Há dias, a propósito da morte do escritor peruano Mario Vargas Llosa, prémio Nobel da Literatura em 2010, o ator Filipe Vargas, que foi meu entrevistado, recordou o primeiro romance do autor, “A Cidade e os Cães” (“La Ciudad y los Perros”) — um retrato duro e violento de uma Academia Militar onde não há mais espaço para se ser humano.
Filipe citou uma passagem conhecida dessa obra de Vargas Llosa, que descreve o lado mais brutal e feio dos homens, cada vez mais notório, insuportável e notícia no país desde que a extrema direita cresceu em votos e em lugares na Assembleia, nestas últimas eleições.
Isto, a acompanhar a tendência europeia e mundial, de legitimar a selvajaria, a maldade e o ódio gratuito contra minorias e mulheres.
Um ódio que andava latente nas redes sociais e começa a perder a vergonha, o pudor, e a andar na rua à luz do dia, sem máscara, sem açaime, sem medo. Ou talvez alimentado pelo medo. O seu e o dos outros.
O uivo dos demónios
E o trecho de Llosa ecoa assim:
“As raposas do deserto de Sechura uivam como demónios quando chega a noite. Sabe por quê? Para quebrar o silêncio que os aterroriza.”
Filipe acrescentou a esta citação, o comentário: “Quando ouço nas notícias e nos debates tantos gritos carregados de ódio e intolerância, lembro-me sempre desta frase. No fundo, é só gente assustada, desconfortável com a sua fragilidade.”
Ele tem toda a razão. Talvez mesmo as criaturas neo nazis que agrediram de forma gratuita, cobarde e criminosa o ator Adérito Lopes, à porta do Teatro A Barraca, em Lisboa, tenham agido como essas raposas, desconfortáveis com a fragilidade da sua masculinidade.
Os machos King Size
Vinham de uma esplanada, em Santos, armados em machões, a performar a mesma teatrada de género que a artista interdisciplinar Sónia Baptista satiriza no seu brilhante espetáculo King Size. (Em cena até dia 15 de Junho, na Sala Estúdio Valentim de Barros, nos Jardins do Bombarda, uma produção do Teatro Nacional D. Maria II.)
Sónia usa a arte do drag para brincar com certos mitos de género e uma ideia de masculinidade performativa, violenta, que se identifica também nestes rufias com cadastro e sinalizados pela polícia, apesar de apagadas do RASI, (oh, my dog, Gods!), educados numa cultura ainda demasiado machista e misógina.
A mesma que mantém os números de violência doméstica, no namoro e de feminicídio tão escandalosamente altos no país, em relação ao resto da Europa.
Quanto aos neofascistas que rasgaram o rosto de um ator, sabe-se que alguns estão associados a grupos europeus e, pelo menos um deles, esteve envolvido na morte de Alcindo Monteiro.
Fala-se de ritual de iniciação do jovem de 20 anos que avançou para cima de Adérito, sem nenhuma troca de palavras ou provocação. Quis talvez provar que era tão mau como os mais velhos do gangue. Mas o mesmo rapaz acaba de dar uma entrevista ao Observador dizendo que atuou alcoolizado e que não sabia da ligação do grupo à extrema direita…
Cada um de nós é uma soma
Recordo que este gangue distribuía nessa altura panfletos nacionalistas e xenófobos falando de pureza de sangue e de ‘portuguezes’, assim mesmo escrito com Z. Mas é ‘pequenez’ que se escreve com Z.
E grandeza também tem Z e será para sempre um predicado ligado ao discurso da escritora Lídia Jorge, nas celebrações do dia 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas:
“Aqui ninguém tem sangue puro. Cada um de nós é uma soma.”
Talvez o grupo de marginais que atacou um ator à porta de um teatro, o tenha feito por raiva da cultura, uma arma poderosa contra atos e pensamentos fascistas. A arte, a par da educação, tem muito mais alcance e força do que 30 rufias com soqueiras nos dedos.
Como escreveu Vergílio Ferreira “o ódio diminui-nos.” E a cultura é sempre uma soma e a inspiração para novas revoluções.
O ‘entãosismo’ descarado
Diz-se ainda que estes agressores neonazis atuaram frente a uma sala de espetáculo, porque associam os atores à malta de esquerda — as pessoas ‘wokes', feministas, LGBTQIA+ e suas aliadas, assim como apoiantes de imigrantes. Logo o inimigo, a ameaça.
Alguns comentadores televisivos e até o próprio Presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, contribuíram de forma cúmplice para este discurso perigoso, polarizador e desonesto, a colocarem na mesma balança a extrema direita com o que chamam de… ‘extrema esquerda’. Relativizando e comparando o incomparável. Num ‘whataboutism’ descarado e despropositado, para desviar a atenção do essencial.
Mas esclareçam-me lá, que esquerda tem organizado ou inspirado espancamentos e gerado medo a cidadãs e cidadãos?
Recordo que na mesma semana, no Porto, dois militantes neonazis atacaram voluntárias da CASA— Centro de Apoio ao Sem Abrigo durante uma ronda com a carrinha da organização na Rua Júlio Dinis.
Mulheres e imigrantes sob ameaça
Estes extremistas ameaçaram as mulheres, gritando-lhes que “não tinham que estar a ajudar estrangeiros”, segundo relatou uma das vítimas. A PSP foi chamada ao local e chegou a haver tentativa de agressões aos próprios polícias, que acabaram por imobilizar, no chão, estes agressores.
Que esquerda tem criado este tipo de insegurança e violência?
Foram várias as fontes da área da investigação criminal, contactadas pelo Expresso, que confirmaram o que escrevi em cima. Que os pequenos grupos neonazis, ultranacionalistas ou identitários ganharam “maior à vontade”, que passaram a estar mais à vontadinha, após o crescimento da extrema-direita no mapa eleitoral.
Na mira dos ataques de rua, a comunidade imigrante é o grande alvo a abater.
Sabe-se que estes movimentos medram nas redes sociais e nos grupos fechados destas organizações.
Quem os investiga dá conta que nesta fogueira de ódio as principais vítimas são as minorias étnicas, a comunidade LGBTQIA+ e as mulheres.
Estes mesmos cães raivosos, os incels, atuam em plataformas como o Telegram, praticam ciberviolência e divertem-se em jogos online em que o alvo são raparigas e o objetivo para fazer ganhar mais pontos é violar, abater e persegui-las. Como travar isto e arrancar o mal pela raiz?
A beleza e a arte como vingança
Regressei a casa de alma cheia depois de ver o espetáculo “As Mulheres que Celebram as Tesmofórias”, da artista transdisciplinar Odete, em cena até dia 15 de Junho, no Teatro Variedades, em Lisboa.
Uma comédia sombria e ousada que faz uma "arqueologia do humor”, e confronta em palco muitos dos demónios, raivas e discursos que continuam a agredir e a matar mulheres e pessoas trans.
E que critica as masculinidades inseguras que insistem em querer abusar ou eliminar muitos destes corpos de cena, das ruas, da sociedade, da vida.
Aplausos de pé
Aplaudi de pé Odete pelo feito. Aplaudo de pé Pedro Penim, o diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II, pela visão, coragem, ousadia, sabedoria e lucidez ao fazer revolução através da programação que tem feito pelo país, com a Odisseia Nacional, fazendo chegar uma diversidade importante de espetáculos a muitas localidades e escolas de norte a sul, do litoral ao interior.
Infelizmente o próprio Penim já declarou publicamente um “aumento exponencial da agressividade” em espectáculos produzidos pelo D. Maria II, em especial nos que têm ido às escolas, através de gestos e palavras de ódio, e está a preparar um protocolo de segurança.
Espero que espetáculos como o da Odete, da Sónia Baptista, da Patrícia Portela, do coletivo Aurora Negra, entre tantos outros, cheguem a cada vez mais pessoas e públicos.
Não tenham dúvidas, é mesmo a cultura e a arte que nos salvam da tacanhez, da ignorância e do ódio. Não de forma imediata, mas é o que nos pode ajudar a pensar melhor, dando-nos perspetiva, sentido crítico, utopia, esperança e futuro.
Verdadeiros artistas são contra-poder
Como chegou a afirmar Vargas Llosa ao Expresso: “A literatura cria cidadãos críticos, que não se deixam manipular.”
E, noutra ocasião, o mesmo autor evidenciou o poder transformador dos criadores:
“Os verdadeiros artistas e criadores constituem sempre contra-governos, governos nas sombras a partir das quais vão impugnando as certezas, as retóricas, as ficções ou verdades oficiais e recordando, no que pintam, compõem, interpretam ou efabulam que, contrariamente ao que sustém o poder, o mundo vai muito mal, e que a vida real estará sempre abaixo dos sonhos e dos desejos humanos.”
CONVERSEI EM PODCAST COM … FILIPE VARGAS
Durante uma década foi criativo de publicidade em várias agências. Depois quis mudar de rumo. Estudou representação em Madrid e, aos 35 anos, estreou-se como ator na popular série “Conta-me como Foi”, na RTP.
Desde aí, tem feito um sem fim de papéis na televisão, no teatro e cinema. Após um ano emocionalmente duro em que acompanhou de perto o fim de vida dos pais, Filipe Vargas revela ter superado a fase com ajuda médica e da sua rede de amigos. Atualmente o ator revela-se preocupado com o rumo sombrio do mundo.
“A perda do sentimento de comunidade é o grande drama da nossa atualidade. O egoísmo, a obsessão com o dinheiro, a falta de informação e de empatia, desumaniza-nos. O povo desunido vai sempre ser vencido.”
A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.
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TOMEM NOTA:
No próximo dia 21 de junho, pelas 18h30, estarei na Feira do Livro de Lisboa, na Praça Leya, a apresentar o meu livro “A Beleza das Pequenas Coisas”, junto com o ex-ministro da Educação João Costa, a psicóloga e sexóloga Gabriela Moita e o poeta e dramaturgo André Tecedeiro.
Apareçam para dois dedos de conversa!
É tudo por agora. Esta newsletter entra agora de férias. Mas regressa em breve. Até lá, desejo boas semanas, com muito do que deseja e gosta!