A Beleza das Pequenas Coisas

“Certamente todos temos amigos e amigas que são…”

Passou quase uma semana desde o dia inicial, fragmentado e sujo, em que um milhão e 100 mil pessoas escolheu colocar a cruz no ódio e na imoralidade. Desde aí muitas têm sido as vozes a dizer que não é crível que tantas pessoas sejam racistas, machistas, xenófobas, homofóbicas, transfóbicas, ou anti-democráticas. Em suma, quiseram fazer-nos acreditar que não temos no país tantos retrógrados, fascistas e reacionários. E que estes 48 deputados eleitos pelo Chega foram votos de puro descontentamento e indignação. Por zanga. Por birra. Por puro protesto e ignorância. Por serem do contra.

Pois bem, lamento dar-vos a má notícia. Não há só um milhão e 100 mil pessoas preconceituosas votantes em Portugal. Há até mais. Quanto privilégio é que é preciso ter para não se darem conta disso? Em que bolha vive quem não se dá conta de que o preconceito anda mesmo no meio de nós?

Provavelmente todos temos amigos e amigas que são. Ou familiares. Ou colegas de trabalho. Ou chefes. Ou vizinhos. Ou professores dos nossos filhos. Ou até a pessoa ‘simpática’ que nos vende o pão, a fruta, que nos corta o cabelo, que nos atende no banco ou nos correios. Mas nem damos conta ou fechamos os olhos, não valorizamos. Afinal de contas, não é connosco e a dita ou o dito até tem piada e trata-nos bem.

Mas é tempo de não tolerarmos a intolerância e o ódio. Foram estes instintos básicos e pequeninos que na História levaram ao poder partidos fascistas e nazistas. Negarmos o racismo, o machismo, a homofobia, a transfobia e a xenofobia, que existe a vários graus e estilos na população portuguesa, não nos leva a nenhum lado bom. Limparmos a imagem de quem votou no ressentimento e preconceito, não nos deve deixar com a consciência limpa. E ainda há os outros que confundem pluralismo de ideias, com quem se acha no direito de propagar desinformação e amesquinhar, ofender e perseguir minorias. E isso é insuportável, sim. Ser pelos direitos humanos, pela liberdade e diversidade não deve ser uma coisa só de esquerda. É tempo de desmontarmos e desconstruirmos preconceitos. Com factos, com informação credível, com empatia, com mundo, com disponibilidade para conhecermos os outros que não são iguais a nós e percebermos que, afinal de contas, os bichos papões são fantasias criadas para dividir, polarizar e iludir.

Ainda ontem estávamos sob o jugo de Salazar e da PIDE e, 50 anos depois, aqui estamos nós, com um partido antidemocrata a agigantar-se na Assembleia e disposto a usar a democracia para rebentar com ela e disposto a limpar o sebo de grupos sociais escolhidos como bode expiatório: os ciganos, os negros, as pessoas trans e demais comunidade LGBTQIA+. Os mesmos opressores salazarentos que chamam “histéricas” às mulheres emancipadas com voz e poder, e que lhes querem retirar o direito ao aborto.

E não sejamos ingénuos, se o descontentamento político criou de facto um caldo bom para o populismo, se houve quem se sentisse seduzido por um projeto político extremista e securitário, também muita gente se sentiu ouvida e legitimada quando um líder partidário subiu ao palanque para apontar certos alvos sociais como inimigos e ameaças, com base em mentiras, frustrações e raivas.

Ou seja, se há um líder político a dar voz a sentimentos de desprezo pelo outro, de medo pelo outro, de preconceito pelo outro, se vem alguém dizer publicamente, ‘sim, isso está certo’, ‘também penso isso’ claro que isto dá força a discursos de ódio de taberna, nutridos por sentimentos mesquinhos, rasteiros, primários, alarves, boçais, que nada têm de bom. E que chegam depressa a muita gente. Dos mais velhos aos mais novos.

Dou um exemplo, vindo da zona que se pintou a azul na noite das eleições, o Algarve. Uma região votada ao abandono, com sérios problemas no acesso à cultura e à água potável, só lembrada quando o país e os turistas vão a banhos. A tempestade perfeita para o populismo reinar.

Esta semana troquei mensagens com a Cláudia M., de 45 anos, professora de geografia do ensino secundário em Portimão, que me relatou ter observado na segunda-feira, à porta da sua escola, dezenas de jovens aos urros a celebrarem a vitória do Chega. Muitos deles já votantes, que disseram frases como: “Agora é que nós lhes mostramos quem é que manda. Agora vamos rebentar com estes gajos todos e limpar isto tudo.” Tudo bem pontuado com vernáculo. E com as habituais ofensas e ameaças xenófobas, racistas, transfóbicas, homofóbicas.

“Foi desconfortável para mim que sou professora, assumidamente lésbica e casada com outra mulher. Senti que houve alguns comentários que me foram direcionados. Muitos destes jovens que dizem coisas destas, são filhos de imigrantes, mas já nasceram em Portugal. E sentem-se no direito de criticar os que estão no país há menos tempo. Porém nós precisamos destes novos imigrantes para trabalhar, senão não temos ninguém a atender nas lojas, nem nos hotéis, porque há uma carência gritante de trabalhadores. E além desta xenofobia há muitos comentários homofóbicos e transfóbicos.”, assinalou.

Nada que me espantasse e que foi bem traduzido numa matéria assinada recentemente pela jornalista Fernanda Câncio, no Diário de Notícias, sobre o bairro lisboeta “Portugal Novo”, nas Olaias, a dar conta que quem estima os valores machistas do patriarcado e vai na cantiga de que ‘a culpa é dos ciganos’, vota no Chega.

Cláudia alertou ainda que estes seus alunos não se interessam por ideologias políticas, nem se regem por ideias de esquerda ou direita. Vão na onda. E acreditam sem grandes questionamentos no que lhes chega às redes sociais, em particular ao Tik Tok, onde André Ventura é rei. “O Chega soube aproveitar-se disso e captar muitos jovens em vídeos de 15 segundos, que é o máximo de tempo que eles aguentam com atenção. E fizeram uso de frases impactantes que ficam na memória como o ‘limpar’. Esta palavra foi dita, usada e abusada durante este período todo.”

Mas o que importa limpar é este discurso de fúria e engano. Que não haja ilusões. A democracia é frágil e os seus valores têm de ser protegidos por todos nós. É importante defendermos as instituições democráticas que nos ajudam a preservar a decência, e é vital para a democracia não se normalizar e desvalorizar as narrativas de ódio na família, na escola, no trabalho, à mesa, nas ruas, nos media, nas redes sociais, ou mesmo na Assembleia da República.

E, quanto a isto, volto a trazer aqui as palavras do historiador americano Timothy Snyder, na obra “Sobre a Tirania”:

“Acredita na verdade. Repelir os factos é repelir a liberdade. Se nada é verdadeiro então ninguém poderá lançar críticas ao poder. (...) Responsabiliza-te pela face do mundo. Os símbolos do presente tornam possível a realidade de amanhã. Presta atenção às suásticas e a outros sinais de ódio. Não desvies nunca o olhar e não te habitues à sua presença. Elimina-os com as tuas próprias mãos e dá o exemplo para que outros façam o mesmo (...)

Dedica mais tempo à leitura de artigos longos. Subsidia o jornalismo de investigação através da subscrição de meios de comunicação social na sua forma impressa.

Compreende que parte do que se encontra na Internet é divulgado com o intuito de prejudicar. Informa-te acerca dos websites que investigam campanhas de propaganda. Responsabiliza-te pelas tuas trocas de informação com outras pessoas.”

Greve e manifestação dos profissionais de comunicação social no Largo Camões, em Lisboa

Termino esta newsletter a assinalar a greve nacional de jornalistas ocorrida na passada quinta-feira pela luta por condições de trabalho dignas, salários decentes, fim da precariedade e de horários absurdos, que continuam a dar cabo da saúde física e mental de tantos de nós. Não há democracia sem bom jornalismo.

Não se combate os populistas e a tirania sem bom jornalismo. Mas a maioria dos jornalistas é desvalorizada, recebe miseravelmente, vive em constante pressão, esgotamento e sacrifica tudo pelo amor à profissão. Até quando?

Retratei um dos cartazes que resume isto mesmo, na manifestação que juntou uma multidão de gente no Largo Camões, em Lisboa: “O amor ao jornalismo não paga contas!”

Greve e manifestação dos profissionais de comunicação social

Deixo aqui parte do discurso de Pedro Coelho, jornalista de investigação da SIC, nessa mesma tarde:

“A última greve geral de jornalistas aconteceu há 42 anos. Nestes 42 anos, nunca olhámos para nós, quase nunca fomos notícia, e a invisibilidade a que nos remetemos custou-nos cara. Para os políticos quase nos tornámos irrelevantes. Numa campanha eleitoral inteira quase ninguém se dignou a falar de jornalismo. (…) E hoje queremos falar de nós, queremos falar da precariedade da profissão, dos freelancers pagos a preços escandalosamente baixos, dos contratados com salários miseráveis, dos que ganham o mesmo há mais de vinte anos, dos que são postos de lado porque têm rugas, dos que para sobreviver deixaram de poder ter uma vida ou nunca a tiveram. Somos vítimas da nossa invisibilidade e do nosso silêncio.

Olhem para nós, esta greve é um grito de alerta. Não falem de nós apenas quando falhamos. (…) A sociedade está a criar a ilusão de que pode viver sem jornalismo. Todos comunicam entre todos através das redes sociais. Diariamente consomem o lixo que polui a rede, sem perceberem que consomem lixo e informação inquinada produzida por interesses nefastos com o objetivo de contaminar. Por favor, olhem para nós, ajudem-nos a sermos de novo relevantes. Se o jornalismo morrer, a democracia e a liberdade morrerão com ele.”

CONVERSEI EM PODCAST COM…JOÃO SALAVIZA

O realizador João Salaviza durante a gravação do podcast "A Beleza das Pequenas Coisas"
Matilde Fieschi

Há dez anos que o realizador João Salaviza, e a companheira e cineasta Renée Nader Messora, filmam o povo indígena Krahô, no Brasil. A sua nova longa-metragem, “A Flor do Buriti”, que ganhou o “Prix d´Ensemble”, em Cannes, é o resultado dessa longa relação e tem estreia nacional marcada a 23 de março nos cinemas. Salaviza, que já foi premiado por outros filmes com o “Urso de Ouro” e a “Palma de Ouro”, conta-nos nesta entrevista como tudo mudou na sua vida e na sua obra, depois de conhecer Renée e o povo Krahô, que o inspiraram a mudar o foco do seu cinema.

“Quando tive a sorte de trabalhar com Manoel de Oliveira, no filme ‘Singularidades de uma Rapariga Loira’, ele disse-me: ‘Nós podemos vender-nos em muitos momentos, menos no momento de filmar.' Aí é inegociável. Depois perdemos um bocadinho o controlo. Dependerá do cartaz, do trailer, se vai para a sala do shopping ou não, se tem prémio ou não tem." Salaviza defende ainda que o cinema pode ajudar a questionarmo-nos: “Perdermos a capacidade de espanto é uma tragédia individual e social. O cinema pode devolver-nos perguntas e o espanto.” Ouçam aqui o episódio. Boas escutas!

O QUE ANDO A LER

“Maus hábitos” - de Alana S. Portero (ed. Alfaguara)

Este livro toma-nos a atenção e o coração à primeira linha e à primeira página. O título roubado a um dos icónicos filme de Almodóvar conta a história lírica e feroz de uma menina trans, a desbravar o caminho rumo à sua identidade, e a quem realmente é. Considerado como um dos 10 melhores livros de 2023 pelo El País, valeu este repto do próprio Pedro Almodóvar: “Peço-vos que leiam ‘Maus Hábitos’, para que compreendam em absoluto a escada de adversidade, sofrimento e perigo que é necessário enfrentar quando se cresce como pessoa trans.”

Eis um excerto:

“Eu, menina esperta, maricas encoberta, gaga, gorducha, com uma pala a cobrir-me o olho esquerdo e uns óculos maiores do que o desejável, era o oposto da imagem de uma pequena endiabrada […]. Quando os adultos olhavam para mim, achavam-me engraçada ou sentiam um pouco de pena, nada grave […]. Dava-me conta disso e aprendi a usá-lo a meu favor. Conseguia pensar em termos cruéis. A consciência de que necessitamos de um armário para nos escondermos torna-nos espertíssimos.”

Obrigatório para acompanhar estes tempos.

“Acreditar nas Feras”, de Nastassja Martin (ed, Antígona)

A sugestão de leitura é do realizador João Salaviza referida no podcast desta semana. Acreditar nas Feras (2019) narra o encontro brutal entre uma antropóloga e um urso na Sibéria, em 2015. Ele desfigurou-a, mas poupou-lhe a vida. Ela sobreviveu para contar este esmagador recontro, esta história «de um colapso e de uma ressurreição». Carregará consigo para sempre a marca da fera, ao tornar-se, segundo os Evenos, uma miedka, uma criatura habitada pelo espírito do animal e que vive entre dois mundos cujas fronteiras se estilhaçaram.

Acreditar nas Feras questiona uma humanidade que, no ensejo de tudo normalizar e controlar, esqueceu uma ligação ancestral e a pertença ao mundo natural.

O QUE VI E GOSTEI

Filme “A Flor do Buriti”, de João Salaviza e Renée Nader Messora

Premiado em Cannes, o filme traz um dos temas mais urgentes da atualidade: a luta dos Krahô pela terra e as diferentes formas de resistência implementadas pela comunidade da aldeia Pedra Branca, situada na região Tocantins, no Brasil.

O filme inicia-se em 1940, onde duas crianças do povo indígena Krahô encontram na escuridão da floresta um boi perigosamente perto da sua aldeia. Era o prenúncio de um violento massacre, perpetuado pelos fazendeiros da região. Em 1969, durante a Ditadura Militar, o Estado Brasileiro incita muitos dos sobreviventes a integrarem uma unidade militar. Hoje, diante de velhas e novas ameaças, os Krahô seguem caminhando sobre a sua terra sangrada, reinventando diariamente as infinitas formas de resistência.


O QUE ESTOU A OUVIR

“Dar de beber à desventura” - Fado Bicha

Ouçam os Fado Bicha neste novo single que dá agora de beber à desventura política, sobre um certo "artista da golpada" que “diz o que preciso for e o seu contrário." E, já agora, recordem aqui a entrevista que deram para o podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”

BELEZAS, se quiserem dar-me o vosso feedback, deixar comentários, convites, sugestões culturais, lançamentos, ideias e temas para tratar enviem-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com

E aqui deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguirem o que ando a fazer.

E é tudo por agora. Temos encontro marcado aqui no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!

A Beleza das Pequenas Coisas