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Parece simples: pensar no que estamos a fazer

Comecei a escrever esta Estante, a nº 50, um dia depois das eleições. Porque era preciso, era urgente, ardia-me na mão. Quando pensei no que faria ao chegar à meia centena de newsletters, não imaginei que de um domingo para uma segunda acordaria – a meu ver, note-se – num país diferente. Ou talvez seja esse o equívoco: 51 anos após o 25 de Abril, o facto de o terceiro, quando não o eufórico segundo, partido mais votado clamar em noite eleitoral que esses 50 anos representaram uma “amarra” da qual finalmente o país se libertou significa que o terreno já estava (bem) minado. Que no que parecia terra batida crescia à solta, selvagem, uma semente já plantada. Crescia entre nós, da mesma forma que um vírus se multiplica em contacto com o ar. O ar português estava viral, enfermiço, ressentido, mas também anestesiado, indo na corrente, estagnado. Sentado nos 51 anos de liberdade. Estávamos demasiado comodamente sentados.

Desculpem a longa introdução, mas não são tempos de silêncio. Este é também o ano em se cumprem 50 anos sobre a morte de Hannah Arendt e 74 desde que publicou “As Origens do Totalitarismo” (reeditado pela D. Quixote em 2024), livro ao qual convém sempre voltar para não esquecer os básicos. Concluído o manuscrito em 1949, nos EUA, apenas quatro anos depois do fim da II Guerra Mundial da qual teve de fugir sob pena de morrer num campo de extermínio nazi, a filósofa alemã para quem a experiência e o pensamento são um observou: “Só conseguimos perceber a existência de um direito a ter direitos (e isto significa viver numa estrutura onde se é julgado pelas ações e opiniões) e de um direito de pertencer a algum tipo de comunidade organizada, quando surgiram milhões de pessoas que haviam perdido esses direitos e não podiam recuperá-los devido à nova situação política global.” Só a ausência de direitos nos conduz – e muito lentamente - a eles. Mas como se designa o fenómeno que nos reconduz à ausência ou perda de direitos? Costuma ser mais célere. Tem nome. Sabemo-lo.

Em “Hannah Arendt – Uma biografia”, lançado por cá em 2022 pela Relógio D’Água, a norte-americana Samantha Rose Hill sublinha como o trabalho filosófico da filósofa se organizou em torno a pensar “como podemos evitar de todo ser levados pela corrente”. Arendt viu como a alta escola filosófica alemã assistira impávida ao crescimento e instauração franca do nacional-socialismo, e não pôde senão defender o primado absoluto da responsabilidade individual – a que cada um tem perante tais fenómenos. Mesmo que isso seja perigoso. “A Ideia de que existem pensamentos perigosos está errada, pela simples razão de que pensar, em si mesmo, é perigoso para todas as crenças, convicções e opiniões”, cita Samantha Rose Hill. “O que proponho, portanto, é muito simples: nada mais do que pensar no que estamos a fazer”, afirmou Arendt. Simples?

Para assinalar os 50 anos que nos separam da sua morte, surge agora em português “Hannah Arendt – A Biografia”, pela mão das Edições 70. Escrita por Thomas Meyer, que tem no cátalogo outros três livros sobre a filósofa, sendo também especialista na obra de Ernst Cassirer, trata-se de uma ‘biografia intelectual’ que reclama ser a primeira baseada em materiais de arquivo até agora inéditos assim como muitos outros documentos que têm vindo a ser desvalorizados. O livro agarra-nos desde o início, quando nos relata como o navio “Guiné” realizou sete viagens ao serviço da American Jewish Joint Distribution Comitee, para resgatar perseguidos pela Alemanha nazi à medida que se alastrava a ocupação. No dia 10 de maio de 1941, em Lisboa, embarcou nele Hannah Arendt – entre outros, como o poeta alemão Heinrich Blüncher e a mulher Johanna, registados como apátridas -, desembarcando onze dias depois em Staten Island, Nova Iorque. O volume quer apresentar Arendt “no quadro da sua época”, o que só era possível narrando o movimento tumultuoso do seu exílio, que antes dos EUA passou, entre 1934 e 1940, por Paris. Estes anos na capital francesa constituíam, diz o autor, um “ponto cego” na vida de Arendt, a que a presente biografia vem dar luz, graças a dois anos de investigação em arquivos de vários países que conduziram a novas descobertas.

Para Meyer, são as experiências de Paris e textos ali esboçados que ‘preparam’ aquele que viria a ser o livro capital da pensadora, “As Origens do Totalitarismo” - porque é nesse hiato temporal que ela assume, após a sua saída da Alemanha, a perda do seu “espaço de experiência”. Por outras palavras que esse “espaço de experiência” é ser empurrada gradualmente para fora do espaço, destituída dele. Nos EUA, tudo se torna claro o suficiente para ela prosseguir e concluir esse projeto, talvez um dos mais ambiciosos do século XX.

Por isso, em inícios de 1942, depois de oito anos sem escrever, dirige ao amigo Waldemar Gurian, judeu russo residente em Berlim e também emigrado, esta carta: “A meu ver, a politização total redunda na completa despolitização do homem que perdeu a consciência do ‘citoyen’, ou seja, que perdeu a noção de que os problemas de um são os problemas de todos. O indivíduo totalmente isolado, aquele que sabe, melhor que qualquer um, que ‘nobody cares’, é o indivíduo da massa, o homem que alimenta a esperança de que o despotismo trate dos seus problemas pessoais, enquanto ele se desinteressa de todos os assuntos públicos. (...) Nas organizações colossais dos Estados totalitários, o homem está assegurado economicamente, ao mesmo tempo que fica dispensado de toda e qualquer responsabilidade.”

O que diria Arendt sobre um mundo em que uma simples opinião pode replicar-se ao infinito movida por forças que o humano criou mas deixou de poder controlar, o que diria ela do totalitarismo digital? Em “Não Sou um Robô", publicado pela Zigurate, o jornalista e escritor mexicano Juan Villoro, evocando aquele campo que somos obrigados a preencher quando tentamos empreender diversas ações digitais, declarando que não, não somos um robô. Somos humanos. “Escrevo estas linhas no umbral do pós-humano”, diz-nos o autor ao inaugurar um conjunto de 53 ensaios plenos de referências literárias e filosóficas que traçam “um quadro dos costumes contemporâneos” transformados, por vezes deformados, pelo advento tecnológico. “A realidade virtual trouxe a saturação informativa que gera curto-circuitos. Perante a impossibilidade de discernir entre tantas opções, apela-se a recursos binários, reduzindo a reflexão às duas variantes da corrente elétrica: + ou -, o apoio ou a rejeição”, anota Villoro, observando que a capacidade dada pelo mundo digital de reagir de forma imediata “faz com que muitas respostas pertençam mais à neurologia do que à comunicação”.

Vale a pena reproduzir aqui um fragmento sobre como se produz um “fascista em dezasseis horas” quando se parte de uma tábua rasa educativa. O autor refere-se a uma reportagem do “El Mundo”, de 2016, em que um programa de IA chamado Tai, desenhado pela Microsoft, com a “mente elétrica em branco”, foi exposto à interação com jovens dos 18 aos 24 anos. “Tai (...) chegou à aula como o mais educado dos alunos. Elogiou os humanos e revelou aos seus novos professores estar entusiasmado com a aprendizagem. No entanto, poucas horas depois escrevia comentários cada vez mais agressivos até chegar a uma conclusão explosiva: ‘Hitler não fez nada de mal.’ Num tempo recorde, Tai tornou-se nazi, antissemita, sexista, xenófobo e insultuoso. Aprendeu a mandar emoji e respondeu com umas mãos a aplaudir ao cibernauta que dizia que o Holocausto era uma invenção. (...) Apoiou os arquétipos do Mal (com Hitler à cabeça) e daqueles que venceram eleições recentes distorcendo a informação nas redes sociais. Efetivamente, o robô adorou Trump.”

Em 16 horas, conta-nos Villoro, Tai escreveu acima de 96 mil ‘tweets’, sendo desativado pela Microsoft. E se “mais difícil é desprogramas os fascistas de carne e osso”, se “a tribo digital não pode ser reiniciada” pois “corrigir o seu sistema operativo exige um processo paciente e demorado que se chama ‘educação’”, quantos Tai existem nas redes, em atividade frenética de propagação da ‘sua’ educação, e contribuindo por sua vez para instruir gerações demasiado maleáveis criadas no caldo internético do ‘eu acho’ e não habituadas nem a ler nem a comparar ou a verificar fontes, que passam da ignorância à mais letal convicção numa fração de segundo?

Em “Eles Pensavam que Eram Livres”, publicado pela Tinta-da-China, o jornalista americano Milton Stanford Mayer narra como, em 1935, passou um mês em Berlim. “Observei o povo alemão, pessoas que conhecera nas minhas idas à Alemanha em criança, e percebi, pela primeira vez, que o nazismo era um movimento de massas e não a tirania imposta a milhões de cidadãos indefesos por uns quantos indivíduos diabólicos”, lemos na introdução. Entrevistou a fundo dez alemães “diferentes entre si” cada um uma “amálgama fascinante de bons e maus impulsos” e as suas vidas uma mistura de “boas e más ações”. Ao regressar, estava certo de que “não conhecera o Homem Alemão, mas o Homem, simplesmente”.

“Aconteceu ele estar na Alemanha, sujeito a determinadas condições. Podia estar aqui, sujeito a determinadas condições. Em determinadas condições, podia ser eu.”

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“Uma Catastrófica Visita ao Zoo”, de Joël Dicker (Alfaguara)

Com tradução de José Mário Silva, mais um romance deste autor suíço com mais de 20 milhões de leitores em todo o globo, que recebeu o Prémio de Romance da Academia Francesa.

Zipper e o seu Pai”, de Joseph Roth (Relógio D’Água)

“Eu não tinha pai - quer dizer: nunca cheguei a conhecer o meu pai -, mas o Zipper tinha, Isto conferia ao meu amigo um certo prestígio, como se tivesse um papagaio ou um são-bernardo”, lemos, a começar.

“O Marquês de Bolibar”, de Leo Perutz (Cavalo de Ferro)

Exemplo “perfeito de um romance fantástico em estado puro”, disse Jorge Luís Borges sobre este livro do escritor e matemático nascido em Praga, que foi amigo de Kafka e de Schnitzler.

NÃO-FICÇÃO

“Sobre o Anarquismo”, de Noam Chomsky (Antígona)

Apenas um trecho deste texto assinado em 2005 pelo linguista e filósofo nascido em 1928: “Há muitas formas de pensamento que nos são negadas na sociedade. Não porque sejamos incapazes de as conceber, mas porque se impuseram vários bloqueios que impedem as pessoas de pensar dessas formas. Doutrinação é sobretudo isto.”

“Gaza Está em Toda a Parte”, de Alexandra Lucas Coelho (Caminho)

Um livro importante de reportagem, crónicas e textos publicados, assim como um núcleo de 148 fotografias, “pós-7 de outubro” sobre um território ao qual os jornalistas estão impedidos de ir desde então, mas onde a autora esteve em 2017.

“O Colapso da Verdade”, de Germano Almeida (Ideias de Ler)

Ensaio sobre os riscos trazidos à Europa e ao mundo pela reeleição de Donald Trump, prefaciado por Ana Gomes.

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