua plataforma preferida de podcast.

A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.

E deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguir o que ando a fazer.

É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Até lá, desejo-lhe uma boa semana, com muito do que gosta!

Um abraço,

Bernardo

A Beleza das Pequenas Coisas