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Em casa tomada, silêncio de pau

Com a silly season a começar e a marcha para férias, de carro ou de avião, rumo a locais sobrelotados, porque dificilmente outra coisa se encontrará nestes meses de interrupção letiva, cada vez mais fazemos o que menos desejamos. Verdadeiras férias talvez não sejam num local, mas num estado, numa condição a que muitos de nós poderemos chamar de suspensão, paragem ou ‘silêncio’. O silêncio não existe, mas Alain Corbin escreve a “História do Silêncio” (Quetzal) para mostrar o contrário. Publicado em 2016, antes da “História do Repouso” saída em 2022 – Corbin escreveu outras histórias, como a do corpo, das emoções, da virilidade, do sensível - o que este livro traz é um apelo à insubmissão, à não rendição ao ruído permanente que nos invade. Não porque existam hoje mais decibéis do que antigamente, mas porque o ambiente está ocupado por uma hipermediatização e um “incessante fluxo de palavras que se impõem ao indíviduo e que o levam a recear o silêncio.”

Em 180 páginas, Corbin lança-nos para uma compreensão das formas almejadas de silêncio desde o Renascimento. Há o fácil, o que exige trabalho ou preparação, o que provoca alívio, o que desejam muitos escritores na evocação de um simples quarto – como Proust, como Kafka, como Rilke -, o da “mãe em casa que dispõe silenciosa os pratos na mesa do jantar” de Walt Whitman, o da redenção, o da culpa, o da raiva. O da guerra, o da paz, o da natureza, o das trevas, o da luz. E o do amor e o do ódio, tão díspares e tão próximos. O livro lê-se de um fôlego, e enche-nos de referências a outros autores e outros livros, não fosse Corbin um erudito daqueles que já não se fazem, nascido em 1936, historiador e autor de mais de 30 obras, a última das quais, em 2024, uma “História da Alegria” ainda não traduzida por cá.

Um acontecimento editorial de julho é certamente a edição do primeiro volume dos “Contos Completos” de Julio Cortázar, saído pela Cavalo de Ferro, que compreende os textos breves escritos entre 1945 e 1966. Trata-se da primeira parte de um compêndio pelo que há de melhor na literatura em língua castelhana, com o cunho inconfundível do autor argentino que fez parte do Boom latino-americano ao lado de Vargas Llosa, Carlos Fuentes e García Márquez - e era o mais velho deles todos. Neste livro encontramos peças imortais como “Casa Ocupada” [em espanhol, “Casa Tomada”], magistral nas suas seis páginas: a história de dois irmãos habitantes de uma casa que vai sendo gradualmente invadida sem que saibamos por que ou por quem, obrigados a migrar de uma parte para outra, até serem desalojados. Ou aquela outra pérola intitulada “Retorno da Noite”, em que um homem assiste ao que por definição lhe é vedado: a sua própria morte. Ou aquela outra, “Estação da Mão”, sobre uma mão que visita diariamente um escritor, e por quem este se apaixona. Ou “Não se Culpe Ninguém”, sobre um homem que tenta vestir uma camisola de inverno que literalmente o domina por inteiro – menos a mão esquerda -, matando-o.

Em “Como Animais”, da francesa Violaine Bérot, lançado pela Antígona, encontramos também uma história que roça a literatura fantástica, embora de outro modo. O que faz é explorar o lado mítico e irreal que a realidade carrega, basta instar diversos observadores a contar a sua versão dos factos, filtrada pelos seus próprios medos, memórias e assunções. É o que acontece neste pequeno romance escrito em 2021 e agora traduzido, em que vários habitantes de uma aldeia isolada nos Pirenéus reage ao mesmo acontecimento: a descoberta de uma criança numa gruta. O relato de cada um contribui para que a história seja contada. Mas não - nunca – totalmente.

“Quis vir falar convosco por causa da criança. Ou melhor, por causa da mãe. Não a conheço, não é isso, não queria que pensassem que a conheço. Não venho aqui dizer-vos quem é a mãe (...). O meu depoimento não vai porventura ajudar-vos muito, mas queria mesmo assim vir ter convosco para vos contar o que esta história fez despertar em mim. A mãe desta menina podia ser eu. É isso que vos quero dizer. Compreendo esta mulher e compreendo o sue gesto. Eu podia ter feito o mesmo, podia ter dado o meu bebé às fadas. Pensei nisso.” É pegar e ler, leitores.

Há muitos bons livros por aí.

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“Os Objectos Principais”, de António Franco Alexandre (Assírio & Alvim)

Poesia de 1979, agora reeditada com posfácio iluminador de Joana Matos Frias. “a cada coisa +e permitido o justo sítio, enquanto dure / o legado dos seus anos.”

“Funeral Divertido”, de Ludmila Ulitskaya (Cavalo de Ferro)

“Um romance divertidíssimo, extravagante e terno cujos temas – amor, perda e identidade – superam as fronteiras da língua e da geografia”, opinou o NYT sobre esta sátira da grande escritora russa, nascida em 1943.

“A Nuvem no Olhar”, de João de Melo (D. Quixote)

Uma dezena de contos lançados nos 50 anos de vida literária do autor. O primeiro começa assim: “Sempre que tal acontece fora de épocas festivas ou dias de aniversário, vem-me este mesmo sobressalto: poder tratar-se de alguma emergência, uma notícia má, a doença de um qualquer deles, ou mesmo a morte súbita de um membro da minha família.”

NÃO-FICÇÃO

“A Mulher do Boticário”, de Karen Bloom Gevirtz (Temas e Debates)

“A história oculta do medicamento e de como se tornou mercadoria”, diz-nos a capa deste livro escrito por uma doutorada em Literatura britânica especializada na história das mulheres e da escrita nos séculos XVII e XVIII. Aqui, porém, traça uma história da medicina, rigorosamente investigada. E boa de ler.

“A Última Lição de José Gil”, de José Gil e Marta Pais Oliveira (Contraponto)

Longa entrevista da autora portuense com um dos maiores filósofos portugueses, da vida e os lugares ao exercício da Filosofia e da cidadania, os populismos, a democracia, a arte, o digital.

“Breve História da Gestapo”, de Sharon Vilches (Guerra & Paz)

Um estudo sobre o símbolo do aparelho de controlo e terrorismo do III Reich, com fotografias de registos policiais de vasta documentação, escrito por uma historiadora que se especializou nos sistemas repressivos do século XX.

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