Expresso Livros

Um escritor incomoda muita gente, dois ou três incomodam muito mais

Esta semana, Boualem Sansal foi notícia. O escritor franco-argelino, preso na Argélia desde novembro de 2024, viu confirmada pelo tribunal uma pena de cinco anos de prisão, da qual havia apresentado recurso após a sentença proferida em março. Acusado de “pôr em causa a união nacional”, segundo o jornal “Le Monde”, Sansal foi punido por dizer ao jornal de extrema-direita “Frontières”, que o seu país se apropriou, no processo de independência, de territórios historicamente pertencentes a Marrocos. Aos 75 anos e doente de cancro, sobre o autor amplamente premiado recaem ainda acusações de desrespeito ao tribunal, “práticas prejudiciais para a economia nacional” e “posse de vídeos e publicações ameaçadoras da segurança e estabilidade do país”.

Não se percebendo como um homem de letras, doutorado em Economia, pode ser considerado uma ameaça à segurança e à estabilidade (e mesmo à economia) de um país, percebe-se que as autoridades de Argel não apreciem uma voz interna e crítica. Já noutras décadas Sansal tivera livros censurados e perdera o emprego de professor por se opor à crescente islamização do ensino. Mesmo assim, permaneceu na Argélia, embora retirando-se da capital para um subúrbio com a mulher, também proibida de exercer a docência. Em 2008, descreveu a Argélia como uma “prisão a céu aberto”. Não é por isso estranho que, ao abrir o livro “Viver - A Contagem Decrescente”, agora lançado em Portugal pela Quetzal, nos deparemos com uma frase como esta: “Quando o nosso querido planeta, a nossa eterna mãe, tiver desaparecido, apenas teremos a nossa memória para o recordar, e apenas as nossas lágrimas para o chorar.”


A questão é até que ponto podemos confiar na memória, essa amálgama imperfeita de rejeições e expetativas. Num romance apocalíptico, em que se prevê a humanidade extinguir-se em 780 dias, o protagonista é um dos “convocados” para difundirem a terrível mensagem e escolherem quem fundará uma nova civilização humana longe da Terra. No cerne desta escolha estão talvez algumas das secções mais impactantes, políticas e cáusticas de um romance poderoso, do qual esta Estante não se atreve a adiantar mais nada a não ser uma passagem: “A vida não seria fácil nem gratificante na nave se as forças da mentira e da desarticulação excedessem as forças da coesão e do equilíbrio. (...) De qualquer maneira, era demasiado tarde, já não tínhamos tempo para repensar os nossos cálculos. Colocaríamos trancas nas portas e janelas, e criaríamos uma polícia de fronteira para afastar os trânsfugas.

Os livros têm coisas destas – andam todos ligados. A par do romance mais recente de Sansal, surge “Somos Livros para Mudar o Mundo”, de Lyndsey Stonebridge, publicado pela Temas e Debates. O subtítulo esclarece o conteúdo - “O que Hannah Arendt nos ensina sobre o amor e desobediência” - desta biografia, finalista do Orwell Prize for Political Writing, escrita por uma professora de humanidades e direitos humanos na Universidade de Birmingham. Quando se cumprem os 50 anos da morte da filósofa alemã, importa explicar por que o seu pensamento continua tão vivo. Por que bastou a primeira eleição de Donald Trump, em 2016, para que um livro como “As Origens do Totalitarismo”, escrito em 1951, aumentasse as vendas em 1000% - em Königsberg, onde Arendt nasceu, hoje um enclave russo nas fronteiras da União Europeia chamado Kaliningrado, conta-nos a biógrafa, “uma nova geração de europeus de leste começou” também a ler o volume, “desta vez como um guia de sobrevivência”. De alguma forma, 80 anos após o fim da II Guerra Mundial, que a deixou apátrida, ouvimos de novo as sirenes, vemos – pisamos – as linhas vermelhas. Em alguns pontos do globo suficientemente próximos para não os vermos, essas linhas há muito se ultrapassaram.

O volume não pretende contribuir com dados biográficos até hoje desconhecidos – como é, pelo contrário, em grande parte o objetivo de “Hannah Arendt - A Biografia”, de Thomas Meyer, saída também este ano nas Edições 70 – nem apregoa exaustividade, apresentando antes o intuito de estabelecer relações, estas sim novas por corresponderem à investigação, à leitura e ao olhar de quem o escreve, entre a vida e a obra da filósofa. Em certos momentos, a biógrafa usa a primeira pessoa e descreve uma experiência esclarecedora de um conceito de Arendt, como a ida a um cemitério judaico nos arredores de Beirute ao lado do poeta palestiniano Yousif M. Qasmiyeh, investigador em Oxford que cresceu no campo de refugiados de Baddawi, no Líbano. Arendt não esteve lá, mas escreveu sobre o assunto. Disse claramente: “A privação da nacionalidade deveria ser incluída entre os crimes contra a humanidade.”

E diz Stonebridge, atualizando-as: “Nas primeiras décadas do século XXI, a prática de desnaturalização voltou, sub-repticiamente. Em abril de 2022, o governo do Reino Unido aprovou uma lei que permite que os ministros privem pessoas da nacionalidade sem terem de as informar. A razão avançada para esta legislação foi a segurança nacional. (...) Mas a política subjacente à lei também era nacionalista e populista, o que teria sido motivo suficiente para Hannah Arendt ficar alarmada, sendo que também se não teria deixado convencer quanto aos benefícios em termos de segurança, pelo menos a longo prazo. Ao expulsar pessoas, criam-se novas gerações de pessoas apátridas e sem direitos. É estulto pensar que isso torna alguém mais seguro.”

Falando de livros que questionem o presente com base numa renovada observação do passado, chega-me às mãos um dos que – aposto - dará que falar nos próximos tempos. Refiro-me a “Reinvenção da Masculinidade – Homens e Feminismo”, de Josep M. Armengol, editado pela Tinta-da-China. O que o distingue relativamente a outros que foram publicados sobre o tema é a intensa e extensa investigação deste catalão doutorado em Filologia Inglesa e pós-doutorado, afinando o foco, no Center for the Study of Men and Masculinities da Universidade Stony Brook, nos EUA. Autor de vários outros livros – “Masculinidades alternativas en el mundo de hoy”, de 2014 o “Aging Masculinities in Contemporary U.S. Fiction”, de 2021 são apenas dois exemplos –, Armengol começa por explicar a razão, até bastante óbvia, por que os estudos de género se têm concentrado nas mulheres. Do ponto de vista político, “é assim que deve ser”, pois foram elas “que sofreram e continuam a sofrer, os efeitos mais nocivos do patriarcado”. Foram elas “que tiveram de tornar visível o género enquanto categoria política”. Porém, o género também condiciona os homens, e “a conceção tradicional de masculinidade enquanto norma ‘invisível’ só contribui para perpetuar desigualdades sociais e de género”. Numa palavra, essa invisibilidade, essa normalização, “é a condição prévia básica à perpetuação da supremacia masculina, porquanto é difícil questionar o que permanece oculto”.

Em 300 páginas, o volume explica a importância de reverter esta perceção. E de estudar como “a ideia errada de que a experiência masculina é igual à experiência humana influenciou o tratamento das mulheres”, ao mesmo tempo que “limita [torna imutável, dizemos nós] as nossas perceções sobre os próprios homens”. Há um ‘homem genérico’, utilizado como norma humana, que distorce e impossibilita a análise do que é específico da masculinidade, considerada como uma construção, não biológica, mas histórica e social.

E, por isso mesmo, passível de mudança.

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“A Curva do Rio”, de V.S. Naipaul (Quetzal)

Reedição de um dos melhores romances do prémio Nobel da Literatura em 2001, onde se lê: “Aquele lugar tinha conhecido imensas convulsões: na curva do rio, mais de metade da cidade estava destruída. O antigo bairro europeu, junto aos rápidos, tinha sido queimado e a vegetação irrompia por entre as ruínas; era difícil distinguir entre o que fora jardim ou rua.”

“Manual para Andar Espantada por Existir”, de Patrícia Portela (Caminho)

Livro que parte das “Aventuras de João sem Medo”, de José Gomes Ferreira, empreendendo um exercício de defesa da imaginação: “Não sei como, mas abraçámo-nos e já não nos largámos. Um abraço apertado é a forma de coragem mais limpa que se pode exercer um cenário tão desolador quanto aquele. O apego é a provocação mais audaz quando o mundo nos desafia a desistir ou a fugir do que mais desejamos.”

“Cruzeiros de Inverno”, de Mário Cláudio (D. Quixote)

Um tríptico de novelas curtas — “A Gôndola Negra”, “Menina Sentada” e “Os Cães de Hécate”, que acompanham as vidas problemáticas de três personagens reais — Carlos Relvas, Ofélia Marques e José Corrêa d’Oliveira.

NÃO-FICÇÃO

“Pelo Socialismo Ecológico”, de Thomas Piketty (Temas e Debates)

Compilação das reflexões do professor catedrático da École des Hautes Études en Sciences Sociales e codiretor do World Inequality Lab escritas para o jornal “Le Monde” e para o seu blogue, entre a crise da Covid-19 e a guerra em Gaza. “O século XX foi o século da social-democracia. O século XXI vai ser o do socialismo ecológico, democrático e participativo”, escreve, otimista.

“Intelectuais Portugueses e a Ideia de Esquerda num Tempo de Transição (1968- 1986)”, de João Moreira (Afrontamento)

Uma análise feita por um sociólogo do ISCTE e investigador do CHAM-Nova que esclarece o papel dos intelectuais nas transformações culturais de uma época, abordando especificamente os casos de António José Saraiva, Eduardo Prado Coelho e João Martin Pereira.

“Iniciação na Literatura Portuguesa”, de António José Saraiva (Gradiva)

Numa nova edição prefaciada por Ernesto Rodrigues, uma pequena obra de fôlego e excelentemente escrita sobre o essencial das letras portuguesas, entre 1108 e 1982.

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