Na semana em que começou a Feira do Livro de Lisboa, o que ficou desse primeiro dia – quarta-feira – foi um Presidente da República a agarrar primeiro nos ombros e depois no pescoço de Rita Oliveira Dias, ilustradora, artista e livreira da Tigre de Papel, por esta lhe ‘roubar’ o tempo de antena a fim de passar uma mensagem sobre o genocídio em Gaza. A Marcelo ter-lhe-ia bastado continuar, esperar ou mesmo ignorar, mas interveio, gesticulou, tocou, pôs a garra e logo no pescoço. Além de perturbador, surreal, intimidatório e inconveniente, não foi bonito de se ver. E sobretudo contrastou com um evento que celebra a liberdade de dizer, de escrever, de pensar, de opinar, de defender pontos de vista, de dissentir, de concordar.
Nele será lançado “O Vício dos Livros II”, de Afonso Cruz, editado pela Companhia das Letras – continuação de um primeiro volume que data de 2021. E logo ali nos é oferecida a chave para entender a razão por que todos os anos peregrinamos rumo ao Parque Eduardo VII com a simples intenção de ver, expostos, por vezes junto aos seus autores, vários milhares de livros de ontem e de agora. Poderá acontecer adquirir alguns deles, os que o bolso de cada um permitir. Mas o importante é o que se passa depois, em casa, no frente-a-frente com o livro, esse acompanhante que nos isola do mundo, diz Afonso Cruz, negando-nos uma gratificação imediata, “impondo algum silêncio, exigindo atenção, concentração e, como se tal não bastasse, obriga ao esforço da descodificação”.
No primeiro texto de 40 que perfazem o volume – o título é ‘Ler ou não ser’ -, fala-se da leitura como “uma arte em coautoria" e, por isso, tão poderosa. Poder que foi sempre reservado a poucos. Ao contrário da fruição imediata da pintura ou da dança, “a pessoa debruça-se sobre um livro, alheada, imóvel, não parece estar a viver um turbilhão de emoções. Porém, esse leitor poderia levantar a cabeça, depositar o livro nas mãos de quem o observa e dizer, como disse Christian Bobin: ‘Olhai para este livro. A luz que ele faz entre as vossas mãos.’ É esta a imagem que os leitores querem fazer passar às pessoas que não têm interesse pela leitura, porque só quem compreende este silêncio, o silêncio do leitor imerso, encontra nos livros essa luz.”
Por isso é tão difícil calar os livros e os leitores silenciosos.
Há um que me caiu nas mãos esta semana, na volta do correio. Teve uma primeira versão em 1997, publicada pela Teorema, que agora surge revista e aumentada numa edição da The Poets and Dragons Society. Falo de “As Cinzas de Maria Callas”, de António Cabrita, (que o ano passado venceu o Prémio Literário Baptista Bastos por “Se não quiseres amar agora no inverno, quando?”, a ser lançado em outubro) uma antologia – desta feita definitiva - dos contos do autor sobre a infância, a adolescência e o crescimento, com o país de Salazar como pano de fundo. Além destes retratos, o que emerge é um tratamento da linguagem como já não se vê, o trabalho autoral e soberano de filtrar o que ele extirpa à oralidade simples dos dias, dando-nos a literatura.
E assim lemos frases como esta: “O clister. A força maior que retivera o Gilinho, o nosso craque na defesa das redes, em casa (obrigado a ajudar a mãe a dar um clister à irmã mais velha, a Mena ‘Mongolóide’), escancarando a nossa baliza aos sarrafeiros do Pragal. O clister, cuja sonoridade, sem que fizesse a menor ideia do que fosse, me fizera rebolar pelo chão às gargalhadas, aliás como ao resto da malta, e que virou alcunha, até o Gilinho, um iradíssimo olhar de través, sangrar a fuça do Alemão com uma cabeçada. O clister, de que fugira, à ameaça de uma lição ilustrada.”
Ou como esta, sobre a textura do deslumbre adolescente: “Avançava decidida, num passo avesso a intempéries, minissaia aos quadrados e bota canelada, fazendo-me desejar que se mantivesse a atração mútua pelo menos mais um lustre, até eu já ser bacharel em cinismo e brevidade. ‘Se a cauda não abana o cão, há-de o passado nascer do presente?’, interrogava o romano Ovídio Nasão, que nunca a viu. E eu anuo, fraterno e sedento: só a Guida continua a nascer do presente. A pica que dava a miúda.”
Em “Lobos”, o novo romance de Tânia Ganho, acabado de sair pela D. Quixote, existe também esse lado burilado, esculpido, das frases. São vidas entrelaçadas, cada uma com a sua solidão, o seu invariável fardo, mas toda essa construção está ao serviço daquilo que os bons romances fazem: levar-nos por aí fora, arrastar-nos com eles, oferecer-nos aquele grito feroz que os livros guardam em silêncio de que falava, mais acima, Afonso Cruz. “O ror de países e estatísticas desfila no seu ecrã todas as manhãs, em colunas: números de testes, número de infetados, número de mortes. Por defeito profissional, fixa-se nos óbitos, atualizados às zero horas. A morte por ordem decrescente, vermelha, ubíqua. E, com um clique, por ordem crescente, para ver à cabeça os espaços em branco, os países onde ainda não morreu ninguém.”
Ou ainda: “A sua especificidade são as mãos, vinte e sete ossos, vinte e sete articulações principais, trinta e quatro músculos e mais de cem ligamentos e tendões. Até ver, não foram encontradas duas mãos iguais no mundo.” Quem o exprime é Fedra, antropóloga forense a quem os mortos não assustam, mas os vivos atormentam – lemos – contaminando-a “com as suas mãos infectas”.
O que aqui se defende é uma linguagem que resista ao encolhimento a que está a ser forçada e que assenta que nem uma luva a certos discursos (políticos, ideológicos) que precisam da extrema simplificação para vingar. Um outro livro, “O Fim da Educação”, de António Carlos Cortez, editado pela Guerra & Paz, é implacável na sua descrição do falhanço de uma escola “indigente” que vomita alunos incapazes de ler e de escrever, “esterilizados” por 12 anos de escolaridade orientada para a sua formatação e para “monocultura” que se resume ao teorema: todos iguais. Bestializados, à boleia do que caçam nas redes, mais opinião do que outra coisa, indiferentes à verdade, à análise, à interpretação, às fontes; sem paciência nem ferramentas para o discurso que ultrapasse a descrição cega; demasiado permeáveis à agressão e à violência. Curta e diretamente, o livro equivale a um soco no estômago: “De há várias décadas para cá tem-se transformado a escola no rolo compressor em que crianças e adolescentes se deformam até ao ponto da total impossibilidade de pensarem autonomamente e de forma crítica. Esse acriticismo e essa falta de autonomia traduzem-se no reconhecimento de que, por ter sido traído, o homem-comum necessita de um novo pai, ou de um novo chefe.”
Do mesmo autor, ele próprio professor e doutorado em Ciências da Literatura, chega-nos “Condor”, um volume da sua poesia, pela mão da Caminho, onde para o final se lê: “Não se pode resistir mais à queda, a poesia em queda e o mutismo como forma final do lirismo. Isto é: sabemos que a indústria se sobrepôs a tudo e é a lógica do mercado que organiza o mundo. As frases escoam-se, as palavras esvaziam-se de sentido (um poeta morreu no dia do seu aniversário, atropelado por uma composição dúbia e não soube já como fazer metáforas) e de que vale, pergunto, falar de poéticas agora?”
Mas, antes, já Cortez tinha contrariado a sua própria formulação. Não parece que a poesia venha a acabar. Ainda que seja entregue “à única saída nobre: ser uma ave a caminho do sol que a cegará absolutamente”.
OUTROS LIVROS POR ARRUMAR
FICÇÃO
“Nunca me Perguntarás”, de Natalia Ginzburg (Relógio D'Água)
Ensaios reunidos em 1970, em que a grande autora italiana propõe “narrativas da memória”, embora memória e narrativa nunca se distingam.
“Qual É o Teu Tormento?”, de Sigrid Nunez (Livros do Brasil)
Este é o romance em que Pedro Almodóvar se inspirou para o filme “O Quarto ao Lado”, de uma autora nascida em Nova Iorque, em 1951, e vencedora do National Book Award.
“A Chave de Casa”, de Tatiana Salem Levi (Elsinore)
Reedição do romance vencedor do Prémio São Paulo de Literatura, em 2008, e que começa assim: “Escrevo com as mãos atadas. Na concretude imóvel do meu quarto, de onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e, por isso, escrevo.”
NÃO-FICÇÃO
“Desvio da Memória”, de Pedro Paixão (Glaciar)
Volume denso e reflexivo, e altamente desafiante, cujo subtítulo indica conter “anotações sobre a destruição dos judeus europeus”, assinalando o regresso do escritor, que nos diz: “Tentei mais de uma maneira não escrever este livro”.
“Para Lá do Muro”, de Katja Hoyer (Vogais)
Uma história da Alemanha de leste, contada por uma jornalista e historiadora alemã que é investigadora visitante no King's College de Londres. “Os cidadãos da RDA viveram, amaram, trabalharam e envelheceram. Foram de férias, contaram anedotas sobre os seus políticos e criaral os filhos. A sua história merece um lugar na narrativa alemã”, lemos.
“História da Homossexualidade em Portugal”, de Victor Correia (Âncora)
Entre o século XIII e o XX, este livro preenche “uma lacuna no mundo editorial”, diz-nos o autor no prefácio. “Os gays, as lésbicas, os bissexuais, e os praticantes de relações sexuais entre indivíduos do mesmo sexo geralmente não aparecem nos livros de História”, continua.
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