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Das cambalhotas do pirómano mais poderoso do mundo ao Portugal “previsível” de Marcelo

Trump na 80.ª sessão da Assembleia Geral da ONU
Mike Segar

Trump cruzou-se ontem com Lula nos corredores da ONU, em Nova Iorque, à margem da reunião da Assembleia Geral. O encontro não terá durado mais do que meio minuto. Foi porém o suficiente, segundo contou o Presidente americano, para se abraçarem e combinarem um encontro na próxima semana. Entre os dois ‘rolou’ aquilo que Trump, na sua muito limitada complexidade afetiva, definiu como “uma excelente química”. Afinal, Lula até “parece um bom homem” (“a nice guy”). “Ele gostou de mim e eu gostei dele e só negoceio [‘do business’] com pessoas de que gosto.”


Este é o mesmo pirómano global que na véspera dizia, no memorial de Charlie Kirk: “Odeio os meus opositores. Não lhes desejo o melhor.” Fê-lo, de resto, mesmo depois da viúva anunciar que perdoava o assassino do seu marido.


É também o mesmo Trump que tentou intervir diretamente no poder judicial brasileiro lançando, em defesa do seu amigo Bolsonaro, uma guerra comercial de larga escala ao Brasil (o “tarifaço”, como lhe chamam os brasileiros).


Na resposta, como se sabe, o poder político brasileiro respondeu com reciprocidade absoluta. E o poder judicial também ignorou as ameaças, condenando com mão pesada (27 anos e três meses de prisão) o ex-Presidente brasileiro, por ter tentado um golpe de Estado em janeiro de 2021, quando resistia reconhecer a sua derrota para Lula nas eleições presidenciais que tinham ocorrido dois meses antes.


A condenação de Bolsonaro teve, de resto, um interessante efeito nos EUA: expôs a culpa e o arrependimento dos americanos ao não julgarem Trump por ter instigado a invasão do Capitólio em janeiro de 2021 (o eventou que, dois anos depois, inspirou o bolsonarismo a invadir o Congresso e o Palácio do Planalto).


Agora Trump já está pronto para “do business” com Lula. Dá a impressão que quando o adversário é poderoso e demonstra possuir uma coluna vertebral, Trump recua, reconhecendo (mas sem o afirmar, isso nunca faz) que a arte do bluff tem os seus limites. E quem na sua América também recuou foi a cadeia de televisão ABC. Uma parte da sociedade americana (ainda) com elevado poder de fogo no espaço público começou a apelar ao cancelamento de subscrições dos serviços streaming da empresa proprietária, a Disney, sentindo-se esta forçada a voltar atrás na decisão de afastar da antena o comediante Jimmy Kimmel.


Na vertiginosa viagem até ao fim da noite que o mundo e os EUA têm feito desde que Trump voltou à Casa Branca (foi há 247 dias), agarramo-nos, desesperados, a tudo o que pareça uma boa notícia.


Estamos, é certo, agarrados à velha tradição dos pobres perante uma esmola grande. Seguindo este princípio cautelar da desconfiança, recordo ainda uma outra notícia vinda terça-feira das bandas de Trump: depois de discursar na Assembleia Geral da ONU e de se ter encontrado com o Presidente Zelensky, o Presidente dos EUA, dando nova cambalhota, disse que afinal Kiev “está em posição de lutar e recuperar toda a Ucrânia na sua forma original”. “Vamos continuar a fornecer armas à NATO para a NATO fazer o que quiser com elas. Boa sorte a todos!”, escreveu, na sua rede social, Truth Social. “Sim”, respondeu, quando lhe perguntaram se achava que um avião da Nato podia abater um russo.


Na Assembleia Geral da ONU, discursando ali pela sexta e última vez, esteve também o Presidente português. Marcelo empenhou-se esforçadamente em defender os méritos de Portugal para aceder no biénio 2027-2028 a um lugar de membro não permanente no Conselho de Segurança. A eleição será no ano que vem e Portugal enfrenta a concorrência da Áustria e da Alemanha.


Tendo em conta os cansativos tempos que vivemos, o principal argumento do PR português passou, precisamente, por dizer que somos exatamente o oposto disso: Portugal é “um país previsível”. Envergando a farda anti-Trump que há tempos decidiu passar a usar (quando o acusou de ser um “ativo russo”), Marcelo aproveitou para, em defesa do multilateralismo diplomático, recordar abertamente dois fracassos de mediação unilateral do inquilino da Casa Branca: na Ucrânia e em Israel. “Quando alguém esquece os princípios por conta da ‘real politik’ esquece também que nenhum poder é eterno e nenhuma personalidade é eterna. Os impérios tiveram ascensão e queda.”


Não se sabe se os dois conversaram depois, na recepção que Trump ofereceu aos chefes de Estado presentes na Assembleia Geral da ONU. Sendo compreensível a aposta de Marcelo no argumento do “Portugal previsível”, não pode deixar de se notar também nele um cheirinho à “feira cabisbaixa” de que Alexandre O’Neill falava, para retratar o Portugal de Salazar.


Portugal será “previsível”, sim, incluindo isso, como de costume, o cumprimento à risca do velho hábito nacional de nunca fazer hoje o que pode fazer amanhã. “Previsível” será assim, como dizia há dias uma sondagem da Aximage para o DN, que o Chega vença as próximas legislativas. E, sabendo-se o que isso implica de sério risco de uma deriva autoritária - Ventura já assumiu que quer o poder político para, entre outras coisas, mandar prender adversários políticos, uma velha mania dos ditadores -, insere-se na tal famosa “previsibilidade” do regime o facto de ninguém estar agora a preventivamente pensar (e a atuar) sobre como se podem reforçar já as instituições para as defender de um ataque ditatorial.


Já que nos babamos tanto sempre de inveja e admiração a olhar para o exemplo americano, porque não olhar para o cardápio das medidas já postas em prática por Trump e imaginar o que fazer se algumas (ou todas) forem postas em prática em Portugal?


Como proteger já sociedades de advogados que defendem os seus clientes contra o Estado? Como proteger já a autonomia das universidades? Como proteger já opositores políticos? Como proteger já os reguladores que vigiam a administração pública? Como proteger já o organismo que produz estatística? Como proteger já órgãos de comunicação social ameaçados de ver a sua licença de emissão cancelada? Como proteger já as Forças Armadas de serem instrumentalizadas pelas estratégias securitárias do Governo? Como evitar já que um Presidente e um Governo e um Parlamento alinhados pela mesma cor partidária usem o estado de emergência para governar por decreto, suspender direitos (de greve, por exemplo) e impor censura aos “media”? Como evitar já que um PR do Chega se torne presidente de facto do Conselho de Ministros convidado todas as semanas para o presidir por um primeiro-ministro do Chega?


Não havendo respostas, sugere-se que se comece a pensar nelas. Aproveitando para concluir com uma novidade, quero acreditar que isso poderá acontecer quando, dentro de semanas, precisamente sobre este tema - a defesa preventiva das instituições face a uma deriva autoritária -, sair um novo livro que o David Dinis, diretor-adjunto do Expresso, tem agora em fase de revisão final.


Sejamos curiosos. Quanto mais não seja para que Portugal continue “previsível” como tem sido até agora e não “previsível” como suspeitamos que pode vir a ser.


OUTRAS NOTÍCIAS


Debate. O primeiro-ministro regressa esta quarta-feira aos debates quinzenais no Parlamento, mais de sete meses depois da última discussão neste formato e a pouco mais de duas semanas da entrega do Orçamento do Estado para 2026.


Diva. Aos 87 anos, morreu a diva italiana Claudia Cardinale, uma lenda do cinema europeu só comparável a Sophia Loren. Leia aqui o obituário.


Derrota. José Mourinho, novo treinador do Benfica, estreou-se mal a jogar em casa, empatando 1-1 com o Rio Ave. O Benfica está agora a quatro pontos do FCP. Leia a crónica do jogo na Tribuna.


Buscas. A Polícia Judiciária quer aceder a e-mails de Pedro Nuno Santos no caso de indemnização a uma ex-administradora da TAP, tendo terça-feira conduzido buscas nesse sentido. Leia a notícia aqui.


Ameaças. O reitor da Universidade do Porto afirmou que sofreu "ameaças físicas" para permitir a entrada de alunos sem a nota mínima no curso de medicina.


Nomeação. Luís Montenegro indigitou um novo diretor do SIED (Serviço de Informações Estratégicas de Defesa), Manuel Vieira, ex-secretário-geral adjunto do Sistema de Segurança Interna.



FRASES


“Não houve só pressões. Houve ameaças físicas a mim e à minha família, que me vão fazer a folha. Chegou a este nível de mafiosice. Não estou a falar do ministro [da Educação]. Nunca mencionei o ministro. Ligam constantemente para a Reitoria a dizer que são pessoas que sabem bem quem eu sou, que vão destruir-me, que vão dar cabo da família e que sabem muito bem onde é que eu moro.”

António de Sousa Pereira, reitor da Universidade do Porto


“Não tenho ilusões de mudar a opinião de ninguém, mas quero deixar algo claro, porque é importante para mim como ser humano, e isso é que vocês entendam que nunca foi minha intenção menosprezar o assassínio de um jovem.”

Jimmy Kimmel, comediante norte-americano


“Acho que ele [Trump] entende atualmente que não podemos simplesmente trocar territórios. Não é justo. Não é a realidade.”

Volodymyr Zelensky, Presidente da Ucrânia


“Direi que ele [Trump] continua igual a si próprio, que é de facto, do ponto de vista proclamatório, é muito televisivo, isso é muito a sua experiência de showbiz. Depois, do ponto de vista prático, a realidade é mais complicada e implica, mesmo em relação às Nações Unidas, ser mais suave.”

Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República



PARA OUVIR


No Expresso da manhã, o jornalista Paulo Baldaia conversou com o psiquiatra Carlos Nunes Filipe, director clínico na Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo, que rejeitou a correlação entre o medicamento Tylenol e o autismo feita pelo Presidente dos EUA. O ministro da saúde britânico aconselhou a que ninguém ligue ao que diz Trump sobre medicina, propondo que se ouçam os médicos.


Esta quarta-feira, às 14h00, Junte-se à Conversa com os jornalistas do Expresso David Dinis e João Silvestre para falar sobre se "As medidas do Governo podem travar a crise na habitação?". Inscreva-se aqui.


Os jornalistas do Expresso Elisabete Miranda e Pedro Lima conversam na Liga dos Inovadores com gestores, diretores e profissionais que nos contam histórias que conquistaram o mercado e vão contribuindo para a transformação económica do país e da sua imagem.



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