Bom dia!
“A poeira no ar suspensa determina o sítio onde uma história teve fim”, escreveu T. S. Eliot no poema Little Gidding. A cinza ainda paira esta manhã, determinando o fim de uma História com mais de 800 anos em Notre Dame - pelo menos tal como a conhecíamos. Vivemos guerras, vimos a queda das Torres Gémas em direto, a Europa autodestruiu-se duas vezes o século passado, mas a morte da catedral, uma das maiores obras de arte da humanidade, não só da França - e a que a nossa memória ocidental pertence, não apenas a de França -, é uma tragédia do tamanho das nossas grandes tragédias. Suspensa no ar, agora, mais do que o pó, a incredulidade.
Os sinos das igrejas de Paris tocaram a rebate, enquanto as chamas faziam de Notre Dame, em pouco mais e quatro ou cinco horas, uma cruz de fogo. A estrutura estará a salvo, mas a maior parte do teto abateu e a torre central desmoronou-se, os vitrais góticos das rosáceas terão sido destruídos ou ficaram muito danificados, obras de arte arderam, ao mesmo tempo que uma multidão entoava cânticos na margem esquerda do Sena e ainda se viam chamas nas imagens das televisões - contava ontem o live blog que o nosso jornal pôs no ar. Os tesouros, as relíquias e o altar, porém, salvaram-se. Para já, tudo indica que o incêndio foi acidental, embora o Le Monde escreva que será difícil encontrar provas materiais de como tudo começou.
"Quando o grande pináculo das traseiras da Catedral de Notre-Dame de Paris se desmoronou em chamas ouviu-se um clamor de dor no centro da capital francesa: 'Ó!... Não!', exclamou quem assistia incrédulo ao terrível incêndio", escreveu Daniel Ribeiro, o correspondente do Expresso em Paris. "Horas depois, a 'maire' de Paris, Anne Hidalgo, resumiu tudo: 'Todos chorámos'. O monumento ficou em carne viva". Emmanuel Macron reagia com emoção e tentava dar uma palavra de esperança: "É a nossa história, a nossa literatura. É o epicentro da nossa vida. Vamos reconstruir esta catedral em conjunto", disse o Presidente francês. Tinha caído uma torre que levara cem anos a construir. Quanto tempo levará a França a reerguer Notre Dame?
Só para ter uma ideia, a primeira pedra da catedral tem menos 20 anos do que Portugal. "A imponente e rendilhada catedral foi construída por ordem e vontade do rei Luís VII e de Maurice de Sully, eleito bispo de Paris em 1160", conta aqui a jornalista do Expresso Manuela Goucha Soares. A primeira daquelas pedras foi colocada em 1163 e abençoada com a presença do Papa Alexandre III. Sabia que durante a Revolução Francesa Notre Dame foi transformada em armazém?
Marcelo Rebelo de Sousa, que a viu de perto pela primeira vez aos 14 anos numa viagem de carro com os pais, reagiu assim: "Uma dor que nos trespassa o olhar e logo nos marca a alma. Paris, sempre Paris ferida na sua Catedral em chamas, um símbolo maior do imaginário coletivo a arder, uma tragédia francesa, europeia e mundial".
Desse imaginário agora farão parte as imagens e os vídeos da tragédia que abateu a catedral imortalizada por Victor Hugo e também as primeiras páginas dos jornais desta manhã: "Notre Drame", o melhor título é do "Libération" (que pedi emprestado para título desta crónica).
Nos próximos dias, conheceremos a verdadeira extensão dos estragos. O The Guardian escreve sobre os receios em relação ao destino dos tesouros mais preciosos da catedral..
OUTRAS NOTÍCIAS
Podia ter começado por aqui, não fosse a tragédia parisiense: pelo primeiro episódio da Guerra dos Tronos, ou pelo Programa de Estabilidade de Mário Centeno. Ou por ambos, porque a série também tem a sua economia (embora pouquíssima estabilidade). "O que comem os dragões?", perguntou Sansa Stark no regresso da série onde já morreram 150.966 pessoas. "O que eles quiserem", respondeu Daenerys Targaryen.
O que come o Estado? O contrário dos dragões, porque desde a existência de Mário Centeno, o "monstro" só come o que o ministro das Finanças deixa - de forma que o saldo entre o que o dragão consome e o que sobra aproxima-se do zero e vai mesmo chegar a positivo. Se não fossem os mil milhões para o Novo Banco, o défice de 2019 seria um excedente de 0,4% do PIB.
Assim, o governo mantém a meta de um défice de 0,2% do PIB para 2019, apesar de rever em baixa o crescimento da economia para 1,9%. A descida da dívida em percentagem do PIB será mais lenta do que a prevista no Orçamento do Estado. Enquanto o Conselho de Finanças Públicas diz que as previsões de Centeno são prováveis, mas não as mais prováveis, a oposição ataca: um “grande buraco negro” substituiu discurso do “diabo” no PSD.
Lisboa não é Winterfell, mas, no episódio de ontem, Jon Snow tinha dúvidas sobre se sabia montar um dragão. Daenerys disse-lhe que só era possível sabê-lo depois de montar um. Também é um bocado como Centeno: só soube o que era agarrar o poder depois de saber o que era ter o poder. E Mário é o ministro mais poderoso do Governo, tanto que António Costa não pode nem quer prescindir dele. Se o primeiro-ministro conseguiu manter-se estes quatro anos no trono de São Bento graças a uma habilidade política digna de Westeros, a credibilidade foi conquistada pela sua "Mão" - "The Hand" - das Finanças que ontem entregou o último Programa de estabilidade da legislatura. Neste artigo do Expresso Diário, pode ver a comparação entre o que Centeno previu em 2015 e o que realizou até 2019. Há um ministro com duas faces?
O Presidente da República, no entanto, deixou um aviso: as previsões do Governo inscritas no Programa da Estabilidade "não são preocupantes". Mas ... "Não basta crescer mais do que a UE, é preciso não nos deixarmos ficar na ponta da zona euro."
Aliança. Miguel Leal Coelho, ex-diretor do centro de espetáculos do CCB, foi convidado por Santana Lopes para ajudar na Festa da Liberdade do Aliança, inspirada na Festa do Avante. Santana Lopes nunca foi à rentré comunista, mas diz que a admira.
Perda de mandato na Maia. O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto decretou a perda de mandato ao presidente da câmara, António Silva Tiago, e ao vereador Mário Sousa Neves, acusados de seis crimes, entre os quais crimes de corrupção passiva, abuso de poder e peculato.
Trabalhar até morrer, diz Cavaco. O ex-Presidente da República diz que a idade da reforma pode passar para os 80 anos em 2050. Em entrevista ontem à Rádio Renascença, Cavaco Silva disse que “este devia ser o tema central do debate das forças políticas em Portugal”.
Óbitos. Morreu Maria Alberta Menéres, aos 88 anos. A escritora e antiga jornalista era natural de Vila Nova de Gaia e autora de uma vasta obra poética, destacando-se “Ulisses”. Também morreu, aos 45 anos, o ex-jogador do FC POrto, Quinzinho.
Football Leaks. A Rússia pediu a Portugal informações sobre 'pirata informático' Rui Pinto
As autoridades portuguesas receberam das autoridades russas uma carta rogatória pedindo informações sobre o hacker português, que os russos acusam de várias infrações.
Merecemos ganhar? Um texto sobre as vitórias morais no futebol. O treinador Blessing Lumueno escreve sobre a "justiça" no futebol, se é que isso existe, ao abordar várias situações de finalização distintas: "Porque uma equipa pode não ter mérito algum na forma como as situações de jogo se transformam em ocasiões de golo, ainda que possa ter o mérito na finalização das mesmas."
Bansky. Vem aí mais uma exposição de Banksy não autorizada por Banksy — “Génio ou Vândalo?” chega a Lisboa. A mostra vai de 14 de junho a 27 de outubro. Mas é melhor correr, porque os bilhetes são postos à venda já a partir de 20 de abril.
Podcast sobre um podcaster. O Bernardo Mendonça levou Daniel Oliveira ao "Verdade ou Consequência": "Vejo o BE como um gato a olhar para o peixinho do poder num aquário e continuará assim", disse o comentador e ativista.
Chuva na Páscoa? Sim. A semana de Páscoa vai ser de frio e chuva. As temperaturas começam a descer já esta noite. Prepare os agasalhos para o fim-de-semana ou para as mini-férias. Apesar disso, o Algarve está quase esgotado.
LÁ FORA
Brasil. Bolsonaro dá passaporte diplomático a líder da IURD. O dono da Rede Record e líder da Igreja Universal do Reino de Deus e a sua mulher têm desde esta segunda-feira passaporte diplomático. Pela primeira vez na história, a televisão do bispo Edir Macedo ultrapassou a Globo no investimento publicitário do governo federal.
Sarampo. Casos de sarampo triplicaram nos primeiros três meses do ano. OMS fala em “crise” mundial
Estados Unidos. Campanha para a reeleição de Trump recolheu mais de 26 milhões de euros desde o início do ano. A congressista muçulmana Ilhan Omar denuncia ameaças de morte: acusa Donald Trump de incitar ao ódio e à violência da extrema direita.
Wikileaks. Presidente do Equador acusa Assange de ter usado embaixada como “centro de espionagem”. Lenín Moreno lamentou que o governo anterior tenha facilitado a Assange equipamentos que lhe permitiram “interferir nos assuntos de outros Estados".
Venezuela. China acusa Washington de ver América Latina como “o seu quintal”. MNE chinês rejeita as críticas do secretário de Estado dos Estados Unidos que considerou que o financiamento de Pequim ao Governo da Venezuela está a fazer prolongar a crise no país sul-americano.
Ambiente. Morte de tartaruga Yangtzé ameaça sobrevivência da espécie. Única fêmea conhecida faleceu com 90 anos, após uma quinta tentativa de inseminação artificial.
O regresso do Tigre. Precisamos muito mais dos deuses do que eles de nós: o cronista e comentador Pedro Marques Lopes escreve sobre Tiger Woods, o golfista que ele, um dia, quis ver perder. "Mas não daquela maneira"
FRASES
"A cada dia que passa, torna-se mais claro que António Costa vestiu a pele de 'cabeça de lista de facto' às eleições europeias."
Paulo Rangel, em artigo de opinião no Público
"Não basta ganhar por poucochinho."
Pedro Marques, cabeça de lista do PS às Europeias, numa intervenção no Largo do Rato
"Poderá Rui Rio derrotar António Costa em outubro? A resposta cínica, mas ao mesmo tempo muito realista, é esta: o que é que isso interessa?"
João Miguel Tavares, no Público
"O que temos com este documento é um grande buraco negro, uma incerteza."
Duarte Pacheco, deputado do PSD, sobre o Porgrama de Estabilidade
MANCHETES
Público: "Notre-Dame da Europa"
Jornal de Notícias: "Corrida a medicamentos para combater alergias cada vez mais graves"
i: "Minha nossa senhora"
Correio da Manhã: ´"Função pública ganha mais 2,4 mil milhões"
Negócios: "PS só supera investimento do Governo PSD em 2020"
O QUE ANDO A LER
“O pó suspenso no ar indica o lugar onde terminou uma história”, cita várias vezes o livro, a partir de um poema e Eliot. Faltam-me apenas 50 páginas para acabar “Berta Isla”, do escritor espanhol Javier Marías (Alfaguara) e se calhar ainda bem, porque escuso de sucumbir aqui à tentação de estragar aos outros o prazer que tem sido (para mim) a leitura do que que na realidade é o quarto volume de “O Teu Rosto Amanhã” (aqui tem a crónica de Pedro Mexia sobre o livro, publicada no Expresso). Não sei como acaba, não sei como se suspenderá o pó no ar, mas sei o resto - como começa - e este “para mim” tem outro significado, que é saber mais do que o leitor que se inaugura neste universo através de “Berta Isla”.
No fundo, há duas maneiras de ler o livro e nenhuma é pior do que a outra. É assim: quem leu os três volumes de “O Teu Rosto Amanhã” tem mais informação do que Berta, a protagonista, e já conhece o meio onde se move Tomás Nevinson, o marido; quem não leu e desconhece o mundo de Nevinson, situa-se ao nível de Berta, e vive com ela a angústia da ignorância sobre a vida misteriosa do marido. Quem leu a triologia, acompanha a história na perspetiva de Tomás; quem não a leu, está mais próximo da mulher que dá o título à obra. A variação dos narradores dá-nos a mesma medida: nos capítulos sobre Tom, o narrador é omnisciente, nos capítulos sobre Berta, ela é a narradora, na primeira pessoa, com a sua ignorância, dúvidas e especulações.
A base da história é esta: Tomás e Berta apaixonam-se no liceu, têm uma ou outra aventura no tempo da faculdade - ela em Madrid, ele em Oxford - depois acabam os cursos, casam, mas ele arranja um emprego que a mulher nunca conhecerá no detalhe. Tomás é recrutado de forma ínvia para os serviços secretos britânicos - domina o inglês e o castelhano, tem um dom inato para línguas, e imita qualquer sotaque na perfeição o que o habilita para todo o todo de disfarces e infiltrações. Leva uma vida dupla, mas Berta desconhece o que faz o marido nas suas longas ausências. Bom, a partir daqui convém não contar mais.
A não ser Bertram Tupra, vale a pena mencionar Tupra, nosso velho conhecido dos outros três volumes, que regressa aqui para conquistar o direito de figurar entre as figuras mais ímpias, amorais, manipuladoras e competentes da literatura mundial. Tupra, só por si, merecia um tratado. Adiante.
A ausência física, a identidade pessoal, a plasticidade da personalidade, são aspetos invocados pelo autor espanhol, também ele de influência oxoniana como os seus personagens anglo-hispânicos. O que conhecemos dos outros, verdadeiramente? O que conhecemos de nós mesmos, genuinamente? De que será capaz a pessoa com quem dormimos? De que somos nós capazes em circunstâncias que ainda desconhecemos (este já era o tema principal dos volumes anteriores)? O nosso rosto hoje será o mesmo rosto amanhã?
As interrogações que levanta este e os outros volumes desta série de Marías poderiam levar-nos a perguntas quase infinitas, ao sabor das deambulações do próprio autor (cujo maior defeito é insistir nas descrições pormenorizadas dos aspetos físicos dos personagens). Pode ser sobre a verdade e a mentira, sobre a natureza da mentira, do que nos é contado e ocultado.
Numa belíssima entrevista que deu há poucos meses à jornalista do Expresso, Luciana Leidefarb, publicada na Revista E, Javier Marías dizia isto: “Não se trata apenas da desconfiança nas palavras, mas da convicção de que não temos a certeza de praticamente nada. Dependemos daquilo que nos é contado. Há 10 anos, no discurso da minha entrada na Real Academia Española, defendi que contar é, em última instância, falsear.” O que acontece só acontece se for contado, como diria Nevinson ou Tupra? E se for contado, é verdadeiro?
A triologia de "O Teu Rosto Amanhã" foi lançada em Portugal entre 2003 e 2017: o primeiro volume (Febre e Lança) foi lançado em Portugal, em 2003, pela D. Quixote. Mas não foram traduzidos os outros dois volumes até 2017, quando a Alfaguara resolveu editar a obra completa. Há um ano, li os números dois e três e a seguir regressei ao primeiro, como se fosse uma prequela da qual já só recordava um esboço essencial. Se quiser, fica aqui uma sugestão: leia primeiro “Berta Isla” e depois conheça o mundo por onde passou Nevinson nos três livros anteriores.
Fica por aqui este Expresso Curto que já vai longo, e desejo-lhe que passe bem o dia e a semana, apesar das cinzas em que se transformou em poucas horas a nossa memória.