Bom dia,
O Chelsea e o Manchester City estão quase a chegar ao Porto porque no sábado joga-se a final da Liga dos Campeões no Dragão e ambos vão ter o privilégio que os clubes portugueses não tiveram, que é ter público no estádio, mas é um privilégio que tem implicações destas: a Tribuna Expresso explica que “há 200 adeptos de risco de City e Chelsea que vão viajar para o Porto (muitos deles sem bilhete para o jogo)” e a Tribuna tem depois detalhes sobre a aparência do perigo, é assim:
“Entre os adeptos do Manchester City há dois subgrupos considerados de risco: os Shameless Youth ou Blazing Squad, constituídos sobretudo por jovens, e os Guvnors, geralmente mais velhos. Como o jogo é disputado fora de casa, o mais provável é que se misturem dentro e fora do Estádio do Dragão. Ao contrário dos restantes adeptos, que usam camisolas e cachecóis azuis-claros, estes não mostram símbolos ou cores que os identifiquem com o clube de Manchester. São os casuals”;
e o perigo é também assim:
“Já entre os adeptos do Chelsea considerados de risco para as autoridades estão os Headhunters, que devem chegar a Portugal por meio próprio, não havendo por isso um número exato sobre quantos estarão presentes nas ruas do Porto, embora se estime que sejam uma centena, muitos deles sem bilhete para o jogo. Há entre os adeptos do Chelsea muitos de ideologia de extrema-direita, que entoam cânticos racistas e xenófobos aos adversários, jogadores, árbitros e polícias”.
No histórico destes grupos há provocações, agressões, desordem, detenções e violências afins, está tudo contado aqui e que é onde se lê também que “o efeito de bolha de segurança entre os adeptos ingleses pretendido pelo Governo dificilmente será cumprido, de acordo com fontes da polícia”, por isso o presidente da Câmara do Porto já tem culpados caso haja problemas na cidade antes, durante ou após o jogo, ele identifica-os neste texto do Expresso, cito parte: “Caso alguma coisa corra mal, Rui Moreira aponta para as autoridades competentes: ‘A pergunta terá de ser feita à PSP e ao Ministério da Administração Interna’, ou até mesmo à DGS, que, segundo o autarca, ‘às vezes mais parece a direção-geral da segurança’”.
Se tudo correr bem antes, durante e depois do jogo, eu suspeito que a lista de benfeitores que vão reclamar mérito não será a mesma que a lista de eventuais malfeitores identificados por Rui Moreira, mas continuando: o autarca diz que este é um momento em que “a cidade deve ficar contente”, que “se [os adeptos] tiverem um comportamento adequado também é bom para a nossa economia” e que “não podemos querer turistas e não os ter”: já se sabe que economia vs. saúde pública é matéria sensível como também já se sabe que França vai impor quarentena para quem viajar a partir do Reino Unido enquanto o Porto recebe uma final europeia de futebol com milhares de ingleses nas bancadas de um estádio que não pôde ter adeptos portugueses durante o ano, cada país lida com as matérias sensíveis à sua maneira.
A Liga dos Campeões não afeta só o Porto porque entretanto há adeptos ingleses que decidiram furar a “bolha de segurança” e que começam a chegar a Portugal amanhã com a intenção de ver a bola no Porto mas depois ir até Lisboa, cidade que tem também sensibilidades em discussão: “Os médicos de Cuidados Intensivos de Lisboa e Vale do Tejo rejeitam que seja deles a culpa por mais mortes nos piores dias da pandemia e falam no ‘extraordinário crescimento de vagas’: o debate começou porque um investigador quis perceber a razão de a região Norte ter menos óbitos - uma discussão com números para todas as interpretações”, é para ler aqui no Expresso e não é a única discussão em curso em que há Norte vs. Sul, que é uma confrontação igualmente muito sensível: o secretário de Estado António Lacerda Sales anunciou terça-feira que a vacinação contra a covid-19 ia ser acelerada em Lisboa e Vale do Tejo nas faixas dos 30 e 40 anos na sequência de um aumento das infeções na região e Rui Moreira exigiu logo a seguir um tratamento igual para todo o país (“não pode haver dois países, não pode haver um país e depois haver Lisboa”) e entretanto surgiu a correção de que afinal este alargamento da vacinação é para todo o território nacional, está tudo explicado neste texto e depois neste que só não explicam o inexplicável que é o Governo cometer erros de comunicação destes que alimentam incertezas e especulações, é por factos assim que se questiona por vezes se os planos de combate à pandemia são corrigidos em função das reações públicas em vez de serem tomados em função de decisões ponderadas, pode não ter sido o caso mas isto também não terá sido por acaso porque a comunicação ou está a falhar para fora ou está a falhar dentro do próprio Governo, mas a propósito de comunicações atenção a isto: “O Presidente da República defendeu que se deve mudar a matriz de risco que tem servido de base para o processo de desconfinamento face à crescente taxa de imunidade da população portuguesa contra a covid-19. Questionado se considera que este é o momento para criar uma nova matriz de risco que não tenha apenas em conta o índice de transmissão e a incidência de novos casos por 100 mil habitantes, o chefe de Estado respondeu: ‘Eu sempre achei isso, mas sempre respeitei a opinião dos especialistas e a decisão do Governo’”.
Pode ser que alguém no Governo comece por anunciar uma matriz de risco nova só para Lisboa e Vale do Tejo e depois logo se vê quem e como reage, pode ser que a matriz de risco mude para evitar que Lisboa recue no desconfinamento, pode ser tudo ou nada ou o que tiver de ser mas deixem de alimentar desconfianças que isso não é um bom método para se gerar crença nas lideranças, portanto: amanhã é mesmo um bom dia para retomarmos a clareza, transparência e firmeza de procedimentos porque os especialistas voltam reunir-se no Infarmed com o Governo e é preciso que o país inteiro (e não somente parte dele) saiba de uma só vez e sem confusões e correções como é que devemos continuar a lidar com os riscos antigos e o que devemos fazer para resistir aos riscos novos - porque quanto aos riscos em curso são assim:
“R(t) sobe para 1,07 e incidência também cresce. Há 594 novos casos e um morto nas últimas 24h”,
e também assim:
“Covid-19. O número mais alto de novos casos do último mês: o surto em Portugal, em gráficos e mapas”.
OUTRAS NOTÍCIAS
. Rui Rio encerrou ontem os dois dias de trabalho na convenção do Movimento Europa e Liberdade: o Expresso conta que não houve “nem uma palavra para Francisco Rodrigues dos Santos, André Ventura ou Cotrim de Figueiredo” e que o líder dos sociais-democratas deixou claro que se o evento fosse um “congresso das direitas” nem lá tinha entrado porque “o PSD não é de direita”: A direita atirou culpas a Rio mas Rio não sai do seu lugar: ao centro e disponível para entendimentos com o PS (e depois sugiro isto: “Rui Rio arrasa ‘tribunal’ do PSD: “Atuação persecutória”, “perturbação estéril”, “definhamento”);
. Se andou ontem pelo Twitter deve ter reparado que muita gente decidiu contar histórias de bullying de que foi alvo - estes relatos surgiram na sequência de um outro, o de uma criança que foi atropelada no momento em que fugia de colegas numa “situação de agressão” no Seixal, mas a PSP ainda não tem informação de que “este caso compreenda bullying” e explica porquê neste artigo do Expresso: “Ele já está a chorar, vamos parar por aqui”: não pararam e acabou atropelado. Bullying não está comprovado nem é um crime tipificado (e complemente com isto: “O silêncio é o que mais alimenta o bullying”, mas o ruído também: como lidar com um não crime que tem “vários crimes lá dentro”?);
. “Não é apropriado” classificar a Marinha como estando à beira da catástrofe mas: Portugal teria de pedir um navio emprestado para resgatar cidadãos no estrangeiro, admite o ministro da Defesa;
. “Milhares de pessoas morreram e não tinham de morrer”: Ex-conselheiro de Johnson arrasa em sete horas de audição a preparação do Governo britânico para a pandemia. Acusações são (mesmo) graves;
. Chama-se Lidia Maksymowicz: Papa Francisco beija a tatuagem de uma sobrevivente do Holocausto;
. Bruno Fernandes acabou a chorar, agora é sonhar que acabe a rir no Euro 2021: Mais um troféu para o senhor Liga Europa (a crónica da vitória do Villarreal dianto do Man United) - e depois veja isto;
. Mítico: O bebé da capa de Nevermind fez 30 anos. O que é feito dele? (e recomendo também isto sobre o mítico momento desta semana: Måneskin, vencedores da Eurovisão: “Nunca consumiríamos drogas ao vivo na televisão com 180 milhões de pessoas a ver”);
. O atirador está morto: Ataque a tiro numa estação ferroviária da Califórnia faz “vários” feridos e oito vítimas mortais;
. O secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, reuniu-se com os conselheiros de Estado portugueses e a conclusão é assim: Conselho de Estado espera “maior coesão interna e cooperação” na NATO (e sugiro ainda: Stoltenberg elogia a capacidade da NATO projetar “poder marítimo”. E abre escola de ciberdefesa em Oeiras);
. Atenção: Preço de mercado da eletricidade dispara e ultrapassa tarifas garantidas às eólicas;
. Para quem anda de comboio: Há greve na CP, veja o que vai ser afetado;
. “Prestação de informação não verdadeira a clientes está na raiz do processo”: CMVM aplica coima de €1 milhão ao BES mas suspende o pagamento;
. Podcast Expresso da Manhã: Matriz de risco vai mudar por causa de Lisboa (e depois ou antes passe por aqui: Covid-19: China suspende voo direto a partir de Portugal após detetar casos a bordo);
. Não se esqueça: amanhã há Expresso nas bancas e aqui é uma maneira diferente de ter Expresso todos os dias (e ali é uma maneira diferente de conhecer Portugal).
PRESIDÊNCIA PORTUGUESA DA UE
1. Bruxelas acusou ontem a farmacêutica AstraZeneca de “violação flagrante” do contrato de compra de vacinas e exigiu a entrega imediata das doses em falta. O representante dos Estados-membros e da Comissão Europeia argumentou na primeira audiência em tribunal que a AstraZeneca não mobilizou o máximo da sua capacidade de produção na Europa para cumprir o contrato celebrado com a UE para o fornecimento de vacinas.
2. É já amanhã que a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) anuncia a decisão dos especialistas sobre a administração da vacina da Pfizer/BioNTech em jovens entre os 12 e os 15 anos. A decisão vai ser tomada na reunião extraordinária do Comité de Medicamentos para Uso Humano. É da EMA também que a Bélgica aguarda o “conselho urgente” antes de considerar levantar a suspensão da vacina da Janssen a menores de 41 anos: uma mulher com menos de 40 anos morreu no país após ter desenvolvido uma “trombose grave e redução das plaquetas sanguíneas”.
FRASES
A Europa tem inúmeras sanções, inúmeras declarações, incontáveis ameaças. Mas não tem peso. E isso verificou-se no domingo passado quando o regime de Lukachenko se aventurou no terrorismo de Estado.
Henrique Monteiro no Expresso
Protasevich é jornalista e ao mesmo tempo ativista contra o governo bielorrusso? Assim são os jornalistas em países que não aceitam a liberdade de imprensa. Está numa lista de acusados de “atividades terroristas” pelo regime? Só deveria levar algumas pessoas a ser mais cautelosas na utilização desse termo. Querer justificar esta prisão com supostas ligações de Roman Protasevich à extrema-direita, como ouvi de algumas pessoas do PCP, é uma fuga para frente para continuar a defender o indefensável. Não que precisasse de apresentações, mas a patética fragilidade de uma ditadura que desvia um avião para prender um blogger de 26 anos apresenta-se sem margens para adversativas.
Daniel Oliveira no Expresso
A cultura israelita produz filmes, séries e livros que criticam Israel. Vejam por exemplo a série “Valley of Tears”, um retrato da guerra do Yom Kippur, o momento mais dramático da história de Israel; foi a única vez em que a derrota esteve em cima da mesa. O texto de “Valley of Tears” mostra a legítima guerra contra os árabes pelo direito à existência de Israel, mas o subtexto mostra a forma injusta como Israel trata os seus cidadãos de origem árabe. Alguns soldados estão no exército israelita mas são destratados no dia a dia porque são de origem árabe. Como se sabe, este é um debate interno de Israel, que, de facto, não sabe o que fazer à sua população árabe, cerca de 20%. Ou seja, o pecado de Israel não está no seu legítimo direito à defesa perante o exterior (Hamas), está na forma como destrata cerca de 20% da sua própria população.
Henrique Raposo no Expresso
O QUE EU ANDO A LER
Gosto muito de folhear livros que nunca li para descobrir boas frases aleatórias neles, tenho sempre muita sorte porque encontro frequentemente o que quero sem saber exatamente o que procuro, uma das virtudes da literatura é precisamente esse acaso de nos dar léxico para o que sentimos mas não sabemos manifestar com precisão - é uma expansão de vocabulário acompanhada de uma expansão emocional, por exemplo: peguei nas “Poesias Completas” do Alexandre O’Neill, é um livro que nunca esteve na minha estante porque ficou junto ao chaveiro, não sei por que motivo parou ali mas deve ser uma metáfora da minha casa a provar-me que o O’Neill é uma porta que tem mesmo de se abrir para se aprender factos reveladores sobre a condição humana, portanto folheio o livro do O’Neill e expando-me, “Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca”, há mesmo e não têm sequer de ser palavras literariamente ideais porque às vezes só precisamos mesmo de palavras reais, fui beijado há dias pelo Jorge Cravo e quero contar a minha alegria, que grande beijo ó Jorge, o Jorge é mestre dos beijos com conteúdo feliz, tenho provas e por isso vou transcrevê-los antes de explicar quem é o Jorge e todos de quem ele fala:
“Caro Germano Oliveira,
Sou leitor assíduo do Expresso Curto. Dado que resido num país situado numa zona horária em que o dia começa bastante mais tarde do que em Portugal, é normalmente com o Expresso Curto que inicio os meus dias, mesmo antes de me levantar.
Vem tudo isto a propósito do Expresso Curto editado no dia 25 de agosto de 2020, da sua responsabilidade e do qual, lamentavelmente e apesar da minha assiduidade na leitura, só agora tive conhecimento (nessa altura estava em Portugal de férias, com hábitos de leitura mais relaxados). No referido Expresso Curto, o Germano teve a amabilidade e sensibilidade de publicar um texto escrito para o programa A Culpa é das Estrelas, emitido semanalmente (à quarta-feira, entre as 22h-23h, com reposição ao domingo no mesmo horário), na Rádio Terra Nova (concelho de Ílhavo, distrito de Aveiro), do qual sou produtor e apresentador.
Escrevo-lhe estas linhas para o informar que felizmente esta foi uma história com um final feliz. O Nicolau está praticamente recuperado, com todas as necessidades de atenção que uma doença desta gravidade exigirá nos anos futuros, mas atualmente é pelo seu próprio pé que visita a estação ferroviária de Aveiro para observar os comboios, juntamente com o seu pai, Gonçalo (quem ainda não tive a honra de conhecer pessoalmente).
Dado o interesse por si demonstrado nesta história, gostaria ainda de o informar que o Nicolau completará o seu quarto aniversário no próximo dia 17 de maio e que no dia 19 a emissão d’A Culpa é das Estrelas lhe será dedicada, com mais um texto do autor do primeiro, Rui Almeida”,
o Nicolau tinha três anos quando eu soube da história dele, resumidamente é isto: ele adora comboios, assim que começou a andar pedia ao pai, o Gonçalo, para o levar à estação de Aveiro para ir ver as locomotivas, às vezes passava um alfa noutras um intercidades ou até um suburbano, porventura também um de mercadorias, não sei o que é pensar como uma criança porque fui uma há demasiado tempo mas imagino-o a sentir-se maquinista daquelas velocidades e formas distintas e a contar as carruagens e a decorar as cores, o Gonçalo e o Nicolau faziam frequentemente estes passeios pela estação porque já se sabe como o amor se consolida nestes rituais, o amor melhora com a cumplicidade de hábitos, mas um dia os médicos descobriram que o Nicolau tinha leucemia e pai e filho deixaram de ser vistos pelo Rui Almeida, ele vive junto à estação e por isso comovia-se da sua janela a ver aquela celebração do Gonçalo e do Nicolau de mãos dadas a admirarem os comboios, o Rui viveu algo parecido quando tinha sido a vez dele de ser criança e sabia portanto a importância daquela rotina entre pai e filho, mas entretanto o Gonçalo reapareceu na estação só que sem o Nicolau, a explicação foi esta: o filho teve de ser internado no hospital, aos três anos de idade a doença trocou-lhe os comboios pela quimioterapia e demais tratamentos, mas enquanto isso acontecia o Gonçalo ia para a estação filmar por vezes um alfa noutras um intercidades ou até um suburbano, porventura também um de mercadorias, o Gonçalo decorou os horários de cada comboio para filmar toda a diversidade da ferrovia e depois regressava ao hospital para mostrar os vídeos ao filho, ia e vinha e ia e vinha, que gesto tão simples mas tão profundamente perfeito pelo Nicolau, não sei o que é pensar como uma criança porque fui uma há demasiado tempo mas imagino-o a sentir-se preenchido de alegria por ser filho daquele pai, sobre tudo isto o Rui Almeida escreveu há quase um ano que “esta tem sido a melhor definição de amor que consigo: um pai a filmar comboios para mostrar ao filho doente” e a propósito disto eu adultero o O’Neill, “Há amor que nos toca Como se tivesse corpo”, há mesmo e não têm sequer de ser amores historicamente famosos porque às vezes só precisamos mesmo de conhecer estes amores anonimamente volumosos, sempre que penso neste homem na estação a filmar para o filho no hospital só me apetece ir abraçá-lo e a seguir aplaudi-lo ou vice-versa, “Há histórias que nos atingem Como se tivessem punhos”, mas o Nicolau fez quatro anos e está praticamente recuperado, o beijo do Jorge Cravo trouxe essa boa nova, que grande beijo mesmo ó Jorge, e o Rui Almeida escreveu um texto sobre tudo isto, é o que ando a ler e soube-me a beijos também:
“Há tempos contei ao mundo uma história de amor. Era sobre um menino com uma enorme paixão por comboios. Um menino privado de ser menino, a debater-se com os azares da vida, uma doença rara que lhe resgatou os dias, transformando a sua normalidade numa hedionda rotina de sessões de quimioterapia e transfusões de sangue. Um menino que o pai traz pela mão à estação de comboios ao lado do prédio onde vivo. Um menino que a vida obrigou a ser menino de uma forma bem diferente de todos os outros meninos.
Nestes meses que passaram aconteceu tanta coisa no mundo, de repente ficaram-nos as rotinas de pernas para o ar; mas para o pai daquele menino, tudo o que aconteceu no mundo se resume a um milagre. Semana após semana, tratamento após tratamento, o milagre foi acontecendo aos poucos. Sorrio ao tentar uma escala mental para o que a ciência explicaria de tudo isto, como passou de prognósticos iniciais tão sombrios para o sorriso bonito que nasce no Nicolau ao avistar a estação de comboios.
Estou em casa. O Gonçalo envia-me uma mensagem e convoca em mim um turbilhão de emoções. Avisa-me que vem ver os comboios com o pequeno Nicolau. Corro para a janela e não demoro a descobri-los.
Olho para aquele menino da minha janela e pergunto-me o que o terá salvo? A ciência ou o amor? Poderá a ciência sozinha ter operado aquele milagre em que era tão difícil acreditar, para quem estava, como eu, a uma janela de distância daquele amor tão puro?
Pergunto-me, ao olhar para a foto no ecrã do meu telemóvel, o que entenderá de tudo isto o pequeno Nicolau. Uma foto que acabo de receber, um menino feliz, de mão dada ao seu papá, a extasiar-se com os comboios que passam. Projeto-o no futuro, daqui a anos suficientes para ser um adulto com preocupações de adulto, a ter de lidar com exigências e frustrações, saberá ele que o seu ADN é 100% amor e milagre? Conseguirá ele distinguir o importante do acessório, saberá ele ser o pai que teve, em todas as horas tão difíceis de uma idade tão fácil, um pai feito de amor, de comboios, de dedicação sem limites e sem interrogações?
Estas lágrimas que reprimo troco-as por palavras que deposito num documento de word, palavras que são fraco testemunho do que tenho dentro do peito, saído há instantes da janela onde acenei amor ao Nicolau e ao Gonçalo, aqui sentado a tentar descrever este milagre do amor.
Gonçalo e Nicolau, está quase. Um dia, todo este interminável pesadelo que vos visitou será uma história que se conta resumida em frases que se dirão de cor. Uma mera recordação de um tempo que o tempo se encarregará de fazer soar irreal. Até lá, hoje, neste instante, aqui à janela de onde vos espreito, é-me urgente gritar este milagre do amor. É-me imperioso dizer-vos o quão inspirador me tem sido esse milagre. Está quase. O amor ganhou. Olho-vos da janela e tenho em mim essa certeza”,
o Nicolau fez quatro anos na semana passada e espero que tenha tido uma festa de aniversário tão feliz como aquela em que eu estive também há uma semana, aprecio muito esta coincidência de celebrações porque nessa festa a que eu fui deu-se de presente o “Coroa da Terra” do Jorge de Sena, por isso repeti o meu hábito de folhear livros que nunca li para descobrir boas frases aleatórias neles e tive novamente a sorte de encontrar o que queria sem saber exatamente o que procurava, não sei o que é pensar como uma criança porque fui uma há demasiado tempo mas imagino o Nicolau a dizer isto do Jorge de Sena ao regressar à estação para voltar a ver comboios com o pai: “Juntos - somos tão livres que a audácia treme”.
ASSINE O EXPRESSO
EXPRESSO.PT
EXPRESSO EXCLUSIVOS
EXPRESSO ECONOMIA
TRIBUNA
PODCASTS EXPRESSO
MULTIMÉDIA EXPRESSO
NEWSLETTERS EXPRESSO
BLITZ
BOA CAMA BOA MESA