A Beleza das Pequenas Coisas

Regresso à aldeia dos melhores sons

Há uma semana estive no meu festival de música preferido. O mais português, o mais genuíno e o mais carismático. Falo do festival Bons Sons, na aldeia de Cem Soldos, concelho de Tomar.

Esta foi a 12ª edição (realizada entre 7 e 11 de agosto) de uma festa comunitária, numa aldeia em movimento, com 18 anos de vida, a celebrar a música e a cultura portuguesa, num festival que mistura público de várias gerações, gente da aldeia e da(s) cidade(s), e que não está tomado pelo espírito das ‘selfies’, das marcas, do pimba (que tem o seu lugar, mas não aqui), do ir só para ser visto, e que vem provar que nem só o que bate nos tops lá fora, vindo do estrangeiro, é que é bom e enche festivais.

Imagem da aldeia de Cem Soldos, durante a edição de 2024 do festival Bons Sons. (Foto de Pedro Sadio)

Viver a aldeia

Estou para aqui a falar com tanta propriedade, mas só conheci este festival há dois anos, depois de um casal amigo me ter convencido a ir, e fiquei logo tomado pelo gosto de “viver a aldeia” no Bons Sons, que tem o lema solidário “todos ajudam todos.”

O ano passado não houve evento, porque a aldeia fechou para obras. Mas este ano o Bons Sons regressou como espaço de todos os encontros. Um manifesto político de que a cultura deve mesmo ser acessível para todas as pessoas, de todas as idades e geografias, do litoral ao interior.

E, tal como da última vez, saí inspirado, renovado, e com novas referências musicais do que de melhor se anda a fazer musicalmente no país.

Organizado desde 2006 pelo Sport Club Operário de Cem Soldos (SCOCS), o Bons Sons começou por ser bienal e, a partir de 2014, passou a realizar-se todos os anos, sempre como uma plataforma de divulgação de música portuguesa, onde é possível descobrir projectos emergentes e reencontrar músicos consagrados.

Atuação do espetáculo "Quis Saber Quem Sou", no Bons Sons, de 2024. (Foto de Diogo Costa)

Tradição e futuro

A tradição e a memória a par com o presente e o futuro da música portuguesa numa aldeia em que todos os anos, durante uma semana em agosto, só é possível entrar com bilhete - na forma de pulseira, que pode ser carregada com dinheiro para consumo no recinto.

Importa dar conta que o fundador do Bons Sons é Luís Sousa Ferreira (atual adjunto da direcção artística do Teatro Nacional D. Maria II) que foi diretor artístico deste festival até 2019 e que nele deixou um cunho inspirador, único e digno de aplauso.

Num país onde o interior é ainda tão desertificado, em que as aldeias e as suas populações são esquecidas - e em que mais de metade dos portugueses não consegue indicar um projeto português que tenha beneficiado de fundos europeus - não é coisa pouca a criação deste festival que colocou a aldeia de Cem Soldos no mapa do mundo, a ajudar a desmontar preconceitos não só sobre a música e cultura nacional, mas também sobre as aldeias portuguesas, aqui numa forma mais humanizada e integrada.

Desta vez vibrei em especial com as atuações das bandas Cara de Espelho, Expresso Transatlântico e adorei conhecer Emmy Curl.

Imagem do público no festival Bons Sons, de 2024. (Foto de Carlos Manuel Martins)
Carlos Manuel Martins

A acutilância dos Cara de Espelho

Assistir ao vivo aos Cara de Espelho foi uma verdadeira emoção. Eles são um feliz encontro entre alguns dos nomes que marcaram a música portuguesa nos últimos anos: Deolinda, Ornatos Violeta, Gaiteiros de Lisboa, A Naifa, entre outros.

Maria Antónia Mendes e Carlos Guerreiro atuam como Cara de Espelho no Bons Sons. (Foto de Carlos Manuel Martins)
Carlos Manuel Martins

Com uma identidade sonora e poética que vai buscar muito à música tradicional portuguesa, e à acutilância dos seus poetas, tem olhos postos num futuro que se quer crítico e interventivo, com as letras aguçadas e brilhantes de Pedro da Silva Martins, as construções de instrumentos de Carlos Guerreiro, as guitarras de Luís J Martins, as percussões de Sérgio Nascimento e a voz, a pujança e o carisma de Maria Antónia Mendes.

Sugiro que comecem por ouvir o “Corridinho Português”, o “Político Antropófago”, o “Paraíso Fiscal” e… “As Varejeiras”. Sobre certas figuras da política, e não só, que se alimentam da miséria e da trampa. Varejeiras cretinas e chatas como a potassa. Deixo-vos um excerto da letra:

As Varejeiras anseiam pobreza
Fomentam o asco, a náusea e o nojo
Só a miséria lhes traz opulência
Por isso é que esfregam as patas com gozo
Se alguém as enxota, decidem zunir
Dos homens que riem da má sorte delas
E no fim são elas que dizem a rir
'Todos sabereis à mesmíssima
Merda!'
A varejeira ligeira a voar
em qual de vós é que ela vai poisar?

Os vibrantes Expresso Transatlântico

Gaspar Varela a tocar guitarra portuguesa na sua banda Expresso Transatlântico, no Bons Sons. (Foto de Carlos Manuel Martins)
Carlos Manuel Martins

O concerto do projeto Expresso Transatlântico no anfiteatro da aldeia (Palco Zeca Afonso) foi outro momento marcante e não deu para assistir sentado, porque o som pedia dança e anca e pé mais solto.

O repertório deles é de muito bom gosto, assinado pelos irmãos Gaspar Varela e Sebastião Varela e Rafael Matos.

Entre as influências da tradição portuguesa e as sonoridades globais contemporâneas este trio vibrante cria uma paisagem musical de uma Lisboa cosmopolita em que cabe lá dentro o fado tradicional, o rock, o blues, o funaná, o samba e todas as influências de uma Lisboa misturada de gentes e culturas.

Em 2023, a banda lançou o primeiro álbum “Ressaca Bailada”, que podem ouvir nas plataformas digitais, mas ao vivo é outra fruta. Leia-se música. Fiquem de olho neles, ouçam-nos ao vivo, e arriscam-se a ver Gaspar Varela, exímio músico de guitarra portuguesa, a surfar a audiência ao melhor estilo de ‘crowd surfing’. Aqui podem ouvir a conversa que tive com ele há duas semanas.

A boa surpresa de Emmy Curl

Emmy Curl no festival Bons Sons, de 2024. (Foto de Carlos Manuel Martins)
Carlos Manuel Martins

Não posso deixar de falar da boa surpresa que foi para mim conhecer e ouvir ao vivo a música de Emmy Curl. Que na voz soa aqui e ali a Lena D'Água, mas que na verdade tem uma identidade própria, que vai buscar inspirações à tradição.

Nascida e criada nas altas montanhas de Vila Real, Emmy ressuscita nas suas músicas as antigas melodias do folclore transmontano e celta “num ato de amor para com o património cultural português.”

E, neste festival, apresentou o recente disco “Pastoral” (2024) que envolve da melhor forma a tradição com batidas eletrónicas e sintetizadores modernos.

Não ouvi, com pena

Vaiapraia no Bons Sons, de 2024. (Foto de Carlos Manuel Martins)
Carlos Manuel Martins

Como cheguei a meio desta edição, perdi algumas atuações que gostava de ter visto e ouvido como o artista transdisciplinar e autodidata Vaiapraia, a Femme Falafel, vencedora da edição de 2023 do Festival Termómetro, ou o espetáculo “Quis Saber Quem Sou”, um concerto teatral que revisita as canções da revolução, encenado por Pedro Penim. Assisti a este último há meses no Teatro São Luiz, mas que ao que consta teve outro impacto e emoção no Bons Sons.

Houve outras escolhas na programação que gostei menos, mas a qualidade deste evento mantém-se ímpar e vibrante.

Em suma, a festa fez-se durante quatro dias, entre 43 concertos, 32 espetáculos e atividades paralelas realizadas por cerca de 200 artistas, além de outros concertos inesperados nas ruas da aldeia e de 30 concertos espontâneos no Palco Garagem.

Detalhe no público, a meio de concerto de Emmy Curl no "Bons Sons"

Contas feitas, a aldeia recebeu de braços abertos e música no peito 33.500 visitantes, além de atividades de dança, cinema, histórias encenadas, Burros de Miranda, percursos artísticos e oficinas, numa edição marcada pelos 50 anos do 25 de Abril, transversal a todo o cartaz.

De notar que nas ruas de Cem Soldos ficaram inscritas homenagens a Sara Tavares (que deu um concerto, em 2018), Fausto (concerto em 2010) e Armando Carvalhêda, que teve uma carreira ligada à rádio e fez inúmeras emissões da Antena 1, diretamente do Bons Sons.

‘Glamping’, o real barrete

Deixo uma pequena crítica, alheia ao festival, mas que vale a nota. Apesar do parque de campismo ser gratuito para o festival (e ter boa fama), tem sido disponibilizado nos últimos anos, por uma empresa externa, o serviço de ‘Glamping’. Ou seja, tendas já montadas que prometem boas condições e grande conforto.

Mas foi um real barrete que enfiei na tola. Além de bastante caro - ao preço de uma ‘suíte Deluxe’ num hotel de 5 estrelas em Tomar - as condições deixaram a desejar.

As tendas estavam ao sol, o que resultava numa sauna logo pela manhã. Faltou água, porque o caudal da região e as infraestruturas não estavam preparados para tanta gente, e o responsável pela coisa - chamemos-lhe “o senhor Glamping” - não esteve ao nível do Festival que sabe receber bem.

E eu sou a prova disso, porque há dois anos fui extremamente bem recebido ”no sótão da Daniela”, figura popular e simpática da aldeia - que ainda não tive o prazer de conhecer, mas que através de amigos, me deixou lá ficar gratuitamente, com o tal espírito da aldeia “toda a gente ajuda toda a gente”.

Desta vez tive menos sorte, marquei a ida em cima da hora, o dito sótão estava cheio, assim como os hotéis de Tomar, que têm ótimas condições.

Mas esse foi um detalhe sem muita importância, nestes dias de boa música, bons reencontros e abraços e mergulhos maravilhosos no rio.

Tenho até outras histórias inspiradoras para partilhar, que partiram de alguns desses reencontros, e que têm ocupado a minha cabeça desde então. Mas isso fica para eu contar na próxima newsletter, porque esta já vai longa.

Última nota: Se visitarem Tomar não deixem de almoçar ou jantar na Casa das Ratas & Casa Matreno, um restaurante com muitas histórias, algumas bem antigas, marginais ou revolucionárias, e que continua a ser um bom destino para comer bem, e ser bem recebido, sem ser preciso ‘vender um rim’ na hora de pagar a conta.

Desta vez, deliciei-me com um prato de migas de bacalhau, e rematei com uma mousse de chocolate das bem boas.

Quem está à frente da casa é o simpático João Nunes, que além de excelente anfitrião é um enólogo experimentado, que me deu a experimentar um vinho rosé da sua colheita. E, no final, houve o bom som de um brinde - com o João e a malta da mesa do lado - a prometer um regresso.

CONVERSEI EM PODCAST COM… CATARINA FURTADO

Bastidor da gravação do podcast "A Beleza das Pequenas Coisas" com Catarina Furtado
José Fernandes

Há mais de 30 anos que Catarina Furtado é uma das apresentadoras mais interessantes e populares da televisão portuguesa. E cedo provou ter mais predicados além da evidente beleza e excelência na comunicação.

Desde 2000 é embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), um convite de Kofi Annan para angariar verbas e ajuda humanitária destinada a mulheres e jovens de países mais pobres e vulneráveis.

E, em 2012, ergueu a associação Corações com Coroa, que se dedica a projetos de empoderamento de raparigas e mulheres em situações de vulnerabilidade, risco ou pobreza.

Catarina afirma que nunca teve um grande amor pela televisão, mas sim pelas pessoas. E que é esse o amor que nos salva. Ouçam-na aqui.

BELEZAS, se quiserem dar-me o vosso feedback, deixar comentários, convites, sugestões culturais, lançamentos, ideias e temas para tratar enviem-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com

E aqui deixo a minha página de Instagram:@bernardo_mendonca para seguirem o que ando a fazer.

É tudo por agora. Temos encontro marcado aqui no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!

A Beleza das Pequenas Coisas