Newsletter Expresso Curto

Os nossos 9.028 mortos e depois o regresso dos 25 vivos

A ordem do Governo é para cumprir, cumprir a sério o cumprimento do confinamento, é uma ordem para travar a desordem de quem finge cumprir as regras, os factos são graves, há gente tanta gente a morrer, houve um novo máximo de mortes por covid em 24 horas no nosso país, foram 167, o confinamento é um ato de responsabilidade que é também um ato de unidade para salvar vidas, isso é que é fazer bem para resolver este balanço que nos deixa mal, são 9.028 mortos e 556.503 casos confirmados no total até ontem, somos o segundo país do mundo e o primeiro da União Europeia com mais novos casos de covid-19 por milhão de habitantes, os números não têm limites mas a capacidade de resposta dos hospitais está a ficar limitada, tão limitada mesmo, e como os hospitais têm os seus profissionais-de-saúde-heróis, um bem-haja para eles, então que as nossas casas estejam ocupadas de heróis-profissionais-do-confinamento, ajamos bem, porque para ter de volta a vida de antes há que preservar o máximo de vidas à nossa volta, e mesmo sabendo que há a tentação de procurar culpados - “a culpa não foi dos empresários, as pessoas facilitaram muito no fim de semana e todos vimos imagens de ajuntamentos”, diz a Associação Nacional de Restaurantes - ou algum impulso mais ou menos minoritário de partir para a contestação - por exemplo: novo confinamento no comércio traz “medidas radicais”, diz a associação de empresas de distribuição -, a verdade é que os factos dizem que o número de concelhos em risco extremo passou de 57 para 155 em Portugal, por isso o Gover...

(desculpe, tive de interromper momentaneamente esta newsletter para ir pagar o parquímetro do carro: o Governo quer-nos em casa, está certo, mas entre regras que criou para as comissões da Uber e para o streaming da Netflix durante este novo confinamento não considerou relevante garantir junto das câmaras municipais que os cidadãos não tenham de pagar pelo facto de não andarem de carro todo o dia por estarem confinados - a Câmara de Lisboa, num grande exemplo de devoção cívica, está pelo menos há cinco dias a estudar se deve ou não cobrar estacionamento durante este estado de emergência; no Porto, e segundo o “Jornal de Notícias”, não é preciso pagar estacionamento na Foz mas nas zonas mais centrais da cidade sim)

... o Governo anunciou esta segunda-feira 14 medidas adicionais para atacar o ataque do vírus: “está proibida a venda ou entrega ao postigo de qualquer tipo de bebida, mesmo cafés, em estabelecimentos alimentares que estejam em take away; todos os trabalhadores que tenham de se deslocar carecem de credencial emitida pela empresa e todas as empresas de serviços com mais de 250 trabalhadores têm de enviar em 48 horas à Autoridade para as Condições de Trabalho a lista nominal dos que estarão em trabalho presencial; foi reposta a proibição de circulação entre concelhos ao fim de semana; todos os estabelecimentos devem encerrar às 20h nos dias úteis e às 13h aos fins de semana (menos o retalho alimentar, que aos fins de semana se pode prolongar até às 17h)”, estas e as demais medidas estão todas enumeradas neste artigo do Expresso que explica ainda que “as escolas continuarão abertas só que com mais polícia à porta”, mas Marcelo diz que “veremos daqui a uma semana se as escolas tiveram um bom desempenho ou se há um agravamento na sociedade que lhes possa ser atribuído”, e se você quiser saber qual é a filosofia do Governo complementar às 14 novas regras conhecidas ontem fique a saber que é esta: “Não importa o que o Governo proíbe mas o que cada um de nós se proíbe de fazer para proteger a nossa saúde, a nossa vida e a dos que nos rodeiam”.

PRESIDENCIAIS: PONTO DA SITUAÇÃO
Se já votou antecipadamente no domingo, que é o meu caso, esta semana de campanha serve essencialmente de validação do seu voto ou eventualmente de preocupação com ele, agora já não há nada a fazer, se ainda não votou não se esqueça de o cumprir, é do melhor que se pode fazer (e cumprindo todas as regras de segurança), entretanto pode ver AQUI no Expresso todas as notícias da campanha já escritas e as que se hão de escrever, é uma área do nosso site exclusivamente dedicada às presidenciais, mas faço um resumo de ontem para facilitar o acesso à informação mais recente:

. há dois cidadãos indignados no sétimo parágrafo: Marcelo na pele de pedagogo: "Isto não é uma ditadura. Não há poder político que se possa substituir às pessoas";

. o dia foi de entrevistas a rádios, jornais e televisões e terminou com dois zooms: Ana Gomes quer juntar dois mil apoiantes online;

. “uma surpresa com cheirinho a alecrim”: Marisa, la roja, diz que está a vencer Ventura e fecha comício em videochamada com Chico Buarque;

. reportagem na Marinha Grande, onde há 87 anos uma revolta de trabalhadores foi esmagada pelo regime de Salazar: Jerónimo e Ferreira deixam guião contra os “antidemocráticos”: “Não se combatem com políticas que dão espaço à revolta popular”;

. “No final, num inédito comício drive-in, voltou a evocar Sá Carneiro”: Ventura arregimenta tropas para “Exército Popular Português”, chama “cobarde” a Marcelo e demarca-se de hostilidade contra imprensa (e ainda uma notícia: Jantar-comício de Ventura. GNR identificou proprietário do restaurante e informou Ministério Público);

. A história de um encontro online: Mayan defende injeção da "bazuca" nos sectores mais afetados pela covid-19;

. sobre o que se passou de manhã nas rádios: O debate do ausente/presente. Marcelo exigirá "acordo escrito" a Governo apoiado por Ventura;

. reações às 14 novas medidas anticovid apresentadas pelo Governo: Restrições mais duras: compreensão com críticas (à esquerda e à direita) por parte dos candidatos a Belém.

OUTRAS NOTÍCIAS
. Biden toma posse amanhã, ontem as notícias eram estas: Trump vai perdoar cerca de 100 crimes no último dia na Casa Branca. Haverá indulto para invasores do Capitólio? e "Devemos escolher sempre o amor ao ódio, a paz à violência". Melania Trump despede-se da Casa Branca e ainda Kamala Harris abdicou do lugar no Senado para se tornar sua presidente. Os desafios são ainda maiores;

. chamam-lhe “fenómeno covid de longo prazo”: Cerca de 30% dos doentes covid-19 em Inglaterra voltam ao hospital nos cinco meses seguintes. Um em cada oito morre, diz novo estudo;

. fiz esta pergunta quando paguei a conta da luz de dezembro e pressinto que vai ser pior em janeiro: Afinal porque são tão frias as casas portuguesas?;

. hoje há Sporting-FC Porto nas meias-finais da Taça da Liga - haverá mesmo? FC Porto diz que Sporting “está a cometer um atentado à saúde pública” e ameaça “repensar a participação na final four da Taça da Liga” e Sporting diz que comunicado do FC Porto demonstra “irresponsabilidade, tacanhez e mesquinhez” e que laboratório “já reconheceu o erro”;

. a Tribuna Expresso e as suas magníficas entrevistas: Pepe: “Cheguei a Portugal com cinco euros e duas opções: comprar comida ou telefonar à minha mãe. Liguei para casa, alguém me deu uma sandes” e Retirou-se aos 29 anos e não foi por causa da covid. Caetano é um empreendedor: “Tenho sete espaços de fitness, vou abrir clubes de padel”;

. Ficam pelo menos até amanhã de manhã: Vento e chuva forte: Portugal continental afetado por passagem da depressão Gaetan a partir da tarde desta terça-feira;

. “os responsáveis pela tentativa de o assassinar, utilizando uma arma química proibida, devem ser levados à justiça”: NATO exige libertação imediata de opositor russo Alexei Navalny e Navalny e MNE português apela à libertação imediata do opositor russo;

. podcasts Expresso: O Mundo a Seus Pés #31: Que Presidente será Joe Biden? e Expresso da Manhã: Se o confinamento está a falhar, chama-se a polícia;

. é do Bruno Vieira Amaral e a vontade de lê-lo é sempre toda: Parece que, ao fim de setecentos jogos, o Benfica lá se cansou de ser atropelado pelo Porto - e Jesus saiu da toca;

. a experiência foi feita em dezembro, envolveu 1000 voluntários e a Blitz explica o que aconteceu: O festival Primavera Sound experimentou fazer um concerto sem distanciamento. Os resultados chegaram agora;

. para ler no Boa Cama Boa Mesa: Restaurante que se recusava a encerrar decide não reabrir após intervenção da polícia. Proprietários prometem voltar “em força”;

. uma sugestão - considere isto AQUI.

FRASES
“A luta antifascista tem tantos pais e mães que está desamparada. Está órfã. Porque de repente a esquerda delira com Mayan? Será porque lhe acha graça? Nenhuma. A esquerda antifascista delira com quem conseguir malhar no Ventura. Mayan conseguiu. Isto é mais grave do que parece. Se a direita está mergulhada numa crise profunda, seria bom que a esquerda se aguentasse” Carmo Afonso no Expresso

“O presidente-candidato, um homem que se reclama da direita social, deixa os tempos de antena em branco, quando poderia usá-los para denunciar os perigos da direita-radical-não social. Para o ‘rei’ Marcelo Rebelo de Sousa, pelos vistos o problema não assusta” João Garcia no Expresso

“Portugal é mais machista do que racista” Henrique Raposo no Expresso

“Investigar um jornalista para conhecer as suas fontes é o mesmo que investigar um padre, um médico ou um advogado para desvendar um segredo profissional e chegar ao autor de um crime. Sabemos o que vem depois: escutas a jornalistas e, sem qualquer capacidade para proteger fontes, fim da liberdade de imprensa” Daniel Oliveira no Expresso

O QUE EU ANDO A LER
Às 15h22 de hoje vou assinalar 8.880 horas que são 370 dias desde que o site do Expresso publicou um texto da Lusa sobre um futuro que não tivemos, “a Direção-Geral da Saúde garantiu que o surto de pneumonia viral na China já está contido, indicando que uma eventual propagação ‘não é uma hipótese neste momento a ser equacionada’”, e depois nesse texto de 15 de janeiro de 2020 as autoridades pediam sobretudo prudência e sobrenada pânico, “‘não temos de estar alarmados, é preciso é estarmos atentos’, afirmou a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, aos jornalistas, sublinhando que o coronavírus detetado na China não se transmitirá de pessoa a pessoa”, estava tudo bem porque os médicos e enfermeiros não tinham ficado mal, “segundo Graça Freitas, a transmissão entre pessoas apresenta uma ‘fraquíssima possibilidade’, sendo que um dos indicadores que deixa as autoridades tranquilas é o facto de os profissionais de saúde que trataram os doentes na China não terem adoecido”, a propagação era improvável e a informação confortável , “Graça Freitas sublinhou ainda que é diminuta a possibilidade de o vírus chegar a Portugal, recordando que terá já sido contido na China, estando circunscrito à cidade de Wuhan, capital da província chinesa de Hubei”, portanto pelas 15h22 de hoje passaram 8.880 horas desde que é preciso estarmos atentos mas entretanto ficámos todos definitivamente alarmados - porventura nem todos porque o negacionismo será sempre uma das manifestações da liberdade social tal como prever o futuro será sempre uma tentação superficial, “assim como durante muito tempo os homens se enganaram a respeito do movimento do Sol, eles ainda se enganam quanto ao movimento do que está para vir - o futuro permanece fixo mas nós movemo-nos no espaço infinito”, agora já não cito a Lusa mas o Rainer Maria Rilke, passaram hoje 1.020.695 horas que são 42.529 dias ou quase 117 anos desde que ele escreveu isso, está nas “Cartas a um jovem poeta” e foi a lê-las que decidi regressar ao passado para fazer as pazes com o futuro:

às 08h05 de hoje passaram 7.224 horas que são 301 dias desde que eu publiquei no Expresso um texto em que 25 amigos meus confinados a 24 de março de 2020 escreviam o que mais queriam fazer assim que esse isolamento de então acabasse, “abraçar a minha mãe, o meu pai e a minha irmã com a força com que nunca os abracei”, “abraçar alguém”, “quero que a minha casa seja assaltada pelos meus, beijá-los e abraçá-los infinitamente”, “demorar-me lá fora, viver como se todo os dias fossem uma manhã de sábado”, “abraçar e beijar, rir-me sem pôr a mão à frente da boca num jantar cheio dos meus”, “quero abraçar os meus pais e fingir que não perdemos tempo, quero ser inconsciente com os amigos de sempre e com os amigos que chegaram há dois dias, quero beber e cantar na rua”, “sentir um beijo na cara da minha mãe e apertá-la num abraço”, “ir a um concerto com amigos, abraçá-los, sentir-me pequeno no meio da multidão e encontrar conforto na minha pequenez, porque ninguém é sozinho”, escreveram-me isso e mais nesse março de 2020 num Portugal que armazenava abraços toque saudades carinho amor expectativas ansiedade e derivados emocionais para quando o país abrisse de novo mas nunca reabriu todo, só aos pedacinhos, pedacinhos de abraços pedacinhos de toques pedacinhos de beijos pedacinhos de amor pedacinhos de sábados pedacinhos de concertos, pedacinhos pedacinhos pedacinhos, beijinhos abracinhos tudo muito inho, perdemos os excessos ficámos com retrocessos, desde aquele março alguns dos meus 25 viram morrer-lhes amigos e família, amigos são família por vezes e família nem sempre são amigos noutras vezes mas uns e outros são o nosso mundo e o mundo regrediu porque o vírus evoluiu, um daqueles 25 enviou-me uma mensagem há dias sobre as maneiras diferentes como estamos a morrer, “neste período perdi amigos, (...) alguns perdi-os psicologicamente, parece-me difícil que consigam recuperar mentalmente da degradação que sofreram”, e por isso escrevi de novo aos meus 25, têm idades entre os 26 e os 91, pedi-lhes para me dizerem o que perderam e ganharam nesta pandemia que há 8.880 horas era uma pandemia impossível de acontecer e que agora parece impossível de conter, pedi-lhes isso porque numa das cartas do Rilke ele diz que “se nos fosse possível ver além do alcance do nosso saber, e ainda um pouco além da obra preparatória do nosso pressentir, talvez suportássemos as nossas tristezas com mais confiança do que as nossas alegrias”, e em baixo tenho as respostas de 23 dos meus 25 porque há dois que não foram a tempo deste texto mas este é mesmo um tempo urgente para prestar atenção e dedicação ao tempo de quem amamos, há tanta gente a passar por tanto tão diferente:

Perdi palavras. Esqueci-me de palavras. Imagino que é o que acontece quando se passa semanas sem ouvir a própria voz. Ganhei medos e apatias. E talvez uma camada ou outra de resiliência;

Perdi família, perdi amigos e perdi a noção de normalidade. Ganhei a certeza de que o impossível não existe;

Perdi noção do tempo, ganhei noção da humanidade;

Ganhei laços, com amigos novos e com os de longa data. Ficarmos fechados aproximou-nos, e isso manteve-se ao longo do ano. Perdi a convicção de que o futuro é sempre melhor do que o passado. Perdi a convicção, mas não uma secreta esperança;

Perdi o calor dos abraços para ganhar uma estúpida sensação de que é razoável viver sem eles;

Perdi saúde, sobretudo mental, perdi calma e sobretudo perdi os abraços de que preciso tanto. Provavelmente perdi também tempo precioso com a minha avó. Ganhei uma capacidade que não conhecia para distinguir as coisas que me fazem mal e felizmente perder a paciência para elas;

Perdi o toque. Perdi liberdade. Ganhei consciência de quão importantes eram ambos. E no meio da distância toda exigida, ganhei proximidade. Ganhei novas pessoas;

Não consigo responder, estou dormente. Mas temo por todos os que procuram amor e agora tiveram de voltar para casa com o novo confinamento;

O que perdi: os vedantes para garrafas de espumante que se vendem nos hipermercados Auchan. Não superam a segunda utilização, como consegui constatar quando o terceiro artefacto que comprei se desfez nas minhas mãos, tal como os anteriores. Sobrou uma coleção deslaçada de mola, peça de plástico e outra de metal, todas inúteis quando separadas e, pior, impossíveis de voltar a juntar num conjunto harmonioso e capaz de cumprir a promessa do fabricante. Nem tudo foi mau: mais vale despejar a garrafa do que guardá-la para os dias seguintes. O que ganhei: rotinas da vida anterior que se transformaram em momentos de felicidade na nova vida. Por exemplo: sair do primeiro confinamento, verificar que o café que habitualmente frequentamos está aberto, ir lá tomar uma ‘bica’ e experimentar uma intensa alegria, correspondida, por podermos voltar a ver a pessoa que habitualmente nos atende;

Nesse período perdi amigos e familiares, alguns deles fisicamente, vítimas de covid, e outros perdi-os psicologicamente - porque parece-me difícil que consigam recuperar mentalmente da degradação que sofreram. Também perdi um estilo de vida sociável que temo que também não seja facilmente recuperável. Mas ganhei tempo para fazer coisas que nunca tinha tido oportunidade de fazer e ganhei paz de espírito e experiência porque aprendi a valorizar aquilo que é verdadeiramente importante;

Perdi as visitas das minhas amigas mas aprendi a fazer videochamadas e adoro😀;

Perdi - como toda a gente consciente - o quente dos abraços e dos beijos; tenho muitas saudades de abraçar com o peso todo do corpo; mas ganhei uma proximidade, ainda que mais virtual, com pessoas que me são essenciais;

Perdi e, depois, ganhei paciência para tudo isto;

Perdi, perdemos todos, o convívio suado, descontrolado, selvagem se tivesse de ser, que havia nas noites que agora pertencem à memória. E a memória, como tudo o que não é treinado, definha. Perdi a despreocupação, a espontaneidade, o pouco que tinha de ambas, e o que ganhei também são coisas que perdi: ganhei uma camada de culpa sobre tudo o que faço, por onde me movimento, o que digo às pessoas sobre os meus dias;

Perdi o ginásio mas descobri a canoagem 🚣‍♀️;

Perdi abraços e aquele hábito de baixar o volume da televisão na altura das notícias do vírus para não preocupar a miúda cá de casa. Ganhei três coisas: mais amor por ela, a certeza de que “para sempre” até é um belo conceito e Mario Benedetti;

Perdi muito mundo, muitas viagens por fazer, muitos abraços por dar, muita música por ouvir em comunidade de suor e afeto. Ganhei a certeza de que a liberdade é ainda mais preciosa do que imaginava;

Perdi o simplesmente estar-me nas tintas para o distanciamento e ganhei a preocupação com a distância, porque a primeira causa a segunda e esta merda fez-me ir ver o que o dicionário diz que é merda e está lá escrito que pode ser ‘insignificância’, e acho que também é isso que perdi, o achar que já nada do que faço junto com amigos e família é só mais uma coisa, mais uma almoço, mais uma noite de copos para me estragar todo com eles e isso me saber pela vida. Por isso tenho ganhado muito no significado que dou a todas essas coisas porque tenho saudades de fazer sem preocupações as coisas deque gosto mesmo de fazer em vez de só poder fazer algumas coisas de que também gosto;

Tenho sempre dificuldade em ver o lado positivo do confinamento. Claro que se pode falar no tempo que ganhei com a família mais próxima. Ganhei o descanso de não faltar a coisas pelo medo de estar out (FOMO). Só que o confinamento significa a perda de liberdade, de fazermos o que queremos na realidade que sempre foi a nossa, e significa a perda de liberdade de movimentos, não só por termos de estar fechados, mas porque, quando estamos a tentar a vida normal, fazemo-lo com medo. Perdemos o toque, e eu nem sou do toque. Ganhámos impaciência e peso;

Ganhei tempo, como todos ganhámos, para fazer exatamente o quê?, já que perdi tempo para estar com a família, que só vi uma vez em 365 dias, e tempo para fazer o que mais gosto, livre num campo de futebol - que passou a ser espaço proibido. Também ganhei, contra a minha vontade, a inteireza de me sentir finalmente adulta, ao ser despejada e comprar uma casa, endividando-me então para o resto da minha tal vida adulta;

Ganhei um muito feliz acaso, porque nem tudo uma pandemia impede; perdi o tempo que queria ter passado com quem me é próximo, de preferência em noites pouco previstas - dirão que é pouco a lamentar, mas cada um tem o seu mundo (e doeu);

Perdi a minha avó paterna, a Amélia dos olhos doces, um dos meus pilares. Perdi a possibilidade de estar a meu belo prazer. Perdi os encontros e reencontros gratuitos e espontâneos. Ganhei reinvenção, paciência, tempo e (re)descobri companheirismo, lealdade, amizade e amor inabaláveis.


Há 8.880 horas disseram-nos que o surto estava contido mas 8.880 horas depois morreram até esta segunda-feira 9.028 pessoas em Portugal vítimas do vírus que em janeiro de 2020 aparentemente não se transmitia de pessoa para pessoa, 9.028 pessoas é praticamente menos uma pessoa por hora nas nossas vidas desde que era diminuta a possibilidade de o vírus chegar a Portugal, há 9.028 pedacinhos de abraços pedacinhos de beijos pedacinhos de amor que já nem sequer pedacinhos hão de ser, ontem Portugal era o segundo país do mundo e o primeiro da União Europeia com mais novos casos por milhão de habitantes, o Rilke dizia naquelas cartas ao jovem poeta que às vezes temos de descobrir dentro de nós “a paciência suficiente para suportar e a inocência necessária para acreditar”, este é o momento, não sei se reparou mas eu não transcrevi 23 frases dos meus amigos mas vinte e duas, a 23ª ficou para o fim pela coincidência de me ter chegado por mensagem no dia em que eu sublinhei essa frase do Rilke que acabei de citar, eis então a 23ª, tão plena de paciência para suportar e inocência para acreditar:

Foi quando perdi gente que ganhei humanidade. A 10 de julho a minha avó materna morreu e uma semana depois a minha mãe sofreu um AVC; a 8 de outubro o meu melhor amigo, o Gualter, perdeu a mãe dele, que sempre me tratou como um filho; e na véspera de eu fazer 30 anos enterrei a minha avó paterna. Senti por três vezes o peso da morte no espaço temporal de meio ano. Estou cansado de carregar caixões com o peso dos meus mortos, mas continuo a segurá-los todos na memória, a ensiná-los tão vivos aos outros. É quando nos cai o chão que nos agarramos ao tesouro de não estarmos sós e é aí que as palavras se desprendem da boca. Foi quando finalmente pude visitar a minha mãe no hospital que pela primeira vez disse que a amava. Renascemos os dois.

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