Expresso Olha, nem sei

“E não gritaste por ajuda?”

Boa tarde,


A newsletter de hoje é sobre o sexismo em casos de violência sexual, tendo como ponto de partida um julgamento real específico. Se o assunto for motivo de mal-estar pessoal para a leitora ou o leitor, fica aqui o aviso.




Um advogado de Donald J. Trump interrogando E. Jean Carroll, perguntou à vítima “You never streamed for help?”, no caso de violação contra o ex-presidente dos Estados Unidos da América.


Não é novidade nenhuma, infelizmente, que se fazem as perguntas mais absurdas a vítimas de assédio e abuso sexual que, curiosamente, têm sempre algo em comum: pretendem depositar a culpa do que aconteceu na vítima, dando uma abébia ao agressor/abusador. Jessica Bennett, escritora para o New York Times, reuniu algumas das perguntas reais feitas a vítimas que nunca deveriam ter sido feitas, intercalando-as com o caso referido:



“Se vive com o seu companheiro em casa,

que andava a fazer nas ruas a ser violada?”

Um advogado perguntou a Cheryl Araujo, vítima de violação coletiva por quatro homens numa taberna em 1983.


“Você era muito de festas na faculdade, não era?”

O advogado de Brock Turner perguntou isto à mulher que afirmou que o seu cliente a havia abusado sexualmente

enquanto ela estava inconsciente, em 2015.


“Por que não manteve simplesmente os seus joelhos juntos?”

Pergunta feita pelo advogado Robin Camp a uma jovem de 19 anos,

aquando o julgamento da sua acusação contra o homem que a violou em 2014.



Esta troca de peso de culpa reflete a hierarquia social machista, que libera homens de violência sexual e condena mulheres por terem sido vítimas da mesma. Quantas e quantas vezes vemos discursos que culpam a mulher pelo assédio ou violação que sofreu porque estava bêbada; mas que desculpam o homem que assediou ou violou porque estava bêbado? Quantos mais anos vamos assistir à mulher a ser tida socialmente como culpada do crime que sofreu conforme a roupa que vestia, conforme a força que não teve para combater no momento, conforme o grito que não conseguiu dar com o pânico?


Até quando vamos culpabilizar a vítima?


Quando o advogado lhe perguntou tal coisa, E. Jean Carroll respondeu: “Não sou de gritar. Estava em demasiado pânico para sequer gritar. Eu estava a lutar.”


Ela estava a lutar. Ela está a lutar. O corpo humano entra em modo de sobrevivência em casos extremos de violência e dor: não há uma forma única de reagir e essa nem sequer é a questão.


Para quando, também, uma culpabilização dos advogados que fazem estas perguntas de tamanha estupidez e falta de empatia?


Para quando uma lei que penalize com força juízes/as que deixam isto passar? Que em casos de violência doméstica, dizem para o agressor levar a vítima a jantar fora e ao teatro de revista, ou outras resoluções macabras deste mundo? — Relembro que isto aconteceu em Janeiro deste ano, em Portugal, e que o Conselho Superior de Magistratura disse que não podia interferir, como noticiado pelo Expresso.



A culpa não morre solteira. A culpa muitas vezes vive em casal, em ambientes horríveis de violência doméstica. A culpa vive no peito das vítimas que não a merecem, graças a abusadores, forças policiais, advogados e juízes que se preocupam com tudo, menos com o bem-estar da vítima.



É importante deixar a nota que nem todas as vítimas de violência sexual são mulheres. Há, inclusive, um projeto muito bem feito para homens vítimas sexuais, chamado Quebrar o silêncio. Se não o conhece, convido-a/o a visitar a página.

Expresso Olha, nem sei