Em 2024, neste dia, ocupavam-nos números redondos. Eram os 50 anos do 25 de abril. Passado um ano, são 51. Cruzou-se uma fronteira e o que foi festa rija torna-se agora puro desafio: temos, mais do que nunca, de os merecer; traduzir a euforia em factos; olhar para o país, para os seus discursos. Para quem o habita e o escreve. Para quem diz sobre ser-se livre antes daquele dia “inteiro e limpo”, segundo Sophia: “A bem dizer, ninguém poderia afirmar que o era em Portugal, a ditadura durava há tantos anos que o Victor nem se lembrava, quando ele nascera já Salazar estava no poder, nunca conhecera a verdadeira liberdade, não sabia bem o que isso era, não se pode sentir a falta daquilo que nunca se teve e no entanto ele contava os dias à mesma, marcava-os no calendário dos seus pensamentos antes de adormecer na tarimba todas as noites.”
Victor Tirapicos é a personagem central de “Pés de Barro”, de Nuno Duarte, romance agora lançado e vencedor do Prémio LeYa em 2024, que narra em 300 páginas a história da construção da ponte sobre o Tejo, e que se lê de um fôlego, com a vertigem de quem atravessa essa ponte que uniu duas margens tão distantes da mesma forma que o próprio livro nos remonta a qualquer coisa de impossível - a um país analfabeto e cinzento, e preso, e em guerra, onde várias gerações ansiavam por uma liberdade de que só conheciam o nome. Hoje talvez aconteça o contrário, não sabemos o que seja não a termos, o abismo de não poder falar, gritar, escrever, trabalhar, estudar, pensar, discutir, dissentir.
Mas Victor Tirapicos, conta o narrador, cometera a vergonha suprema de roubar uma saca de batatas e um pão, e ao sair da cadeia acabou por se ‘alistar’ para ajudar a erigir esse grande empreendimento de engenharia, no qual “não havia porca nem anilha nem parafuso que não tivessem sido testados” - “oxalá tivesse havido o mesmo rigor com o equipamento com que os soldados foram enviados para África, ao princípio nem camuflados tinham, as armas uma desgraça”, lemos. “Era um país paradoxal, que construía a maior ponte da Europa, enquanto por baixo dela, todas as semanas, partiam paquetes com milhares de rapazes rumo a uma guerra perdida”, resumiu Nuno Duarte ao Expresso quando recebeu a notícia do prémio.
De outro autor português chega-nos um volume que pede emprestado o título a um poema de Nuno Guimarães. Falamos de “Não é Ainda Pânico”, de Rui Nunes, editado pela Relógio D’Água, e que surge dois anos depois do também híbrido “Neve, Cão e Lava”. Aqui também há cães - “o que sobra de um cão, / cobre-o a terra / com a sua fome incompleta: / a palha áspera do pêlo, / hirtas as patas, / arreganhados os dentes. // Um cão não passa / de um cão que passou: / semienterrado semiapodrece.” -, mas há também mãos que ao serem lavadas ficam sujas de sangue, aldeias ao abandono, “pegas e corvos” a escreverem “o texto clandestino de Deus”, mais cães e mãos de sangue qual refrão maldito, assim como “insetos que zumbem como pequenos sóis”, o desabar certo de tudo quanto é construído, num livro que transcende e que dissente, como se quer em tempos de consensos sanitários e generalizada falta de coragem.
E há mais uma portuguesa que se aventura na História para a trabalhar literariamente. Judite Canha Fernandes, com o seu “O Mel sem Abelhas”, lançado pela Gradiva e vencedor em 2024 do Prémio Literário Edmundo Bettencourt, apresenta-nos a jornada de Marta, vinda de Angola para o Funchal num navio de escravos, em pleno século XVI, ela escrava da cana de açúcar, mas antes da peregrinação forçada até ao navio, e do próprio navio – essa carcaça - que finalmente a transporta. “Não tenho a certeza se bicho é tudo aquilo que se move por vontade. Eu já não me movo por vontade, ainda assim... sou bucho. Não sou planta. Apenas, não decido os meus movimentos”, ouvimo-la dizer, na primeira pessoa em que relata a perda, em vida, da sua vida, a venda, o abuso, os espancamentos, a presença do metal no seu corpo, as feridas, a insónia permanente, à chegada a uma casa com um jardim que mesmo apesar dos grilhões consegue admirar.
E falando de livros que rompem, citemos “Em Nome do bárbaro”, de Louisa Yousfi – jornalista, escritora, descendente de argelinos em França -, saído pela Orfeu Negro, que noutro contexto e lugar, também ousa falar de liberdade: “Para domesticar um bárbaro, é preciso por começar por lhe ensinar a liberdade. ‘Sê livre’ é o que se diz para o cativar. A vantagem é que ele percebe logo. ‘Sê livre’ dirigido a ele quer dizer: liberta-te da tua gente, das suas tradições, dos seus arcaísmos que a fixam num bloco homogéneo e opaco. Sê livre para trair, agora que falas sob a nossa proteção. E, com efeito, tudo o que ele fará ou dirá será doravante marcado com o selo de validação deles, creditado à beleza do mundo deles.”
Felizes os que, 51 anos após Abril de 1974, podemos aceder a esta e a toda a literatura.
OUTROS LIVROS POR ARRUMAR
FICÇÃO
“A Ressurreição de Maria”, de Cláudia Andrade (Elsinore)
São nove contos, incluindo aquele que dá título ao livro e começa assim: “Milénios depois ler-se-ia em algumas versões do Livro: ‘...e Jesus gritou em voz alta: Lázaro, vem para fora!’ E lê-se então que o morto ressuscitado saiu, com as mãos, os pés e o rosto envoltos em panos, e que Jesus acrescentou: ‘Desatai-o, e deixai-o ir.’”
“Morramos ao Menos no Porto”, de Francisco Mota Saraiva (Quetzal)
Neste romance vencedor do Prémio Saramago em 2024, lemos no início: “A minha mulher é um corpo defunto, uma porção decomposta de massa humana, um bocado de gente numa cadeira de baloiço, a baloiçar; uma ideia repetida que se arrasta num balanço consistente, relógio de pêndulo, certinho, a bater; é uma forma putrefacta de olhos cinzentos, vítreos, especados, botões de rosa a abrirem e fecharem; pétalas pardas que caem.”
“Relâmpago - Revista de Poesia” (Fundação Luís Miguel Nava)
A edição de dezembro de 2024 foi dedicada à “poesia portuguesa de agora”, com autores como Andreia C. Faria, Francisca Camelo, José Pedro Moreira, Miguel-Manso, Raquel Nobre Guerra e Tatiana Faia, entre outros, enquadrados por textos de Fernando Pinto do Amaral e Gustavo Rubim.
NÃO-FICÇÃO
“Cartas para Vila Berta”, de Miguel Esteves Cardoso (Bertrand)
Livro inédito e agora desvendado, contendo as cartas diárias e não respondidas que MEC escreveu ao amigo Carlos Vilela desde Manchester, onde viveu entre os 20 e os 24 anos como estudante.
“O Jogo da Glória”, de Carlos Maria Bobone (Zigurate)
Um ensaio sobre futebol escrito por um alfarrabista e dirigido aos filhos. “Este é um livro sobre futebol, como poderia ser um livro sobre os ciclos de cavalaria arturianos ou sobre os últimos cursos de Heidegger - é de futebol, enquanto veículo para transmitir o que encontro de mais admirável, extraordinário e divino na humanidade, que aqui se trata.”
“Viver como um Liberal”, de Alexandre Lefebvre (Gradiva)
Volume destacado pela revista “The New Yorker”, trata das democracias liberais nas quais fomos criados e da nossa responsabilidade diária em preservá-las, enquanto agentes da sua não deturpação e degradação.