Na passada quinta-feira os tripés das câmaras de várias estações televisivas, foram montados estrategicamente na sala da livraria Buchholz, em Lisboa, para apanharem o melhor ângulo da apresentação da obra “Dar e Receber Amor em Todas as Suas Formas”, pela Oficina do Livro.
Esses tripés testemunharam uma das mais comoventes e históricas apresentações de livros a que assisti nos últimos tempos. Mas, concretamente, as câmaras de filmar e os jornalistas que ali estavam para cobrir o evento não ouviram nem captaram nada do que foi dito.
Optaram por permanecer lá fora, no exterior da livraria, a dar canal e tempo de antena ao ódio.
A censura voltou à rua
O circo montou-se logo pelas 18h30 na rua Duque de Palmela, quando 8 figuras do movimento de extrema-direita Habeas Corpus apareceram para voltar a interromper e causar distúrbio em mais uma apresentação de um livro. Entre eles estavam José Pinto-Coelho, candidato do PNR e do Ergue-te às eleições legislativas, e Djalme Santos, que tem causado sucessivos distúrbios em vários lançamentos literários.
Desta vez, o alvo da tentativa de censura e silenciamento era o guia assinado pela jornalista Sara Dias Oliveira, com a Associação de Mães e Pais Pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género (AMPLOS) dirigido a todas as mães e pais, educadores e professores de crianças e jovens LGBTQIA+ para os ajudarem a lidar com medos, inseguranças e dúvidas, em relação à orientação sexual e identidade de género.
Um livro que idealmente deveria ser desnecessário, redundante, anacrónico até, mas que infelizmente é ainda essencial. E, por vezes, urgente.
Porque em Portugal o bullying que as crianças e jovens LGBTQIA+ sofrem ainda nas escolas, e mesmo nas suas casas, alvo de agressões da família, é ainda uma realidade atroz e preocupante, que está ainda por resolver, e que atinge a maioria desta comunidade de menores, em algum momento das suas vidas. Por eternos preconceitos, estigmas e falta de informação.
Cordão humano impede invasão
Cá fora, à porta da livraria, gerou-se a confusão. Quando os elementos do Habeas Corpus tentaram entrar no evento, logo um cordão humano se formou na entrada para impedir que esses elementos repetissem a intimidação que têm feito sistematicamente noutras apresentações de livros de autoras como: Lúcia Vicente, com o livro “No Meu Bairro”, Mariana Jones, com o livro “O Pedro Gosta do Afonso”, ou de Ana Rita Almeida, com o livro “Mamã, quero ser um menino!”.
A Polícia de Segurança Pública chamada ao local, arrastou à força uns quantos jovens da porta, para a desimpedir. Mas a barreira refazia-se sistematicamente com outros elementos decididos a impedir nova interrupção do movimento. Cantou-se a “Grândola, Vila Morena”, várias pessoas empunharam o livro à porta da livraria, como bandeira de liberdade. E a união fez a força, para que esses elementos não causassem distúrbio desta vez.
Ofegantes discursos de ódio
Naquela artéria na zona do Marquês de Pombal, os jornalistas e as suas câmaras captaram durante horas os ofegantes discursos preconceituosos dos elementos do Habeas Corpus, visivelmente incomodados com o título de um livro sobre amor, diversidade e direitos humanos de crianças e jovens LGBTQIA+.
Elementos com tiques de fascismo que continuam a espalhar desinformação e medo e que não concebem que num país livre e democrático haja crianças e jovens com identidades de género e orientações sexuais diversas que só precisam que educadores e famílias disponham de conhecimento para as ajudarem a ser quem são.
Aliviando-lhes sofrimentos, e o peso da rejeição, da culpa e da vergonha. E por isso este livro é importante. E serviço público.
O que as câmaras perderam
As câmaras lamentavelmente perderam o discurso comovente de Isabel Rodrigues, vice-presidente da AMPLOS, que falou deste livro como uma homenagem “aos filhes” que caminham sós, que não têm no seu lar um porto seguro. “Queremos que se sintam profundamente abraçados.”
E a título pessoal, Isabel agradeceu visivelmente emocionada ao seu filho trans. “O meu filho foi meu professor e abriu-me as janelas para um mundo novo, tornou-me uma pessoa melhor, mais atenta às desigualdades e às injustiças.”
Por fim, agradeceu a todas as pessoas presentes na sala. “A vossa presença é um sinal de liberdade e de não cedência ao medo.” E os aplausos foram mais fortes do que os protestos de fúria que se ouviam no exterior. “Juntos somos mais fortes”, afirmou com nervos à mistura o presidente da AMPLOS, António Vale.
As câmeras infelizmente também não apanharam o discurso da editora Rita Fazenda que falou deste livro como “um momento histórico” e “um veículo de abertura de mentes e de afirmação da nossa liberdade”; nem captaram as palavras da jornalista e autora Sara Dias Oliveira, sobre as famílias reais, de carne e osso, que integram jovens e crianças LGBTQIA+, que precisam de um livro como este que celebra os 15 anos da AMPLOS.
As histórias comoventes das famílias
A Sara contou-me depois que tudo começou numa matéria do Observador e, após um repto da Leya, passou a projeto de livro.
“Comecei a ouvir as mães, os pais, jovens, adultos, filhas e filhos. As suas histórias (aquela expressão ‘nunca pensei que isto fosse acontecer comigo’), as preocupações ('como a sociedade vai olhar e o que vai dizer da minha filha e do meu filho?'), as culpas ('será da educação? demasiado rígida, demasiado permissiva?'), as aflições ('como serão tratados nas escolas, como os colegas e os professores os acolhem?'), os medos (a discriminação, o preconceito). O livro foi sendo construído nestas camadas.”
Sara, jornalista com larga experiência, partilhou ainda comigo que a tal reportagem que escreveu sobre a AMPLOS tornou-se, às tantas, uma gota no oceano. E precisou mergulhar mais fundo nas histórias e vivências destas famílias para perceber melhor realidades e desafios que escapam a tanta gente.
“Ouvir uma mãe e um pai dizer que o seu filho com três anos lhes disse que ia ser uma menina. Não que queria ser uma menina, que ia ser uma menina. E é.
Ouvir uma mãe dizer que queria falar dos dois filhos, não podia nem queria ocultar das conversas que um deles é gay e é muito feliz, e dizê-lo com um sorriso no rosto.
Ouvir a história de amor de duas jovens, dos beijos que davam, sem se importarem com o que os outros pudessem dizer.
E aquela mãe que demorou tempo a digerir, a arrumar a cabeça, para seguir o seu amor, o seu coração. E o livro foi nascendo num processo de escrita, ora tranquilo, ora desassossegado. É um livro com inquietações e sofrimentos.
Fala-se da saída do armário, de medos e dúvidas, de recomeçar e reformatar, de escutar, de acompanhar. De amar e respeitar. De caminhar em conjunto. É um livro sobre a liberdade de ser quem se é.”
Pés de microfone
Sara, jornalista por vontade e convicção, ainda mais me disse, sobre aquele fim de dia, feito de muita tensão. E algo distópico. Com os ditos tripés abandonados na sala de apresentação.
E as câmaras e os microfones na rua a apanharem cada soluço, cada grunho, cada espumanço dos extremistas do costume.
“Lá dentro, apresentava-se um livro e os meus colegas jornalistas estavam na rua. No fim, alguns, poucos, quiseram saber do livro; enquanto outros, o que tinha acontecido lá fora (mas eu não estava lá fora). Só horas depois de sair da livraria, é que vi imagens do que tinha acontecido no exterior. Prefiro guardar as imagens do que aconteceu no interior.
Mas, lá dentro, falei de nós, dos jornalistas, dos camaradas, da valorização da nossa função, da nossa profissão, de nos darmos ao respeito num tempo em que nos querem ver como pés de microfone e auriculares a soprar ao ouvido.”
Bastaria que as câmaras tivessem captado um pouco do tanto que foi dito nesta apresentação do “Dar e Receber Amor em Todas As Suas Formas” para que, além do circo mediático criado por alguns gatos pingados de discurso fascista, as pessoas pudessem realmente perceber a importância deste livro para as famílias de crianças e jovens LGBTQIA+...
CONVERSEI EM PODCAST COM… LUÍSA COSTA GOMES
É uma das vozes literárias portuguesas mais marcantes. Luísa Costa Gomes prepara um romance de ficção científica e acaba de lançar uma nova colecção de histórias breves: “Visitar amigos e outros contos”.
Neste podcast fala de como não cede à pressão do tempo, é crítica da produção massiva de “um certa evangelização, moralismo e didatismo” nas obras que enchem as livrarias, fala da televisão como uma “espiral descendente”, de “vileza” e "estupidificação geral” e alerta para o perigo dos dogmas e da morte da democracia.
A escritora esclarece ainda que não viveu nenhum renascimento, após um percalço: “Tive pneumonia, nada de mais. A vida tem umas sacudidelas. Penso na morte desde que nasci, faz parte”.
Ouçam-na aqui no podcast A Beleza das Pequenas Coisas.
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É tudo por agora. Temos encontro marcado aqui no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!