Expresso Olha, nem sei

O morno não faz revoluções

Boa tarde!


Alguma vez viu um grande problema do mundo a resolver-se numa conversas de café? Aquela típica conversa que acaba com um “olhe, podia ser pior” ou “vai-se andando como se pode”. A este tipo de “desconversar”, eu classifico de morno: não aquece, nem arrefece, é morno. Ninguém gosta a sério de algo morno.


Se de um lado podemos ver como morno, também podemos ver como insosso.


Quando queremos agradar a todos os lados, acabamos com uma argumentação desinteressante, neutra, insossa. Não é assim que se fazem as revoluções, não é assim que surgem as mudanças.


Um cravo ao peito não é morno.

Uma bandeira da Palestina nas redes sociais não é morno.

E até colar a mão ao alcatrão não é morno (por muito que possa gerar questões de efetividade na passagem da mensagem).

As mulheres fazerem uma greve nacional em protesto pela desigualdade salarial não é morno.


E aqui chega a notícia que comento hoje: As mulheres da Islândia, ontem, fizeram uma greve coletiva, como protesto, devido à desigualdade salarial. Como se pode ler na Imprensa: “Escolas fechadas, transportes públicos atrasados, hospitais com falta de pessoal e quartos de hotel por limpar: é o cenário que encontraram os homens na Islândia, com as mulheres em greve e unidas na luta pela igualdade salarial.” Diz-se que é a maior manifestação desde a primeira de 1975.


Neste contexto, queria convidar o/a leitor/a a pensar comigo: começará a desigualdade de género no mercado laboral no emprego? A meu ver, a desigualdade começa muito antes, até no preconceito de “trabalho de mulher” e “trabalho de homem”. As representações de determinada profissão vivem no nosso imaginário, muitas vezes com um género subentendido: empregada doméstica, médico, professora primária, condutor de táxi, bailarina. Este é o primeiro entrave, que é criado desde a infância.


Imaginemos, agora, o cenário de uma mulher numa entrevista de trabalho. Ainda hoje, há muitas mulheres que ouvem estas perguntas em entrevistas: “é mãe?”, “pretende ser mãe num futuro próximo?”. E toda a gente sabe que a resposta pode ditar se ela fica com o emprego ou não. Sim, é ilegal, mas, sim, acontece. Infelizmente, há muita gente que precisa mesmo, mesmo, daquele emprego. Alguém pergunta a um homem numa entrevista de emprego se pretende ser pai num futuro próximo? Não. O ordenado de um homem diminui a partir do momento em que é pai? Não.


Para além desta questão, queria também trazer para cima da mesa a possibilidade, ou não, de se poder fazer greve: é preciso poder-se fazer uma greve, em termos económicos. É um privilégio poder abdicar de receber pelo dia de trabalho marcado como dia de greve.


O mesmo raciocínio pode ser aplicado no processo de reclamar com os quadros superiores quando há algo de errado na forma de funcionar da empresa. Claro que o desagrado poderia ser demonstrado através de uma ação conjunta dos trabalhadores, seja com uma carta aberta, uma manifestação, ou, no limite, um despedimento em massa. No entanto, mais uma vez, nem toda a gente pode arriscar perder o emprego que tem, mesmo que tenha grandes problemas ou seja precário.


É incrível como até na demonstração de descontentamento temos o fator do privilégio: quem tem menos é quem tem mais a perder.


Mesmo assim, a necessidade de grandes mudanças implica grandes riscos. Com o morno não arriscamos, não vamos a lado nenhum. Que haja coragem, porque sem rutura não se faz revolução. Venha ela.


Expresso Olha, nem sei