A pandemia mudou-nos o trabalho, a diversão, o consumo, os vícios, as férias, as relações, o sono, o peso, os tratamentos, as poupanças, a pandemia mudou-nos isto e além disto, a lista é extensa e entre o que é mais ou menos previsível e mais ou menos nocivo descobri no Expresso que a pandemia está a mudar também a fala das nossas crianças - piorou-a: “Trocam o B pelo D. Têm dificuldades no L. E ‘não vale a pena estar com uma máscara a forçar LLLLLL’, garante a educadora Daniela Bernardo. Elas não entendem como se movimenta a boca para dizer tal letrinha”, começa assim uma reportagem do Expresso intitulada “Diz-me algo sem máscara e dir-te-ei se aprendi”. “No infantário Flor de Abril, no Porto, as crianças do pré-escolar voltaram do confinamento com um atraso na vocalização de algumas palavras ou sílabas. Dez das 25 crianças da sala já foram indicadas para terapia da fala. Em anos anteriores, ‘três era o máximo’.” A causa? “A máscara dificulta esta transmissão de conhecimentos” porque as crianças aprendem as palavras a ouvi-las mas precisam de vê-las: os lábios e os músculos faciais também definem o aspeto das palavras mas a utilização das máscaras, que definem o aspeto da proteção coletiva, inibe a aprendizagem plena das primeiras letras porque as crianças não conseguem ver como são ditas, elas imitam tudo mas como imitar o que não se vê?, “há meses que alguns especialistas têm vindo a dar avisos: as máscaras provocam um atraso no desenvolvimento das crianças, especialmente nos primeiros anos de vida”. Soluções? Optar por máscaras transparentes (França fê-lo) ou tornar opcional o uso de máscaras (o Luxemburgo determinou-o) mas os funcionários das creches ouvidos na reportagem do Expresso são mais definitivos, “a máscara era das primeiras coisas que tirávamos já”, é uma contradição difícil querer abdicar das máscaras para ensinar quando se precisa delas para proteger, sendo que proteger as crianças é também ensiná-las a falar bem, portanto a pandemia também nos mudou as contradições tal como o nosso interesse por reuniões técnicas - hoje há uma que vai condicionar o que pode mudar em breve não só nas creches mas em toda a vida do país: “Esta terça-feira, dois meses depois da última reunião no Infarmed, peritos da Direção-Geral da Saúde, do Instituto Dr. Ricardo Jorge e investigadores na área da saúde pública voltam a fazer o ponto de situação sobre a evolução e os impactos da epidemia em Portugal”, conta o Expresso, que explica que o Governo reservou para quinta-feira o anúncio das decisões que vai tomar em função desta reunião de hoje - e são quatro as grandes áreas de reflexão:
. matriz de risco: 120 novos casos acumulados a 14 dias por 100 mil habitantes (240 nos concelhos de baixa densidade populacional) “é a baliza que tem determinado o nível de risco associado a cada concelho e a imposição de mais restrições” mas a vacinação reduziu a taxa de letalidade e as hospitalizações (as pessoas vacinadas que contraíram o vírus têm um risco substancialmente reduzido de manifestarem sintomas graves) - a questão é saber se a matriz vai ser mudada ou não e de que maneira vai incorporar a vacinação (e o Expresso explica nestes gráficos como “Portugal está no pelotão da frente na vacina contra a covid-19” mas ainda assim os Estados Unidos consideram Portugal um destino de “risco muito elevado”);
. internamento e pressão do SNS: o Presidente da República olhou para os dados da pandemia e viu “razões para ter esperança” e os números de ontem têm “919 pessoas internadas, 198 das quais a necessitar de cuidados intensivos”, enquanto “no pico de janeiro os valores chegaram a ultrapassar as 6500 hospitalizações durante vários dias e um máximo de 904 camas de unidades de cuidados intensivos ocupadas”, e ainda sobre ontem houve nove mortes e mais 1610 infetados - tudo somado e analisado permite concluir que “em matéria de pressão no SNS os internamentos continuam a subir mas ainda estão dentro da capacidade de gestão do sistema, sem afetar a atividade médica não-covid”, o que pode dar margem para algum alívio das restrições (que é algo que os peritos já defenderam);
. horários e restrições: os partidos estão alinhados - é hora de aliviar restrições, PSD abre porta a aumentar as lotações - e Marques Mendes anunciou na SIC Notícias que os peritos vão propor na reunião de hoje do Infarmed “o fim das restrições horárias, seja em restaurantes, espetáculos ou no recolher obrigatório, alargando-se em troca o requisito de um certificado covid válido” (certificado esse que já deu problemas como este, entretanto resolvido, ou como este, que vai ser solucionado - ambos os problemas foram identificados pelo Expresso); há ainda grande curiosidade sobre o que será determinado para os eventos culturais e desportivos (o campeonato de futebol arranca em breve, como vai ser com o público?) e fica também a incerteza sobre que tempo dará o Governo aos diferentes sectores de atividade para se preparem para o que será decidido (o Expresso noticiou assim há dias: Restauração, hotelaria, serviços e festivais pedem mais tempo para aplicar as próximas medidas contra a pandemia. Governo recusa a ideia);
. terceira dose e vacinação de crianças: “O Infarmed e a Direção-Geral da Saúde estão a avaliar a hipótese de reforçar com mais uma dose a vacinação de pessoas mais vulneráveis (mas só essas), tendo sido já assinados dois contratos que salvaguardam essa situação mas também novas variantes do vírus”, soube-se sexta-feira e hoje deve saber-se pormenores adicionais não só sobre a terceira dose mas também sobre um tema de decisão mais urgente - vacinar ou não os mais novos, sobretudo dos 12 aos 16? “Depois de divisões no grupo que estuda a vacinação (a maioria dos técnicos foi contra a vacinação dos mais jovens), António Costa anunciou no Parlamento que quer tudo pronto para avançar a meio de agosto”.
Concluindo: para estar a par do que vai sair da reunião do Infarmed recomendo que leia as palavras que o site do Expresso vai escrever ao longo do dia sobre o assunto, vamos arrancar já durante a manhã, mas sugiro ainda que as ouça e veja na SIC Notícias, lembre-se de que os lábios e os músculos faciais também definem o aspeto das palavras, o que além de ser útil para as crianças aprenderem a dizê-las na perfeição também é útil para os adultos entenderem qual o estado emocional em que são ditas porque uma palavra acompanhada de um sorriso tem um valor diferente de uma palavra afirmada com uma sobrancelha arqueada - as reuniões do Infarmed já foram tensas e mais logo se verá que tom e aparência vão ter as palavras dos peritos. Enquanto isso vacine-se se ainda não o fez porque além de termos de ajudar as crianças a dizer bem as palavras temos de garantir rapidamente que elas não se confundem com as palavras que deixaram de ser atos devido à pandemia: “‘Se não lhes damos abraços, os miúdos ficam a achar que fizeram alguma coisa mal e isso não pode ser’”.
OUTRAS NOTÍCIAS
. “O último militar a ter direito a luto nacional foi António de Spínola, por ter sido Presidente da República”: Otelo. Costa não quis luto nacional e Marcelo concordou (caso não tenha lido o Expresso Curto de ontem, recomendo que leia o que o Martim Silva escreveu a propósito desta tema e que consulte o guia de leitura que ele deixou; sugiro ainda esta: Eanes defende que Otelo ‘tem direito a lugar de proeminência’ na História - a declaração na íntegra);
. “Nos últimos anos o Estado fez um esforço para acelerar os pagamentos aos seus fornecedores mas há sectores onde o problema não só é crónico como se agrava”: Há um organismo público que já demora dois anos a pagar aos fornecedores (e não é da Saúde);
. “Contra a vontade dos deputados socialistas, a oposição quis deixar no relatório que o Governo de António Costa teve um papel determinante no processo de venda do Novo Banco à Lone Star, em 2017. Já a resolução do BES em 2014 foi considerada uma ‘fraude política’, em oposição à vontade dos sociais-democratas, no poder na altura”: Votos em geometria variável comprometem governos do PSD e PS na vida do Novo Banco (e ainda: Relatório do inquérito ao Novo Banco está preso por “ajustes de contas entre governos e governadores”);
. Jogos Olímpicos: Tom Daley chegou ao ouro 13 anos depois: “Sinto-me muito orgulhoso em dizer que sou homossexual e campeão olímpico” e Seleção não voou como uma borboleta ou picou como uma abelha, mas está aí a primeira vitória no torneio olímpico de andebol e também Surf. Algarvia Yolanda Hopkins cai nos quartos de final e termina em 5.º lugar e ainda Sonho de Telma Monteiro em Tóquio acaba ao segundo combate - portuguesa eliminada pela polaca Kowalczyk;
. Tome atenção à entrada deste artigo: Benfica consegue €35 milhões mas nunca houve tão poucos investidores a comprar as suas obrigações;
. “Há risco de fuga”: Procuradoria espanhola pede prisão preventiva para dois dos quatro portugueses suspeitos de violação em Gijón;
. Uma boa maneira de gastar €9,90: AQUI.
PODCASTS A NÃO PERDER
💉 Vacinar a formiga para que cante e dance a cigarra
Os especialistas que vão aconselhar o Governo na reunião desta terça-feira no Infarmed consideram que já é possível aligeirar as restrições. O verão pede diversão mas é muito pouco provável que os bares e as discotecas possam reabrir. Já para os adeptos que gostam de ir a estádios de futebol pode haver boas notícias. A análise da jornalista Vera Arreigoso no Expresso da Manhã;
🍻 “Paulo Rangel capitalizou uma simpatia que não tinha porque 92% da população portuguesa já andou aos trambolhões na rua”
A ‘estatística’ é de Luís Pedro Nunes, que, perante o vídeo que explodiu nas redes, se irrita com o poder dos telemóveis e alerta para o perigo de todos serem filmados quando saem da norma. Uma entre várias Irritações de Pedro Boucherie Mendes, Joana Marques, Carla Quevedo e José de Pina;
⏳ “Estamos a sucumbir a um primarismo tremendo. A maior parte dos adultos anda a jogar joguinhos no telemóvel e a ver séries na televisão”
Esta conversa não é de agora mas é para lhe voltar sempre. Valter Hugo Mãe e a estranheza dos tempos atuais - agora que estamos todos ligados em rede e temos acesso a muita informação é quando falhamos na dimensão ética e humana. Para ouvir na Beleza das Pequenas Coisas.
FRASES
Não foram pequenos os erros de Otelo e o que fez antes deles nunca os apagará. Mas à coragem daquele dia inicial inteiro e limpo devemos quase tudo. Houve um jovem capitão que, na companhia de muitos outros e quase todos esquecidos, fez o que velhos generais não se atreviam. Por isso, e apesar de eu vir de uma área política diferente da de Otelo, aos que querem mais uma trincheira sobre um cadáver não faço companhia
Daniel Oliveira no Expresso
O Otelo partiu. ‘Escolheu’ o dia 25 de julho, dia em que, em 1139, se desenrolou a Batalha de Ourique, onde, segundo a velha tradição goda, D. Afonso Henriques foi aclamado Rei de Portugal ao ser levantado nos escudos dos seus cavaleiros. Como afirmaria, bastante mais tarde, Mouzinho de Albuquerque, ‘... este reino é obra de Soldados’
Vasco Lourenço no Expresso
O QUE EU ANDO A LER
Ando preocupado com as coisas à primeira vista, não propriamente aquelas paixões e aqueles amores à primeira vista poeticamente emocionantes e exclusivamente literários, esses são geralmente inofensivos na nossa vida quando circunscritos à arte, mas preocupo-me com as outras coisas à primeira vista: as certezas à primeira vista, as desilusões à primeira vista, as desistências à primeira vista, os incómodos à primeira vista, as avaliações à primeira vista, as precipitações à primeira vista, os julgamentos à primeira vista e todos esses derivados comportamentais impressivos e tantas vezes excessivos, creio que tudo isso é certamente dissuasor e possivelmente destruidor de segundas oportunidades que devíamos dar às pessoas, o que é circunstancialmente ofensivo quando acontece na nossa vida - às vezes somos os ofendidos noutras os ofensores e por vezes somos isso nas ocasiões mais inofensivas: alguém novo no trabalho fala-nos de uma maneira que nós velhos nesse trabalho não gostamos e decidimos imediatamente que essa pessoa é arrogante, um desconhecido num jantar em que quase todos são conhecidos discute com mais extravagância e concluímos irremediavelmente que é intragável, alguém que admiramos por ter feito coisas admiráveis um dia reúne-se connosco e achamos que afinal é um palerma por nos ter feito sentir palermas nesse encontro, e é assim que às vezes se perdem coisas determinantes na vida por nos perdermos com os determinismos das conclusões à primeira vista: a pessoa nova no trabalho pode ser uma grande amizade desperdiçada, a pessoa do jantar uma grande relação desaproveitada e a pessoa da reunião uma grande mentoria menosprezada, é certo que há situações mais graves que estas e com danos maiores quando julgamos e sentenciamos à primeira impressão sem estarmos disponíveis para uma segunda oportunidade mas há também ofensores que são privilegiados porque são ofensores perdoados, é um grande ensinamento com ganhos únicos: houve um dia que me aconteceu há muitos dias mesmo, foi há tanto tempo que não me lembro dos detalhes mas só das consequências, nesse dia entrevistei uma pessoa que queria um estágio de jornalismo para cumprir o sonho que eu cumpro todos os dias, que é ter o privilégio e a responsabilidade de servir gente informando-a, recordo vagamente o nervosismo da pessoa e de ela me ter respondido o que eu queria à última pergunta que faço sempre nessas entrevistas, “sou um comandante dos bombeiros, há um incêndio atrás de mim, estou disponível para responder a todas as tuas perguntas: qual é a primeira que me fazes?”, meses depois a pessoa contou-me que me odiou por aquela entrevista em que acabámos a apagar incêndios e que o desdém por mim se manteve durante o estágio que a pessoa conquistou naquela entrevista em que ela me convenceu e eu a intimidei - às vezes os ofensores ofendem negligentemente e isso não é desculpa porque é pior que desculpa, é alheamento, logo uma forma de desrespeito, portanto: peço perdão, pessoa -, continuando: lembro-me ainda de ler um texto da pessoa sobre o Bowie no dia em que ele morreu e de ter ficado em silêncio, aquele silêncio-espanto, que texto tão certo, às vezes são os mortos que aproximam os vivos, não sei o que mudou dali em diante nem como mudou nem que tempo levou a mudar, até porque o jornalismo colocou-nos entretanto em rotinas quotidianas diferentes, mas um dia apercebo-me de que aquele ódio (termo violento, sei bem, mas o ódio tem escalas diferentes e por vezes é usado por questões de simplificação) dizia que aquele ódio da pessoa por mim transformou-se numa completa segunda oportunidade em que passámos a partilhar alegrias, tristezas, separações, uniões, altos, baixos, euforias, desalentos, triunfos, derrotas, canções, estrofes, livros, parágrafos, desabafos, confissões, discussões, ilusões, dúvidas, erros, acertos, conquistas, avanços, recuos, abraços, lágrimas, silêncios, jantares, almoços, debilidades, virtudes, ambiguidades, certezas, tudo mérito dela em benefício meu (e espero que em benefício dela também) porque aquela pessoa decidiu que as pessoas não são um só momento nem um só comportamento e que às vezes - se é que não todas as vezes - há que ter a coragem e até a fé de não se desistir do outro, perdoai-nos Senhor as ofensas à primeira vista e louvai-nos as insistências à segunda oportunidade, amém, e isto não é uma lição de moral mas somente uma ilação de alegria, a minha, lembrei-me da força desta amizade à segunda oportunidade porque comprei o “Sétimo Dia” do Daniel Faria, é um livro que vinha devidamente recomendado mas julguei-o à primeira vista - começo a folheá-lo e vejo pouco texto mas mesmo demasiado pouco por folha, a seguir conto várias páginas mas várias mesmo em branco, são 19 vazias, e decido que €15,50 é dinheiro a mais para tantas palavras a menos, depois vou ao prefácio e desisto dele à primeira vista porque pareceu-me um texto de um académico encantado com o autor em vez de um leitor encantado com o poeta, decido portanto fugir do prefácio e passo aos poemas, li-os num instante porque bastou-me entrar no comboio em Lisboa e ao passar Santarém já estavam todos lidos mas obviamente incompreendidos, sei bem que quaisquer poemas precisam de mais do que os 83 quilómetros da minha leitura para se entranharem mas já tinha o julgamento pré-feito tão mal feito, e quando cheguei ao Porto uma amiga-família que já me deu não duas mas 73 oportunidades diz-me que este é o livro do ano para ela e que eu tinha de dar uma nova oportunidade ao Daniel Faria, sorri, “oportunidade”, então fui reler o livro no comboio de volta e os 300 quilómetros do Porto até Lisboa não foram suficientes para chegar ao fim, li devagarinho com toda a devoção da segunda oportunidade e, sem saber exatamente como nem onde nem quando, deixei de ouvir o comboio sobre os carris e as conversas de domingo no Alfa porque senti silêncio, aquele silêncio-espanto, que livro tão certo, às vezes são os mortos que nos fazem sentir vivos, o Daniel Faria morreu aos 28 anos e sublinhei-lhe isto no “Sétimo Dia”:
“Pus o despertador a despertar de hora em hora. De hora em hora vejo a febre. Mantém-se estável. Amanhã levanto-me. De três em três horas telefono a um amigo diferente. Normalmente ninguém me atende. Às vezes deixo mensagem. Deixo a promessa de ligar de novo. Gosto muito de prometer”,
e também isto:
“Disseram-me que teriam de me cortar o braço e eu disse o que é que eu sou mais do que as videiras. Ainda não era Outono e as folhas começaram a cair.
Eu não sou das espécies persistentes. Eu baixo os braços mesmo quando não desisto.
Até os dias caem, as penas dos pássaros, as hastes dos veados. Pousei a cabeça em choro sobre o braço, como se a pousasse sobre o ombro de ninguém”,
e ainda isto:
“Bato à porta do teu quarto mesmo quando sei que não estás. Descobri agora quanto custa aos mendigos, não digo a fome, mas não haver ninguém”,
só mais isto:
“Estás com fome? Tenho aqui grãos de milho, não sei se te agrada. Posso pô-los ao lume e fazer pipocas num instante. Não sei se gostas de pipocas, mas sempre distrai um pouco. Além disso estou a ficar triste e o estoirar das pipocas pode dar-nos um ar mais festivo.
Este tacho comprei-o numa feira. Acreditava naquela altura que era um utensílio normal e necessário na casa de um homem solitário. É muito bom poder comer contigo.
É muito bom não ficar só à mesa. Na verdade a presença dos outros tem-me sustentado mais do que qualquer alimento. Quando um homem come sozinho é um aborrecimento esperar que a comida arrefeça, e quando arrefece já se perdeu a fome, para comer é mesmo preciso um certo esforço. Um homem que come sozinho devia era ter terror: se se engasga quem lhe baterá nas costas?”,
na verdade sublinhei as páginas quase todas porque a minha caneta prestou admiração a dezenas de frases do Daniel Faria, agora é o meu livro do ano também, e decidi logo o que fazer quando cheguei a Lisboa, tão simples tão óbvio tão urgente: comprar este livro de que desisti à primeira e a que já não resisti à segunda para oferecer à pessoa que resistiu à nossa primeira vista mas que não desistiu da nossa segunda oportunidade, os livros contam-nos as vidas de outros mas também nos lembram o que outros já nos deram na vida e como o deram (“Lia todos os livros como se fossem uma descrição da sua própria vida, vivia-os”, Peter Handke em “Um Adeus Mais-Que-Perfeito”), e entre a ida à livraria até ao momento em que lhe ofereci o “Sétimo Dia” entendi também para que servem as 19 páginas em branco do livro do Daniel Faria: escrevi nelas para explicar à pessoa com quem construí esta amizade-fortaleza que o comandante dos bombeiros que naquela entrevista de estágio queria que lhe perguntassem quantos feridos havia sente uma profunda gratidão por todos os que como ela não desistem dos que foram-estão-serão feridos pela solidão:
“É duro não ter ninguém que nos diga que deixamos um pouco da barba por desfazer. É duro não ter ninguém que nos tire um cisco do olho. Os olhos que estão sempre tão ameaçados. Por tudo o que se vê, pela ausência, pelo pó, pelo sono, pelos máximos do carro que nos aparece em frente, pelas próprias pestanas que nos defendem, pelo invisível, pela violência, pela nudez, pela beleza, pelo desastre, pela miopia. Sobretudo pela aparência. É preciso alguém que nos livre da ceguez”. Daniel Faria 1971-1999.
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