Esta é uma newsletter especial, escrita a muitas mãos. É um manifesto poético, uma espécie de cadáver esquisito de Abril, bem vivo, pulsante e livre, por 11 poetas, escritores e escritoras, autores e autoras, que aqui assinam textos exclusivos a celebrar a revolução dos cravos.
O desafio que lhes lancei foi partirem do mesmo lugar, as mesmas batidas cardíacas a servirem de mote, “50 anos a celebrar o 25”, e que, a partir delas, escrevessem o que quisessem. O resultado é o que vão ler de seguida.
Depois de um dia tão histórico e bonito que juntou largas centenas de milhares de pessoas no passado dia 25, na Avenida da Liberdade, a celebrarem a democracia com cravos e cartazes na mão, uma multidão feliz sem princípio nem fim, o meu desejo é que esta newsletter, este abraço conjunto de abril, se junte aos vossos festejos e ganhe vida nas vossas vozes, e nas vozes das pessoas com quem o partilharem com liberdade. E prazer. Vinte e cinco de Abril, sempre! Fascismo nunca mais!
Perdoem-me a ousadia. Começo eu. Mas prometo que melhora. E muito. Boa viagem!
50 anos a celebrar o 25. Venham mais 50. Cravos sem escravos. E sem escravas. Que força é essa? Canta o SG Gigante e agora a Capicua. Cuidado com uns certos 50. Usa-se a medida 50/50 para falar de IGUALDADE. Mas ela ainda não está a passar por aqui. Vamos em frente, continuemos a marchar por sonhos lindos todos os dias, todos os meses, todos os anos, todas as vidas. Enchamos o céu da boca e o céu das ruas com a palavra LIBERDADE. E, já agora, DIVERSIDADE.
JUDITE CANHA FERNANDES, POETA:
50 anos a celebrar o 25 para eleger 50 fantasmas. Nós, encafuados em 50 quilómetros de terra junto ao mar ouvindo o vento bater em 5000 hectares de eucalipto desertos.
Não morrem, os fantasmas? Não os levam daqui os 1000 aviões que pousam por dia para despejar turistas e levar nossos filhos e filhas fugindo de 4000 euros o metro quadrado e estágios até aos 500 anos?
Há 247 milhões de escravos atravessando o mundo por ano para servir e morrer em qualquer lugar. “Para a morte parecemos ter todas as medidas, mas para a vida ainda não descobrimos a dimensão das arestas”, disse-me o E.A. Meneghin quando lhe li isto. Que dizer? Que ainda há quem aqui acredite que atravessámos 6500 quilómetros de oceano para oferecer 500 ramos de flores e 8 postes de iluminação?
Que, como o resto do mundo, achamos ser patrões de nós próprios? Que somos 10 milhões de avestruzes cegas entre 8 bilhões de avestruzes cegas? O algoritmo apita 0101010101, e já esquecemos as 40h semanais, disfarçamos as olheiras com botox e uma selfie, e saltamos da cama. A qualquer hora. As mulheres saem para três jornadas de trabalho e mais uma e os homens continuam a ir para as guerras que nunca acabam. Vemos um genocídio comendo pipocas à noite, exaustos, antes de tomar um diazepam e cair de sono no sofá. Números?!? Quais números?!?
Pessoas, bichos, plantas. Vida e morte atravessando brevemente o espaço. Infinitos singulares de todos os géneros fazendo sua jornada no espaço. Olha... Um homem passou ao meu lado na mesa do café trauteando a Grândola e a rapariga na mesa em frente acompanhou... Ainda veremos Catarina trazendo nos braços pão de ló e rosas antes de tombar.
Nunca mais, nunca mais! dizia o corvo do Poe - Aprendamos a escutar os pássaros. A enterrar definitivamente os fantasmas e a amassar pão e fruta e queijo e amor igual aos olhos de minha mãe. Afinal, nós inventámos o astrolábio, porra! Que é como quem diz, inventámos a fusão de um astro com dois lábios. Um astro, dois lábios, o tempo, círculo que roda.
MIGUEL-MANSO, POETA:
Cinquenta anos a celebrar o vinte e cinco e, por presente, cinquenta asnos a conspurcar no Parlamento os nossos outros dias todos. Jumentos que o sistema ajaezou para passatempo de quem. Agora teremos de recuar ano a ano até ao dia – limpo, inteiro, inicial – em que sabíamos tratar-lhes da saúde. E, de caminho, nos perguntarmos: valeu roer até ao vácuo um ideário?
Já esteve na rua, a poesia. Agora está na sua. Repetimos vocábulos (por exemplo: liberdade) até à casca, ao pó, ao som. Punho e cravo são a exúvia deles mesmos, tão erguidos. Cinquenta vezes erguidos e quase nenhuma abraçados. Vinte e cinco de Abril: não sempre mas: em toda a parte (por exemplo na Palestina).
Mais leituras, mais aturados estudo e escuta – achismo nunca mais! Menos homens-brancos-velhos-e-chatos-que-amam-ouvir-se. Mas (matriar)arquemos com as consequências do que destruíram, do que seguirão destruindo se não forem parados.
E toda a força às jovens activistas climáticas, que lutam como…como se fossem vencer. E que o poder desconcentre, e o dinheiro se distribua. E votemos noutro partido que não O Fim do Mundo, mesmo sendo esse o mais votado. Voltemos uns tantos, já agora, do litoral (não foi boa aldeia abandonar o interior) com as antenas subidas, os pés no chão.
Que a alegria do início, renovada, nos livre dos defeitos da rotina. Que sejamos sempre todas e não alguns – cuidando-se, envolvidas, comovidas dentro do chavão AMOR, em pura práxis.
CLÁUDIA LUCAS CHÉU, POETA E ESCRITORA:
50 anos a celebrar o 25 de Abril e tenho-me lembrado de um dos episódios em A Gaia Ciência, de Nietzsche, que vou citar de cor: um louco acendeu uma lanterna em pleno dia e correu para a praça a gritar: «Procuro Deus! Procuro Deus!» Quem não acreditava em Deus, riu-se e disse: «Este deve estar perdido, como uma criança.» O louco então gritou: «Eu digo-vos para onde foi Deus. Nós matámo-lo. Somos todos assassinos.»
Tenho pensado como este louco se parece com alguns de nós nos últimos tempos, em que gritamos pelas ruas ou através de outros meios tecnológicos mais recentes. Muitos de nós, tidos talvez como loucos, sentimos a necessidade de fazer a mesma pergunta, mudando apenas o sujeito procurado: «Onde está a liberdade?» É que pressentimos que estão a querer matá-la. E a culpa será de todos.
Deus pode estar morto desde as páginas de Nietzsche, mas não podemos deixar que alguém escreva, nas praças ou nas leis, a morte da liberdade. O meu compromisso é continuar a escrever e a sonhar este país.
RAFA JACINTO, POETA:
50 anos a celebrar o 25. Para pessoas com discalculia, isto não quer dizer absolutamente nada, é inclusive uma tarefa inglória imaginar uma celebração pela metade.
São apenas números, dizemos. Não, eu não consigo enxergar números. Não, eu não sei com quantas laranjas é que o Amílcar ficou se deu metade à irmã. E as celebrações querem-se inteiras, não é?
Mas sabemos que a irmã ficaria certamente feliz com a partilha da metade. O problema é que isto não é apenas um problema matemático, é uma festa de aniversário onde existem decotes excessivos e o bolo tem 25 gomos de laranja vivaços e não 50, apodrecidos."
CLÁUDIA R. SAMPAIO, POETA:
50 anos a celebrar o 25 do dia que entrou pelo lado mais longínquo da liberdade e da canção pura que arrancou à madrugada o véu de um lugar que não lhe reconhecia o passo.
FILIPE HOMEM FONSECA, AUTOR:
50 anos a celebrar o 25, e hoje há quem nos diga “mas lutem baixinho, não acordem os turistas e os nómadas digitais, vão mais para ali que é para não se verem as tendas dos que vivem na rua, olhem que dá mau aspecto, respeitinho é muito bonito, boas maneiras à mesa mesmo sem nada para comer, partir a louça é que não, pensem como vos dizemos para pensar, vivam como vos deixamos viver;
despolarizem, filhos, despolarizem, a liberdade de expressão tem as costas largas quando é para impormos limites à liberdade dos outros, já não se admite fora da tradição, ai a tradição, ai; o corpo é de quem?, é de quem, o corpo?,
porque é que o corpo é de quem o tem?, então e a família?, a família só é família se for tradicional, tomem lá a conversa de que nos querem obrigar a coisas mesmo quando só querem é que não vos obriguemos a coisas que só a vós dizem respeito;
tomem lá o discurso de que vivem acima das vossas possibilidades, agradeçam terem emprego sequer, engulam esta de que os imigrantes explorados é que têm a culpa da crise, esqueçam os lucros da banca e os salários miseráveis, tomem lá banda larga e muito circo, chupem gourmet, chupem low cost, roam um papo-seco e façam filhos, que esta Disneylândia precisa de quem produza riqueza para os accionistas; em cada rosto igualdade?, não: em cada filho um colaborador futuro, trabalhador não, co-la-bo-ra-dor, um colaborador é mais empenhado, o empenho prescinde direitos, querem que isto avance ou não querem?,
um passo atrás de cada vez, 50, 49, 48, sempre a puxar para trás, rumo a 74, a antes do 25, então não se estava tão bem?, antes é que era”; e a resposta é, hoje e sempre, só pode ser: não, não, não, não passarão, não passarão, não passarão.
ANA PAULA TAVARES, POETA:
50 anos a celebrar o 25. 50 anos para celebrar o 25 de Abril, bonita festa, pá e tudo. E a sul é sempre onde dói mais. Primeiro o estranhamento e a vida da vida de todos os dias que não podia ser só acreditar e demorou um tempo o tempo todo e a onze de novembro um novo dia. A terra dos antepassados aquietou-se. Então para o vinho das oferendas.
Não chegava um dia e suas exíguas horas para voltar ao princípio. Havia feridas urgentes para sarar e foi preciso aprender uma nova língua para dizer alto e bom som a luta continua e visitar os caminhos desenhados no mapa dos rios antigos dizendo alto os nomes e as veias de sangue que os alimentavam.
A história precisava voltar e para celebrar era preciso chamar cada coisa pelo seu nome. A terra moveu-se sobre si mesma e à volta do sol, mas ainda não era nossa e ficámos de pé e de perfil à espera do homem novo com os óleos do começo e as rezas da salvação. Vieram muitos e muitos dias e homens e mulheres com olhos rasos da sede e a teoria dos cestos para contar. O deserto floriu seus geodes de quartzo e o sangue da buganvília sustentou-lhe as flores uma e outra vez.
A guerra ao longe perturbava as almas. Olhámos do Sul o dia inteiro e limpo, passaram cinquenta anos e andamos ainda e sempre a aprender a celebrar.
MARIA QUINTANS, POETA:
50 anos a celebrar o 25,
oh nó de lastro solto
na ardência do gelo
oh exílio tremendo a saber
a solidão
oh raiva de bálsamo ferida
num querer-bem lancinante
oh povo de pedra feito
no derrame de um ardor sério
oh tu que escreves na voz
a violência dos sorrisos falsos
descarna a culpa
levanta o eco do extermínio
em que te deitas
recusa a carícia do poder cínico
oh ninhadas jovens castradas
de infinito
a revolta será sempre um tanque
guardado no sangue.
JOÃO PEDRO VALA, ESCRITOR:
50 anos a celebrar o 25 e, para afastar o nevoeiro que se abateu sobre o dia inteiro e limpo, sugerem agora apagar o sol.
RAQUEL NOBRE GUERRA, POETA:
50 anos a celebrar o 25 de Abril, para que a liberdade seja não ter medo nunca mais. 50 anos a celebrar o 25 de Abril, para que a liberdade seja não ter medo nunca mais. 50 anos a celebrar o 25 de Abril, para que a liberdade seja não ter medo nunca mais. 50 anos a celebrar o 25 de Abril, para que a liberdade seja não ter medo nunca mais. 50 anos a celebrar o 25 de Abril, para que a liberdade seja não ter medo nunca mais.
SOFIA PERPÉTUA, DRAMATURGA:
50 anos a celebrar o 25 e todos os outros números, palavras, cores, músicas, sorrisos, piscares de olhos, gentes, passos de dança, bandeiras, versos, que o 25 permitiu que existissem. São poucos anos, mas enorme a vontade de viver o ideal democrático impresso na identidade de Portugal pela coragem de quem foi para a rua nesse dia, o dia onde finalmente livres, sem medo, vivemos, viveremos, nos realizamos, e pelo qual lutaremos sempre.
Saber que apesar de tropeços e tropeções caminhamos devagarinho para este ideal, mãos dadas, dedos entrelaçados, horizontes nossos, na defesa da constituição, saúde, pão, habitação e educação para todos, braços abertos para o mundo, é saber que a cada 25 de abril se renovam os motivos para celebrar a memória viva que me deixa o peito a arder de orgulho. Que de tanto repetidas, as palavras de abril sejam força, que não caiam no vazio, porque a revolução se fez de palavras sentidas, suadas, por tantas décadas sufocadas. Que estejamos à altura de abril porque revolução é destino.
Caminhamos sobre as mesmas pedras da calçada onde pisou Salgueiro Maia, o povo da minha cidade, a minha mãe e o meu pai, no dia mais lindo de todos, quando eu ainda não existia mas foi por mim que eles tomaram as ruas. Que abril viva em todas as avenidas de Portugal e do mundo, cravos vermelhos por todo o lado, coração a bater forte, é primavera, há sol, flores e alecrim, revolução taurina, livre, que se cumpre, e como é bonita a festa, pá!
CONVERSEI EM PODCAST COM… TIAGO RODRIGUES
Quatro anos após a estreia do premiado espetáculo “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, o atual diretor artístico do Festival de Avignon, em França, Tiago Rodrigues, acaba de publicar o seu texto da peça em livro, pela Tinta da China.
Nesta conversa, feita no rescaldo do espetáculo “Na Medida do Impossível”, sobre as experiências limite de profissionais humanitários em situações impossíveis, o encenador e dramaturgo Tiago Rodrigues, Prémio Pessoa em 2019, reflete sobre as revoluções que faltam fazer para a saúde da democracia, nos 50 anos do 25 de Abril. Onde chega a afirmar sobre uma certa cena final que assinou na peça que resultou agora num livro: “Para escrever um discurso fascista passei horas a estudar como mentem e manipulam. E horas a tomar duche para me libertar.”
Ouçam-no aqui nesta conversa em podcast, dividida em duas partes.
O QUE ANDO A LER
“Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, de Tiago Rodrigues, ed. Tinta da China
Eis o livro com o texto da peça de Tiago Rodrigues que aqui ganha mais fòlego e camadas com um pósfácio muito bem escrito e pensado pelo jornalista Gonçalo Frota. Diria que de leitura desejável para toda a gente.
A família desta história mata fascistas. É uma tradição antiga que cada membro do núcleo familiar sempre seguiu. Hoje, reúnem-se novamente numa casa no campo, no Sul de Portugal. Uma das jovens da família, Catarina, vai matar o seu primeiro fascista, raptado de propósito para o efeito. No entanto, Catarina é incapaz de concretizar o homicídio ou recusa-se a fazê-lo. Estala assim o conflito, acompanhado de várias questões.
O que é um fascista? Há lugar para a violência na luta por um mundo melhor? Podemos violar as regras da democracia para melhor a defender?
O espectáculo criado a partir deste texto, com encenação também de Tiago Rodrigues, foi apresentado com grande sucesso de crítica e público em várias salas portuguesas e em vários países, merecendo o Prémio de Melhor Espectáculo Estrangeiro em França e Itália. Eis um cheirinho do que lá vai dentro:
«E como é que começou tudo? Com a opiniãozinha. Explorando o medo e o preconceito. Mentindo. Manipulando. Criando a infra-estrutura da impunidade. Os alicerces do edifício fascista. Agora vale tudo. Porquê?
Porque nós permitimos que eles continuassem a falar, a falar, a falar. Que nojo. Há anos a ouvi-los. Cada vez mais opiniões.
Cada vez mais vozes fascistas. E nós a ouvi-los. Uma náusea. Uma impotência. Uma vontade de matar. E queres tu que eu o deixe falar? Para fazer um dos seus discursos? As palavras são poderosas, Catarina. Devias saber isso. Os discursos que ele escreveu, agora são leis. Amanhã serão artigos da Constituição. E onde é que começou? Na opiniãozinha. A maldita opiniãozinha que ninguém teve a coragem de matar à nascença.»
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É tudo por agora. Temos encontro marcado aqui no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!