A Beleza das Pequenas Coisas

Regresso ao futuro e à força do coletivo

Não há duas sem três. E volto com mais uma partilha de outro projeto notável que está a nascer numa aldeia do interior do país, depois daquele que vos contei na última newsletter.

Dei-me conta dele também no Bons Sons, que, está visto, além da boa música que tem, é um festival de bons encontros e de histórias e projetos fora de série.

Depois de um abraço apertado dado a duas amigas, a atriz e criadora Carolina Serrão e a produtora Sofia Estriga - que ali apareceram para ouvir ao vivo Ana Lua Caiano - fiquei a saber que elas estavam também a organizar um novo festival que se vai realizar daqui a um mês numa terriola vizinha.

Da esq. para a dta Sofia Estriga e Carolina Serrão, as diretoras artísticas da "Festa do Futuro" e Carolina Campanela que está a desenvolver um projeto de dramaturgia no Souto

“A Festa do Futuro”

Um evento numa escala bem mais pequena, mas bastante inspirador, que promete dar que falar daqui para a frente, a celebrar novas utopias numa outra aldeia. E que apela à força e poder do coletivo local, com a ambição de atrair a atenção futura do país para essa região.

Ou não lhe tivessem chamado A Festa do Futuro, que vai ter a sua primeira edição na aldeia do Souto, na zona de Abrantes, nos próximos dias 21 e 22 de Setembro, num festival cultural e artístico multidisciplinar que juntará teatro, dança, workshops, música, instalações e artes plásticas, com a curadoria desta dupla e a participação das gentes daquele território.

Cartaz da 1ª edição do festival "Festa do Futuro", na aldeia do Souto, Abrantes, da autoria de Joana Tavares

Devolver auto-estima à aldeia

Uma espécie de regresso ao futuro, para recuperar o melhor das memórias, dos saberes e da cultura de uma aldeia esquecida, trazendo-lhe nova autoestima e estímulos e atraindo público de outras regiões para conhecerem as maravilhas e curiosidades locais, resgatando aquelas gentes do isolamento, da apatia e do abandono.

“É a aldeia do meu avô, que tem 89 anos. Um lugar muito envelhecido e desertificado, onde até agora havia muito pouca coisa cultural a acontecer. E decidimos fazer um ‘shake, shake' naquela paz e sossego.’, contou-me a Sofia Estriga, que se mudou de Lisboa para a aldeia há uns meses.

Quis saber mais. Tudo começou com algumas conversas de grupo, numa roda misturada com os mais velhos e mais novos daquela região, que estas amigas organizaram na aldeia, no âmbito do projeto “Inventar Aldeia”, da associação “Além Mundos”, de que fazem parte.

Dona Cristina, habitante a aldeia do Souto, a mostrar uma das belezas que fez com o tear

Para Carolina e Sofia conseguirem esse círculo bem povoado de gente interessada e participativa tiveram que partir pedra, bater sola, andar porta a porta, convencer pessoa a pessoa, perder tempo. Ou melhor, ganhar tempo e abrandar, porque na aldeia o tempo é outro.

Ali as redes sociais não têm muito lugar e é com tempo, com vagar, cara a cara, que a confiança se instala.

Dona Cristina, antiga tecedeira do Souto, a mostrar a Carolina Serrão outra das suas obras feitas com tear

E nessa roda de gente madura e jovem ficaram a conhecer as lendas, os mitos, as histórias e tradições que estão a desaparecer à medida que os mais velhos morrem - como a arte das tecedeiras que abundavam na aldeia - mas também se falou sobre o futuro que as pessoas locais imaginam para a sua aldeia.

Tragam-nos outras coisas para a gente ver. Queremos mais coisas culturais de fora e gostaríamos de poder participar nelas.”, disseram-lhes.

Roda de conversa com as gentes da aldeia do Souto, que esteve na origem de "A Festa do Futuro"

O futuro aqui é coletivo

Começou assim a ser sonhada a Festa do Futuro. Um festival cultural e artístico sonhado pela comunidade, totalmente gratuito e de portas abertas “para toda a gente que vier por bem”, e que nesta primeira edição terá como tema “o coletivo”. Porque o futuro que desejam é coletivo.

Um dos desafios que Carolina e Sofia tomaram para si neste festival é tentarem mitigar os preconceitos com base no desconhecimento que estas populações mais isoladas e desinformadas poderão ter. Seja em relação ao racismo, ao machismo, à homofobia, à transfobia, ou à imigração.

E querem fazê-lo através de conversas, workshops, sessões de esclarecimento, e espetáculos vários. Porque a arte é mesmo uma arma poderosa de empatia contra a ignorância e intolerância. Sofia e Carolina planeiam nas próximas edições da “Festa do Futuro” dar cada vez mais ferramentas que capacitem e esclareçam as pessoas da aldeia sobre questões que desconhecem.

“Temos aqui muito trabalho para fazer. E é por isso que este é um projeto de longo prazo, com muito caminho para percorrermos. É um projeto de vida.”, esclarece Sofia Estriga.

Foi com o apoio da Câmara de Abrantes, e da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR LVT) que Carolina e Sofia conseguiram verba para dar o pontapé de saída deste festival.

Mas dão conta que sem a boa vontade e a ajuda de todo o associativismo de Abrantes, que lhes vai emprestar a maioria do material técnico, não teriam conseguido. O coletivo a fazer parte já do presente e do amanhã.

E assim Carolina e Sofia estão a colocar a região a mexer, a olhar-se ao espelho, a engalanar-se, e lançam o convite para todas as pessoas da localidade e do país a entrarem nesta nave-aldeia que garante uma viagem artística e comunitária única.

Com paragens em todas as estações e apeadeiros singulares do Souto. Do Coreto à zona da fonte, onde outrora as crianças e as mulheres se iam abastecer de água, para os banhos, para cozinhar e para os animais.

A fonte dos engates

É precisamente no caminho para a fonte onde serão instaladas várias colunas de som, num momento chamado “Ecos da Cantarinha”, onde se ouvirá a voz de Antónia, uma septuagenária carismática da aldeia, a contar as peripécias dessas idas à fonte.

“As crianças encontravam-se todas na fonte, para buscar água para os pais. Era como uma rede social, uma espécie de WhatsApp daquele tempo.”, conta Carolina Serrão. Um lugar também para namoricos. Para darem de beber ao desejo e ao amor. Muito antes do Tinder e agora da moda do engate nos supermercados junto aos ananases.

Cartaz de "Festa do Futuro" com o músico António Bastos

Todas as pessoas podem participar

Na programação desta Festa do Futuro, destaque no sábado (21 de setembro) para o concerto do músico António Bastos, no adro da Igreja, que cruza artes visuais com música e movimento, e mistura jazz, electrónica e música tradicional. Como nota particular, António cria algumas dessas músicas no momento, a contar com a participação do público.

Cartaz de "Festa do Futuro", sobre a performance de Filipa Francisco

Outro momento forte está a cargo da performance de Filipa Francisco “Para onde Vamos”, título inspirado nos escritos da feminista Maria Veleda (pioneira na luta pela educação das crianças e os direitos das mulheres).

Ao longo desta performance o público vai sendo incluído nela até se transformar numa espécie de manifestação que culmina numa caminhada performativa pela aldeia. Uma performance criada em tempos a convite de Madalena Victorino.

No domingo atua o grupo “Fio à Meada”, um coletivo de mulheres de Lisboa que canta músicas tradicionais, de norte a sul do país, em polifonia, acompanhadas pelo Adufe.

A particularidade aqui é que todos os temas são baseados nas músicas que acompanhavam e suavizavam a dureza dos dias de trabalho das mulheres no campo.

Cartaz de "Festa do Futuro" com o músico Hugo Wittmann

Por último, haverá um “Drum Circle”, uma experiência coletiva de ritmo e construção musical dirigida por Hugo Wittmann. “A ideia é em coletivo criar-se música. O que permite a alegria da conexão e fruição humana no momento”.

Comes e bebes, claro, não vão faltar. E consta que o vinho da região é bem bom. “O vinho produzido nas adegas locais do Souto é muito bom. E esperamos que a malta mais velha o dê a provar”, comenta Sofia.

Cartaz do festival "Festa do Futuro"

Árvores forradas com croché

Entre os preparativos para os festejos, 12 mulheres estão a produzir incansavelmente quadrados de croché para forrar algumas das árvores da aldeia.

Não serão ‘A Árvore da Vida’, de Joana Vasconcelos, mas darão certamente muita vida e pinta ao Souto. “Quem os está a fazer são as senhoras que fazem parte do grupo de bordados de Fontes e que, durante o verão, se ocupam a fazer os 'tops' para as netas usarem. E durante o ano inteiro estão intensamente a fazer colchas e enxovais”, conta Carolina.

Detalhe dos quadrados de croché que estão a ser produzidos para embelezar as árvores do Souto

Ambas as diretoras artísticas desta Festa do Futuro esclarecem que estão agora a deixar uma semente para que ela cresça e se desenvolva não só enquanto festival. A ambição é mais vasta e profunda.

“A Festa do Futuro não é apenas um festival que ocorre em dois dias, mas sim o início de um movimento popular que pretende incitar as comunidades à participação na vida pública e a terem uma voz ativa na criação e fruição cultural. E mais. Queremos que o Souto seja conhecido, novamente, por ser um local de interesse, e queremos construir relações duradouras com a comunidade”, explicam. Bravas!

Imagem do centro da aldeia do Souto, com o coreto em fundo

Souto entrou no mapa

O que é certo é que o Souto vai passar a entrar no mapa cultural, e a animação promete ser surpreendente, diferenciada, inclusiva, mas sem fazer uso do vira o disco e toca o mesmo nas festividades das aldeias, o ‘pimba’. Mesmo as gentes mais simples da aldeia expressam a vontade de mais e de outras coisas, além do óbvio.

E Sofia e Carolina acabam de mostrar que é possível fazer melhor e diferente, em coletivo, dando lugar de escuta e voz às pessoas da terra.

E aqui ficam algumas das palavras de ordem desta nave futurista forjada pela Sofia e Carolina que espera por vocês no final de Setembro:

NO FUTURO JUNTAMOS/ A FESTA DO FUTURO É JUNTAR

NO FUTURO TEMOS TEMPO/ A FESTA DO FUTURO É TER TEMPO

CONVERSEI EM PODCAST COM…OLGA RORIZ

José Fernandes

Olga Roriz é uma das criadoras que mais marcaram o rumo da dança e das artes performativas em Portugal. Para o ano, a sua companhia de dança completará 30 anos de existência e Olga celebrará 70 de vida e 50 de carreira. Atualmente, a coreógrafa está em fase de pesquisa para o seu próximo solo, “O Salvado”, mais de 10 anos depois do seu último “A Sagração da Primavera”, estreado em 2013.

A data deste seu regresso aos palcos está marcada para julho de 2025, primeiro no Porto, depois em Lisboa. Olga levanta a cortina do que está a preparar e deixa o apelo: “Dancem mais.” Ouçam-na aqui.

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A Beleza das Pequenas Coisas