Expresso Livros

Quem para a máquina da escrita? Neste setembro turvo, ninguém

Nesta altura do ano em que tudo recomeça - aulas, ano judicial, para muitos o trabalho após as férias -, os livros parecem o rio de Heráclito: é sempre o mesmo, embora as suas águas nunca o sejam. A estante renova-se porque a máquina da escrita não para. Transborda de livros de cada vez diferentes, que substituem os anteriores para os quais deixa de haver espaço. Assim, as livrarias enchem-se de novidades, remetendo para um qualquer fundo o ‘velho’ de há uns meses. Tiro uma ao acaso, abro-a e encontro: “Sabemos que a vida é finita. Porquê acreditar que a morte é para sempre?”

Quero saber quem escreveu esta frase inicial e vejo que é Anne Michaels, uma poeta e romancista canadiana que, segundo a sua conterrânea Margaret Atwood” tem a habilidade de nos mostrar “a nossa humanidade”. O livro chama-se “Abraço” e foi finalista de dois grandes prémios - o Booker 2024 e o Femina Étranger. Venceu também o Prix Transfuge. Editado pela Relógio D’Água, é fragmentário e moderno, e muito antigo, viaja entre tempos e gerações, tem várias camadas de doçura. E tudo começa com um ferido de guerra, em 1917, deitado abaixo por uma luz, uma explosão.

Mais adiante, lemos: “Que história estará a guerra a escrever agora nos nossos corpos? Guerra travada por cidadãos cujos músculos nunca antes tinham empunhado uma arma, ou passado uma criança de mão em mão por cima de uma série de cabeças até chegar à mãe, num vagão a abarrotar com refugiados. A guerra que está a escrever-se nesses corpos, no corpo dessa criança, será lida como a guerra sempre foi lida: de desconhecido para desconhecido, de pai para filho, de amante para amante. E, mesmo que seja possível regressarmos à nossa cidade, mesmo que nunca dela tenhamos saído, será uma história contada como sempre foi contada: longe de casa.”

É o que faz Taina Tervonen, jornalista e documentarista que nasceu na Finlândia, cresceu no Senegal e hoje vive em Paris, e que há mais de duas décadas persegue o tema das migrações e das sociedades arrasadas pela guerra. Pelo seu trabalho já recebeu o Prémio Louise Weiss de Jornalismo Europeu, assim como outro outorgado pela Fundação Michalski pelo seu livro “Les Fossoyeuses”, de 2021. Este ano publicou “Os Vigilantes”, agora lançado pela Antígona. A ideia que o sustenta é a do acompanhamento que, em diferentes pontos, uma rede informal de pessoas faz das viagens dos migrantes, acompanhando-as à distância. Reportando como “entre Marrocos e as Canárias, barcos inteiros desaparecem, barcos que se sabe que partiram, mas nunca chegaram”. Destas travessias não restam “sobreviventes nem destroços”, são fantasmas inexistentes para todos menos para cinco voluntários que este volume resgata, gente que alerta a imprensa e que esta quer ouvir cada vez menos, porque a migração enquanto problema humanitário simplesmente deixou de bombar, passou de moda.

Taina descreve-nos o que ouviu em relatos recolhidos num frente a frente com estes ‘vigilantes’, alguns deles pessoas insuspeitas e ‘comuns’, como Marie Dupont, “uma mulher que andará na casa dos sessenta anos, instalada com dois cãezinhos no sofá da sua sala” e que, de repente, consegue saber o que se passa nos estaleiros argelinos ou tunisinos ou a bordo dos barcos lançados ao mar, sem motores adequados nem coletes salvavidas. Barcos fabricados em apenas três dias, que costumavam ser de madeira mas agora são de ferro mal soldado. Taina ouve e mal acredita. E isto é apenas uma ínfima parte do que conta.

No seu refúgio francês de Vence, em 1991, Eduardo Lourenço perguntava: “Está a Europa pura e simplesmente cansada de ‘existir’, de se assumir como vontade do futuro?” Passaram-se mais de trinta anos, mas a interrogação queima nas mãos. Ainda mais quando continua: “Como uma rainha impotente, a Europa pensa-se ainda (...) como espaço de integração, não ousando já evocar a ‘assimilação’ de má memória. Mas é tarde. O outro, que é o mesmo que nós, recusa essa oferta pouco real. Não quer ser europeu. Quer ser marroquino, senegalês, chinês, na Europa. O facto de esta recusa ser expressa pela boca de tiranos ou autocratas feudais não exclui a pertinência da mensagem. Significa apenas que a paixão da Europa se cumpriu, que a Europa morreu na cruz imaginária da sua universalidade sem emprego.”

Estes trechos fazem parte do livro “Montaigne ou a Vida Escrita”, lançado pela Gradiva, que reúne cinco pequenos ensaios, com prefácio de Guilherme d’Oliveira Martins, e é uma daquelas joias que só uma cabeça como a do filósofo nascido em 1923 poderia engendrar. O texto-ode a Montaigne ‘dá-nos’ o francês como nunca antes o tinha sido, ele que inventou o ensaio como género literário, acontecimento sobre o qual Lourenço se pronuncia com aquela clarividência que lhe é própria: “Consideram-se, com razão, os ‘Ensaios’ um lugar escrito, ou o diário de bordo de uma aventura mais extraordinária que a de Colombo. A descoberta do Homem da sua própria América. Do desconhecido na ordem geográfica chegamos a um continente muito mais desconhecido, que é o de nós mesmos. Olhando-nos assim pela primeira vez, com novos olhos, descobrimos que nenhuma terra misteriosa nos ofereceria mais enigmas do que o Homem.”

E se ainda não tem a estante cheia, atente nas sugestões que se seguem. Prosa a ser editada não falta e anda desesperada e pertinentemente em busca de leitores.

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“A Floresta das Intensidades – Livro de Horas X”, de Maria Gabriela Llansol (Assírio & Alvim)

Com seleção, transcrição, introdução e notas de João Barrento, um volume belíssimo escrito em Colares entre 1991 e 1995, que começa assim: “Faz-me sofrer não ter senão poucos iguais, nesta perspicácia inocente de ver o real sem metáfora, tal como ele é. Dos meus olhos caíram agora escamas.”

“Os Substitutos”, de Bernardo Carvalho (Companhia das Letras)

De um autor nascido em 1960 no Rio de Janeiro, vencedor dos prémios Oceanos e Jabuti, um romance sobre a relação entre um pai e um filho, que percorre também a história moderna do Brasil.

“O Último Avô”, de Afonso Reis Cabral (D. Quixote)

Novo romance de um jovem autor que já foi prémio LeYa e Saramago, onde lemos: “Disseram-me isto: que o meu avô abriu uma cova no jardim das traseiras e de seguida a regou com gasolina; depois, aturou-lhe o manuscrito e, com um sorriso, acrescentou ao cozinhado a chama pequena de um fósforo. Com empenho e combustível, até uma pequena chama faz grandes coisas.”

NÃO-FIÇÃO

“A Minha Vida”, de Lev Trótski (Edições 70)

A autobiografia de um dos autores da Revolução russa de 1917, escrita durante o seu terceiro exílio, nos anos 1930, numa nova edição com prefácio de Ricardo Cabral Fernandes.

“Uivar à Lua”, de Delfim Sardo (Tinta-da-China)

Uma vintena de artistas vistos pelos olhos e a sensibilidade do curador e professor da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, com textos por ele escritos entre 2013 e 2025. Ele próprio nos diz ao que vem: “Escrever sobre arte é uivar à Lua, porque é inútil e talvez mesmo fútil, mas há sempre a esperança de que algum eco responda, também ele perdido numa mesma atração.”

“O Capital no Antropoceno”, de Kohei Saito (Presença)

Ensaio de um jovem filósofo japonês que revisita Karl Marx, encontrando uma forma de desafiar o capitalismo atual: o ‘decrescimento’, isto é, a desaceleração da economia, a redução do consumo e a redefinição das nossas prioridades.

Hoje ficamos por aqui. Se tiver sugestões ou comentários, pode enviar para lleiderfarb@expresso.impresa.pt

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